A manifestação de 24.10.20 deixou marcas indeléveis no corpo e na mente de quem a viveu e, depois, sentiu na carne as agruras de um encarceramento forçado e injusto, pelo simples crime de, no exercício da sua profissão. estar a cobrir um acto noticioso, também, com respaldo constitucional; o direito de informar. Foi, é, o caso de Suely de Melo.
Por William Tonet
O regime, através do seu braço policial, na saga de coarctar direitos e garantias fundamentais, extrapolou competências ao encarcerar cerca de uma dezena de jornalistas, que nada mais faziam do que corporizar um acto público merecedor de cobertura informativa.
O crime de Suely Melo, uma jovem irreverente, mas determinada, desde os tempos de faculdade, foi o de estar a cobrir uma manifestação de jovens, sem tomar partido, aliás quem ostensivamente o tomou obteve cobertura policial, a imprensa pública, que é um tentáculo do partido no poder. Ela, como jovem jornalista do Semanário Valor Económico, viveu momentos indescritíveis, que jamais esquecerá, assegurou… mas que são um tónico para nunca mais deixar de abraçar a profissão, como deixa expresso, nesta entrevista exclusiva, ao Folha 8.
Folha 8 – Quando e onde foi detida, pelas forças policiais?
Suely de Melo – Fui detida no passado dia 24 de Outubro de 2020, por volta das 10h30. Não conheço bem, o local, mas chamam-no de zona do “Volante”.
F8 – Mas vocês estavam no meio dos manifestantes, na altura da detenção?
SM – Não! No momento da detenção estávamos, a caminho da redacção, portanto no carro.
F8 – Não estava identificada com o passe do seu órgão de comunicação social?
SM – A todo o momento estava com o passe ao pescoço e fazia questão de levantá-lo para que o vissem bem.
F8 – Não estaria, ainda assim, confundida como se de manifestante se tratasse, com algum cartaz ou panfleto?
SM – Não! Estava no local, simplesmente, como profissional de jornalismo e não como manifestante, portanto, não levava nada disso comigo.
F8 – Existe alguma acusação para a sua detenção e a dos outros jornalistas?
SM – Até ao momento não há nenhuma acusação, tão pouco explicação para a nossa detenção.
F8 – Foi agredida no momento e depois da sua detenção?
SM – Sim! No momento da detenção fui agredida fisicamente e, durante as quase 60 horas de detenção, psicologicamente, agredida. Aliás só o facto de estar detida injustamente e sem explicação já configura uma agressão.
F8 – Os agentes da Polícia Nacional e do SIC retiraram-vos os meios profissionais?
SM – Afirmativo. Retiraram os nossos telefones e a câmara do meu colega.
F8 – Qual a acusação que pende contra vocês?
SM – Aí é que está o problema, até ao momento, não há acusação alguma…
F8 – Foi presente ao tribunal?
SM – Não chegamos a ir a tribunal.
F8 – Então como foi a sua soltura?
SM – No dia 26.10.20 (segunda-feira) de manhã retiraram-me da cela, mandaram-me subir no carro-cela para ser encaminhada ao tribunal. Posta lá, na companhia de outros colegas e, com o carro em movimento parece terem recebido uma ordem contrária e, descemos do carro.
Folha 8 – E qual a justificação, alguém falou convosco?
SM – Sim! O director do SIC veio ter connosco e disse que lamentava o que tinha acontecido, mas que devíamos ter acatado o conselho do comandante e ter ido embora (era precisamente o que tentávamos fazer no momento da detenção)… Depois de muita burocracia, entre assinatura de papéis, audição com um procurador e mandado de soltura, por volta das 16h00 saímos do local, em liberdade.
F8 – Descreva como foram os momentos em que esteve como prisioneira?
SM – Foi muito caricato. Um misto de incredulidade e incerteza, primeiro porque não tínhamos informação nenhuma do que se passava aqui fora, não sabíamos até que ponto as pessoas estavam preocupadas connosco, não sabíamos qual era a acusação que pesava sobre nós. Sem falar das condições precárias da cela, a existência de mosquitos, ratos, colchões de espuma rasgados (até hoje tenho dores nas costas). Eu não tinha roupa, escova, entre outros produtos de higiene. Os meus familiares sentiram medo de deixar a comida que levavam, porque não seriam eles a entregar-me, pessoalmente, então não sabiam até que ponto era confiável deixar lá a comida, portanto praticamente não comi e, naturalmente, também quase não dormi…
F8 – Mas ao menos bebia água, lá não falha o precioso líquido?
SM – As detidos armazenam água numas garrafas de 5 litros, porque é tirada num pátio exterior onde costumam apanhar sol, mas nos dias que lá passamos, estavam “de castigo”, não apanhavam sol, portanto, a água armazenada já lá estava há algum tempo. Não me senti confortável em usar aquela água, como algumas detidas tinham água mineral, elas em solidariedade deram-me. Não havia papel higiénico, apenas, mais uma vez tive de utilizar, guardanapo das detidas…
F8 – Quantos jornalistas estiveram presos?
SM – Éramos 6 jornalistas, 4 da GEM, 1 da TV Raiar e outro não sei qual o órgão.
F8 – Depois desta triste experiência vai abandonar a profissão de jornalista?
SM – Agora tenho ainda mais vontade de exercer a profissão e lutar pelo direito de todo e qualquer cidadão de estar e ser informado.
F8 – Não acredita haver mais liberdade de informação e expressão, no país?
SM – Acho que eu seria a última pessoa a ser questionada sobre a liberdade de expressão, até porque sou a prova viva da sua inexistência. Posso colher a justificação de que os polícias que nos prenderam são de baixa escolaridade e não saibam muito de leis, entretanto passamos por muitos “avisados” o que demonstra que claramente nos queriam amedrontar e intimidar.
F8 – Acredita que com esta prisão os jovens poderão desistir de reivindicar, manifestar e no seu caso, repito, de fazer jornalismo?
SM – Acredito que não! Somos uma nova geração, com mais vontade de ver o país diferente e hoje já se faz jornalismo até numa simples plataforma na internet, então basta acreditarmos e não desistirmos.