O analista Ricardo Soares de Oliveira considera que o MPLA vai concorrer às eleições de 2022 (se as houver, diga-se) particularmente fragilizado, já que João Lourenço não tem beneficiado da luta contra a corrupção em termos de popularidade, mas sobretudo por que “as pessoas do eduardismo continuam a navegar no mar lourencista”. A estratégia ostracizou Isabel dos Santos e reforçou a tese de que os angolanos são capazes de aprender a viver sem… comer.
Para o especialista em política africana e autor do livro “Angola, Magnífica e Miserável”, o presidente angolano e líder do MPLA (por imposição pessoal de José Eduardo dos Santos) “continua a ter à sua volta pessoas muito implicadas no saque pré-2017” (onde ele próprio está incluído, tanto como vice-presidente do MPLA como ministro da Defesa), fragilizando o – suposto – combate à corrupção.
“João Lourenço não tem colhido muita popularidade da sua luta contra a corrupção. As pessoas têm noção de que o que está em jogo é mais uma vingança pessoal, ou política, do que uma limpeza estrutural”, salientou Ricardo Soares de Oliveira, numa alusão aos processos judiciais contra familiares do ex-presidente, em particular a filha, Isabel dos Santos, com quem – ao tempo – sempre esteve solidário.
“Há uma concentração das sanções mais duras contra a família do ex-presidente”, prosseguiu o investigador, adiantando que embora a luta contra a corrupção em Angola vise sobretudo pessoas associadas ao anterior regime, nem todas estão a ser incomodadas. Como está no ADN do MPLA, há criminosos bons e criminosos bons. Tudo depende do índice de bajulação.
“O domínio judicial em Angola não é inteiramente independente do poder político e a apreciação generalizada é de que é uma luta política”, considera o investigador, defendendo que João Lourenço não recolheu muitos frutos da “ofensiva” internacional contra Isabel dos Santos, após rebentar o escândalo “Luanda Leaks”.
A desconfiança da opinião pública face aos verdadeiros objectivos da luta anticorrupção de João Lourenço aprofundou-se ao longo de 2020, ensombrando até algum do mérito do presidente angolano que trouxe o tema, que até 2017 era tabu, para o centro da vida política angolana.
Por outro, João Lourenço ao convergir com os críticos que, historicamente, atribuíram à corrupção um papel fundamental no percurso do MPLA, compromete o próprio partido.
“É um pau de dois bicos, revela maturidade e lucidez por parte do Presidente ao confrontar esse legado da corrupção, mas também o coloca numa situação difícil pois o partido responsável por essa má governação e pelos resultados decepcionantes da época de ouro em que Angola recebeu receitas petrolíferas extraordinárias é o mesmo partido que está no poder, são as mesmas pessoas”, aponta o académico e docente do departamento de Política e Relações Internacionais da Universidade de Oxford.
Por outro lado, o Presidente não foi capaz de inverter a dinâmica de declínio económico (continua plantar as couves com a raiz para cima) e enfrenta questões externas como a pandemia de Covid-19.
Ainda assim, o MPLA, um partido-Estado, “está numa posição muito favorável para lidar com qualquer desafio eleitoral”, admite Ricardo Soares de Oliveira, considerando que a oposição poderá não ter a capacidade, ou os meios, ou a máquina da fraude escolhida e montada pelo MPLA, para ameaçar este domínio.
“Mas não há dúvida de que o partido [MPLA] vai para estas eleições mais fragilizado do que em qualquer momento desde 1992”, altura em que se realizaram as primeiras eleições multipartidárias em Angola.
Sobre o papel que os jovens, que têm assumido a frente de contestação ao governo, poderão ter, Ricardo Soares de Oliveira notou que o MPLA está também a tentar modernizar-se para “falar” linguagens diferentes, com grupos etários e sociais diferentes.
“Não há dúvida que muito do ‘software’ do partido foca realidades do passado angolano que hoje em dia têm uma relevância muito restrita para a grande massa da população angolana cujas preocupações estão relacionadas com a actualidade”, comentou o académico.
“Até que ponto é que o MPLA, na ausência de uma dinâmica económica positiva nos últimos quatro anos, poderá falar de forma promissora a essas camadas de população é uma questão política sem dúvida preocupante para o partido”, prosseguiu.
Ricardo Soares de Oliveira questiona também até que ponto a juventude, altamente frustrada e com perspectivas de vida muito limitadas, poderá ter uma materialização política que seja mobilizada de forma consistente para um projecto político.
