O Tribunal Constitucional (TC) angolano considera “inconstitucionais” as normas da Lei sobre Identificação ou Localização Celular e Vigilância Electrónica que atribui competências ao Ministério Público (MP) para ordenar, autorizar e validar escutas telefónicas e gravação em ambiente privado. Hum!
No acórdão 658/20, de 15 de Dezembro, tornado público em finais de Dezembro, o plenário de juízes do TC dá provimento à acção intentada pela Ordem dos Advogados de Angola (OAA), referindo que tal competência é de um juiz de garantia e não do MP.
A Lei sobre Identificação ou Localização Celular e Vigilância Electrónica foi aprovada em Abril de 2020 pelo Parlamento e na sequência a OAA deu entrada de um processo no TC sobre fiscalização sucessiva e abstracta da constitucionalidade das normas desse diploma.
A Ordem dos Advogados de Angola, na sua fundamentação, considera que qualquer acto dessa natureza (escutas telefónicas), sem justificação fundamentada e autorização de um juiz é contrário às obrigações do Estado angolano, assumidas com a ratificação, em 1991, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
O direito à privacidade e à intimidade, a inviolabilidade do domicílio e a inviolabilidade da correspondência e das comunicações, previstos na Constituição angolana (que, acrescente-se, se subordina quando necessário à “Constituição” do MPLA), são “bens jurídicos fundamentais que só podem ser privados, limitados ou restringidos por autorização judicial”, observa a OAA.
Como argumento, segundo o acórdão, o Parlamento refere que “a nossa organização judiciária não tem hoje a intervenção de magistrados judiciais na fase de instrução preparatória”.
Para o Parlamento (dominado pelo MPLA), adianta o acórdão do TC, “a criminalidade organizada em Angola é cada vez mais complexa, porquanto os criminosos fazem uso de meios electrónicos, capazes de ocultar a actividade criminosa ou de dificultar a acção da polícia para o esclarecimento de crimes e responsabilização dos seus agentes”.
“Entendo a Assembleia Nacional (Parlamento) que as medidas ou diligências poderiam ser desde já aplicadas, não quis deixar os cidadãos desprotegidos dos seus direitos, liberdades e garantias fundamentais e optou por atribuir tal competência ao MP”, lê-se no texto aludindo à resposta do Parlamento.
Porém, após apreciar os argumentos do recorrente e do Parlamento, o plenário de juízes do Constitucional considera que legislador ordinário ao permitir que o MP autorize e valide escutas telefónicas, conforme determina a referida lei, “tal situação põe o arguido numa posição enfraquecida e desvantajosa face ao MP”.
A Lei sobre Identificação ou Localização Celular e Vigilância Electrónica, ao atribuir ao Ministério Público, efectivos e reais poderes jurisdicionais, “contraria os preceitos estabelecidos pelo legislador constitucional”, refere o TC.
Nos termos da Constituição, argumentam os juízes do TC, “compete ao Ministério Público a titularidade da acção penal, sendo que em determinadas fases do processo acaba assumindo o papel de parte, ainda que em sentido formal”.
“A posição ocupada no processo vulnera, de certa forma, a imparcialidade em relação ao arguido, pois, havendo investigação em curso, o juízo que mais influencia o MP em relação ao arguido é a suspeita, e isto pode prejudicar de certa forma a objectividade que se exige”, assinala o plenário do TC.
O Tribunal Constitucional, “ao admitir a fundamentação da Assembleia Nacional, estaria a abrir um precedente que consiste, propriamente, no sacrifício das normas constitucionais em prol das leis ordinárias”.
Tendo em conta os “preceitos que norteiam o Estado democrático e de direito”, o TC entende que as normas da referida lei, que dão poder ao MP de autorizar, ordenar e validar escutas e gravação ambiental em locais privados, condicionados ou de acesso vedado, “são inconstitucionais”.
No dia 15 de Outubro de 2010, o Presidente da República, João Lourenço, discursou na reunião plenária solene que marcou o arranque do ano parlamentar em Angola. Como esperado, o discurso sobre o Estado da Nação nada mais foi do que uma mão cheia de nada, um exercício de malabarismo dialéctico com laivos de demagogia.
“Para a consolidação do Estado de Direito e para a Prevenção e Combate à Corrupção e Impunidade, um dos pilares do novo paradigma de governação, é fundamental a acção do organismo reitor da Justiça e dos Direitos Humanos, onde há progressos que devem ser assinalados”, referiu o presidente, enumerando – o que fica sempre bem – que “no plano legislativo, tem havido a aprovação de diplomas fundamentais, por exemplo a Lei da Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais, Financiamento do Terrorismo e da Proliferação de Armas de Destruição em Massa e a legislação no domínio das Técnicas Especiais de Investigação e Obtenção de Prova como a Vigilância Electrónica, o Regime de Identificação e Localização Celular ou o Regime de Escutas Telefónicas”.
Desde 2002, o MPLA tem conseguido fingir que democratiza o país e, mais do que isso, conseguiu domesticar completamente todos aqueles que lhe poderiam fazer frente.
Recordemos que, por exemplo, o então ministro Georges Chikoti disse não estar preocupado com a campanha internacional para a libertação dos então presos políticos (Revús) em Angola, jurando que eles estavam a preparar um golpe de Estado. Nada mais, nada menos. Um golpe de Estado.
Recorde-se que o MPLA não precisa de escutas para saber o que se passa… ou passará. Na altura, a campanha internacional pela libertação dos activistas mostrou que todos se esquecem que o MPLA é o único representante de Deus na Terra e que, por isso, tem poderes adivinhação que o levam até a saber com exactidão milimétrica o que as pessoas pensam… ou tencionam pensar!
Foram, aliás, esses poderes que permitiram a prisão dos jovens em flagrante delito: estavam nesse momento a pensar numa solução para derrubar o MPLA. E isso constitui só por si matéria de facto para os mandar matar.
Além disso, não foram necessárias outras provas. Para que serviriam ao regime as armas (as tais que estavam camufladas), ou os milhões de guerrilheiros (os tais que estavam no quintal debaixo da mangueira)? Saber o que os jovens pensavam foi condição “sine qua non”.
Folha 8 com Lusa