Depois de quase catorze (14) anos, o Tribunal Supremo (TS) nega o recurso interposto pela MPALABANDA-ACC, em 2006, e confirma a sentença da sua extinção. De acordo com a Carta Precatória, os mandatários judiciais têm oito (8) dias para reclamar sobre o Acórdão. A decisão reabre o debate sobre o sistema judiciário angolano. O processo clama pela saúde da justiça em Angola.
Por José Marcos Mavungo (*)
No acórdão do TS, datado de 24 de Novembro de 2020, os juízes conselheiros decidiram “negar provimento ao recurso” apresentado por Luís Fernando do Nascimento e Francisco Luemba e confirmaram o acórdão do Tribunal Provincial de Cabinda, que decidiu a extinção da MPALABANDA-ACC, no dia 26 de Julho de 2006.
Recorde-se, MPALABANDA-ACC foi sentenciada à extinção por alegada “subversão da ordem constitucional, envolvimento em actos de arruaças e desestabilização”. Na sua acusação, o Ministério Público tinha qualificado a acção da MPALABANDA-ACC como estando a extravasar o seu fim, invadindo o domínio político, cujo exercício competia exclusivamente aos partidos políticos e cuja actuação destes estava limitada pela constituição.
A acusação foi feita pelo então Governador de Cabinda, José Aníbal Rocha, com o apadrinhamento da Casa de Segurança do Presidente da República. A forma como o processo foi tratado no tribunal da 1ª instância, com recurso a uma teia de homens do regime – o Governador, os vice-governadores, os delegados do Ministério do Interior e do SINSE, os comandantes militares e da polícia – arrolados como testemunhas contra a Mpalabanda-ACC, aponta no sentido de se tratar de ordens superiores.
Para os que acompanharam o processo, a Juíza Ana Maria do Carmo Diogo lembra apenas alguém que pretendia servir o regime, e que não queria provar o que quer que fosse. De acordo com Raúl Tati, deputado pela bancada da UNITA, a juíza fez incidir a sua decisão com base apenas em acusações avulsas e insustentadas. A linha entre “acção judicial” e “perseguição política” podia ser ténue, de facto, mas era evidente.
Logo a seguir ao seu enceramento compulsivo, a MPALABANDA-ACC interpôs um recurso no TS (Apelação nº 1045/2006), em Luanda. E, o apoio e a solidariedade nacional e internacional não lhe faltaram.
Ao longo destes 14 anos, vários activistas dos direitos humanos e ONGs se têm prestado para orientar o processo no sentido de reabilitação, uns de forma discreta e outros abertamente.
Em Novembro de 2011, antigos membros da MPALABANDA e outros defensores dos direitos humanos e representantes da sociedade civil apresentaram uma petição ao Tribunal Supremo, requerendo-lhe a devida consideração do recurso de 2006.
Exigência idêntica será feita pela Front Line Defenders, ACAT France, Associação Construindo Comunidades (ACC), CIVICUS, OMUNGA e SOS Habitats que, em Março de 2012, subscreveram um comunicado, apoiando inteiramente a petição da sociedade civil de Cabinda e instando o Tribunal Supremo de Angola a apreciar o recurso sem mais delongas.
A questão parece ter estado por isso destinado a arrastar-se nestes últimos 14 anos a fio no Tribunal Supremo por razões políticas, o que talvez tenha levado as autoridades judiciárias a comportarem-se como se o recurso tivesse sido negado.
Mas, como bem o afirmou o deputado Raúl Tati, em nota a que tive acesso, “era obrigação do TS atender a apelação feita, embora passados cerca de 14 anos sob pena de denegação da justiça”.
Eis que, agora, cerca de catorze (14) anos sobre o recurso interposto pelos advogados da defesa, o conselho dos juízes do TS em defesa da decisão do tribunal de 1ª instância, sem, no entanto, produzir qualquer fundamentação de facto e de direito. De acordo com o deputado Raúl Tati, “o parágrafo da decisão final do TS é uma falácia sem rigor jurídico ao repetir as mesmas aberrações da Apelada tais como a subversão da ordem constitucional, envolvimento em actos de arruaças e desestabilização, inter alia“.
Talvez, o aspecto positivo, neste acórdão, é ao admitir, para no prazo de 8 (oito) dias, a reclamação dos advogados Luís Fernando do Nascimento e Francisco Luemba sobre o acórdão proferido nos autos de Apelação nº 1045/2006. Deste modo, se a reabilitação da MPALABANDA-ACC for mesmo levada avante, para além das ordens superiores, então Cabinda terá entrado em tempos de mudanças. Neste caso, terão razão os que já especulam que o Governo angolano está “um mãos-largas” no dossier de Cabinda, em especial na questão dos direitos humanos e na evolução do processo de paz.
Porém, as interdições, as repressões em Cabinda ainda são desmedidas; e a Questão de Cabinda – a pedra no sapato do regime «en place», a causa primordial dos actuais atropelos à liberdade e aos direitos humanos em Cabinda – continua na ordem do dia e cada vez mais encalacrado. Pelo que vai ser necessário ver para se acreditar em mudanças para Cabinda.