“Hoje, nem a oposição, nem os activistas parecem ser capazes de mobilizar essa entidade mítica, a juventude”, sugeriu.
Assim, um ano depois das revelações do escândalo que ficou conhecido como “Luanda Leaks”, muito mudou para Isabel dos Santos, que viu o seu império desmoronar-se, mas pouco mudou para Angola, considera o investigador Ricardo Soares de Oliveira. E o que mudou foi para pior. Ficou, por exemplo, sem os supermercados Candando e o resultado está à vista: prateleiras vazias.
“Algo mudou, sem dúvida, para Isabel dos Santos, mas para Angola mudou muito pouco”, disse o académico, acrescentando que o impacto do “Luanda Leaks” vai mais longe do que as revelações relativas à principal visada, demonstrando “o `modus operandi` da economia angolana ao longo dos últimos 20 anos e liderada há 45 anos pelo mesmo partido, o MPLA, e o envolvimento não só de pessoas ligadas ao antigo presidente, mas também de responsáveis de bancos, contabilistas, advogados e outros prestadores de serviços internacionais que “mostram a dimensão sistémica do saque de Angola”.
O “Luanda Leaks” poderia “impulsionar uma reforma estrutural da economia angolana”, contribuindo para punir pessoas que tiveram um papel de relevo no saque e para a reconstrução das instituições da economia angolana, para impedir que o saque se repetisse no futuro, mas “isso não está a ser feito”, argumentou, sem recordar que, de facto, se resultasse o MPLA (partido com o maior número de corruptos por metro quadrado) acabaria.
“Por ora, temos uma espécie de telenovela em que a “princesa má” finalmente recebe o castigo que merecia e a dimensão sistémica tem sido ignorada. Há quem diga que a procissão ainda vai no adro e que o presidente tem a intenção, a longo prazo, de avançar com essa limpeza estrutural, vamos ver”, afirmou o professor do departamento de Política e Relações Internacionais da Universidade de Oxford.
Para Ricardo Soares de Oliveira, o “Luanda Leaks” foi um fenómeno com impacto sobretudo fora de Angola, servindo essencialmente para debilitar e minar a respeitabilidade de Isabel dos Santos no plano internacional, sobretudo em Portugal, país onde as consequências foram mais graves.
“No caso de Portugal, temos uma dependência e uma deferência em relação ao contexto angolano muito grande. Até 2017, Isabel dos Santos estava rodeada de bajuladores em Lisboa – a quase totalidade da classe política e empresarial. No dia em que João Lourenço deixa cair a família dos Santos, os apoios de Lisboa começaram a desaparecer e Isabel passou a ser diabolizada”, justificou o especialista, realçando que Portugal tem “marchado ao som da música angolana, anteriormente eduardista e agora lourencista”.
Ricardo Soares de Oliveira nota que a maneira como são vistos os principais protagonistas também se foi alterando. O presidente João Lourenço beneficiou, no início, de grande popularidade quando decidiu atacar de forma directa o seu ex-presidente e mentor e algumas pessoas mais próximas, entre finais de 2017 e princípios de 2018, altura em que a sociedade angolana sentia “um imenso ressentimento” em relação à família dos Santos. Mas a opinião pública mudou.
“Hoje, as pessoas não colocam questões sobre a governação de há dez anos atrás, mas sobre a situação actual, e há uma percepção de que o presidente João Lourenço não resolveu nenhuma das grandes questões estruturais, que têm a ver com a economia e o desemprego”, apontou.
E enquanto a hostilidade para com Isabel dos Santos se foi dissipando, ganhou força o medo face ao destino que terão as suas empresas.
“Em Dezembro de 2019, quando o Estado tomou conta das empresas de Isabel dos Santos — a maior empregadora de Angola fora do sector público – a reacção que obtive por parte de muitos angolanos foi: estas empresas vão voar”, disse o investigador.
E apesar de nem todos terem feito previsões tão sinistras (alguns limitaram-se a dizer que o Estado é incompetente, recorda Ricardo Soares de Oliveira), a percepção genérica quando foi conhecida a decisão de arrestar bens, contas e participações sociais da empresária angolana foi de hesitação e receio.
“Havia toda uma classe média alta, entre Luanda e Talatona, que trabalha para aquelas companhias, uma classe urbana do sector privado que ficou com medo de que a intervenção do Estado estragasse as empresas”, sublinhou.
Folha 8 com Lusa