Entretanto, não deixa de ser lamentável o processo da MPALABANDA-ACC, e de tantos outros processos que temos vindo a acompanhar, desde que Angola é país independente (?), em que o Ministério Público tem andado às boladas com “caça às bruxas” dos activistas dos direitos humanos. São gestores ditos públicos dos órgãos de administração da justiça, continuamente se rendem/vendem aos interesses da classe política dominante.
Se o sistema judiciário angolano é muito bom, os angolanos não se valem de tal valia juridicamente para acrescentar mais-valia à riqueza interna, de onde depende em quase tudo, para viverem deficitariamente como vivem o actual estado de direito democrático (?), caracterizado por um pragmatismo partidocrático, no qual justiça e injustiça são a mesma coisa contanto que sirvam os interesses do partido no poder.
Essa malandragem de colarinho branco, com o interior mais encardido do que qualquer buraco negro, escuda-se sempre na engenharia das malhas de leis de uma Constituição atípica, meticulosamente para si e para os detentores do poder urdidas, em que os advogados de feição e outros agentes da Lei também são principescamente ungidos com altas benesses, por contrapartida às patifarias de condenações de instituições/homens de boa vontade em tribunal, uma vez que os pseudo réus, por delito de opinião, têm os seus defensores nem tidos nem achados.
Poder-se-á afirmar que o sistema judiciário angolano, grosso modo, cabe no mito de um Sísifo, tal como na lenda homérica de que nos fala Albert Camus, na qual Sísifo foi condenado a empurrar incessantemente uma pedra até o topo de um monte apenas para vê-la rolar até em baixo, uma metáfora dolorosa para muitos processos de activistas dos direitos humanos na actual Angola: fúteis e repetitivos, condenados apenas para vê-los absolvidos, depois de algum tempo de tormentos ou simplesmente para vê-los afastados da esfera de intervenção social.
A negativa do Ministério Público e dos juízes de primeira instância em submeter-se à racionalidade jurídica nos processos de activistas dos direitos humanos faz deles os mais absurdos dos gestores, e o castigo pelo escândalo seria a sua expulsão dos órgãos de administração da Justiça. O momento chave no castigo está naquele instante em que condena um inocente sob ordens superiores e sabe que está a comportar-se como um injusto juiz.
Referimo-nos, no caso em apreço, ao processo de MPALAANDA-ACC, em que uma associação de defesa dos direitos humanos foi banida, enquanto os advogados de defesa tudo tentaram fazer – dentro da legalidade – para que tal “caça às bruxas” não caia em cesto roto, ou para que não prescrevam em tempo útil a condenação por alegações de cunho político, como foi o caso de Sócrates.
O contexto da criação da MPALABANDA-ACC foi terrível, tendo o regime direccionado o seu arsenal bélico para Cabinda depois de terminada a longa guerra civil com a UNITA. Vivia-se em Cabinda uma situação caótica, marcada pela violência armada, sobretudo em 2002 – assassinatos de pacatos cidadãos e violações de mulheres e menores pelas FAA e as perseguições movidas aqui e acolá contra os activistas sociais e empresários de Cabinda pelas forças de segurança do Estado angolano.
O relatório “Terror em Cabinda”, publicado no dia 10 de Dezembro de 2002 pela Comissão Ad-Hoc para os Direitos Humanos em Cabinda, sob a Coordenação de Rafael Marques, descreve um cenário marcado por sangue e carnificina: 50 homens mortos por elementos da Polícia Nacional de Angola e das Forças Armadas Angolanas entre 1997-2002, para além dos desaparecimentos, detenções arbitrárias, torturas, vítimas de abusos sexuais, destruições e pilhagens.
Entre 2003 e 2006, a MPALABANDA-ACC não fazia guerras dialécticas impondo crenças, mas comunicava as liberdades e os direitos de todos, em particular aqueles dos cidadãos de Cabinda e publicava relatórios a denunciar atropelos; compreendera que os actos de violência e de repressão só levariam à cegueira e ao conflito armado e crises a que hoje assistimos em Cabinda bem parecem demonstrá-lo.
Assim, foi uma associação fecunda que suscitou o sonho de uma sociedade fraterna e de paz para Cabinda; pois só quando os detentores do poder político aceitam aproximar-se dos outros actores sociais, não para esmagá-los, mas para encontrar uma ordem justa, é que se torna realmente possível a paz e o desenvolvimento. Pois «a paz será obra da justiça, e o fruto da justiça será a tranquilidade e a segurança para sempre” (Is 32, 17).
Assim, a MPALABANDA-ACC simbolizou uma instituição de desobediência aos deuses de um poder que oprime e mata o homem, como um compromisso de fidelidade à sua missão que é ser esse arbusto das savanas tropicais, a “MPALABANDA” (nome científico = Hymenocardia acida) que resiste às intempéries para defender a vida em face daqueles que a negam. Por esta razão, acabou por pegar a culpa por defender a justiça e a paz, a vida para Cabinda.
Nestas circunstâncias, assim como tantos outros, o processo MPALABANDA-ACC clama pela saúde da Justiça em Angola. A Justiça é um pilar da estabilidade do sistema de um Estado de direito democrático. Ela é parte endógena do sistema político e social, reúne os seus dilemas e as suas virtudes.
(*) Activista dos Direito Humanos