Sérgio Raimundo, advogado de defesa do ex-governador do Banco Nacional de Angola (BNA), Valter Filipe, acusou hoje o Ministério Público de “só estar virado para condenações” e disse que as orientações do ex-presidente angolano deu ao seu constituinte não constituem um crime. Seria, entretanto, aconselhável que a PGR investigasse quem ficou com as acções de João Lourenço no Banco Sol, com o aval do BNA, então dirigido por… Valter Filipe.
“A justiça não se faz só com condenações, também se faz com absolvições” quando “não há nada que possa sustentar a imputação de responsabilidade criminal às pessoas”, sublinhou.
Sérgio Raimundo disse que o MP está num “desnorte” face às respostas que foram dadas pelo ex-presidente angolano, José Eduardo dos Santos, às perguntas que foram colocadas pela defesa de Valter Filipe, hoje lidas no Tribunal Supremo, em Luanda.
Segundo o advogado, as respostas de José Eduardo dos Santos, confirmam que a alegada transferência irregular de 500 milhões de dólares, que está em causa no julgamento, se tratou afinal de uma operação cujo fim não seria beneficiar os envolvidos, e sim mobilizar um financiamento para ajudar o país a sair da crise económica e financeira em que se encontra.
“O meu constituinte só agiu em nome da representação do Estado por mandato do então titular do poder executivo”, frisou Sérgio Raimundo.
O ex-presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, confirmou hoje ter orientado o antigo governador do Banco Nacional de Angola (BNA), um dos arguidos neste processo, relativamente a uma transferência de 500 milhões de dólares (461 milhões de euros), garantindo que tudo foi feito no interesse público.
Sérgio Raimundo adiantou ainda que o Presidente da República, segundo a Constituição, não responde criminalmente pelos actos praticados no exercício das suas funções, pelo que se a decisão de José Eduardo dos Santos não teve mérito, isso não deve ser qualificado como um ilícito criminal.
“É um demérito que as pessoas acham que teve, mas na perspectiva de outras pessoas teve mérito, que foi tentar chegar a um financiamento para tentar salvar Angola da situação em que se encontra”, acrescentou.
Na mesma lógica, “quem executou [Valter Filipe], cumpriu um dever legal e hierárquico que era devido e não pode ser responsabilizado por isso”.
Questionado sobre as dúvidas do Ministério Público sobre a carta envida pelo antigo presidente, que obrigaram o tribunal a interromper a sessão, Sérgio Raimundo considerou que se o documento for falsificado, José Eduardo dos Santos está em condições de o desmentir.
“Não estou a ver ninguém neste planeta com capacidade para falsificar um documento com declarações tão contundentes como esta. Ele [o ex-presidente] ainda não morreu, está vivo e se alguém está a falsificar essa resposta, ele estará à altura de, a qualquer momento, vir a público e dizer que as declarações não são dele”, realçou.
A solicitação para ouvir José Eduardo dos Santos foi pedida pela defesa do arguido Valter Filipe, ex-governador do BNA, que está a ser julgado com os co-arguidos José Filomeno dos Santos, filho de José Eduardo dos Santos e antigo presidente do Fundo Soberano de Angola, o empresário Jorge Gaudens Sebastião e o director do departamento de gestão de reservas do BNA, António Samalia Bule Manuel.
Na base deste caso, está a suposta transferência indevida de 500 milhões de dólares do Estado angolano para um banco no exterior do país, resultante de uma proposta apresentada em 2017 pelo arguido Jorge Gaudens Sebastião ao Estado angolano, para a criação de um fundo estratégico de investimento para o país, que captaria 30 mil milhões de dólares, para a promoção de projectos estruturantes.
Na carta, datada de 6 de Fevereiro, e hoje lida no Tribunal Supremo, em Luanda, José Eduardo dos Santos confirma ter dado orientações a Valter Filipe e ao ex-ministro das Finanças, Archer Mangueira, para realizarem as acções necessárias para conseguir a captação do dinheiro disponível neste fundo.
Indiciou ainda que estas acções serviriam para obter um financiamento que iria contribuir para a saída da crise económica e para a promoção do desenvolvimento económico e social e para o progresso do país.
Segundo escreveu, as suas orientações serviriam para o cumprimento destes desígnios, “tendo em atenção o interesse público”.
Os réus estão acusados de diversos crimes, designadamente burla por defraudação, branqueamento de capitais e tráfico de influência, para os arguidos José Filomeno “Zenu” dos Santos, ex-presidente do Fundo Soberano de Angola, o empresário angolano Jorge Gaudens Sebastião, e burla por defraudação, branqueamento de capitais e peculato para os arguidos António Bule Manuel, então director do departamento de gestão de reservas do BNA, e Valter Filipe, ex-governador do BNA.
O negócio, que supostamente contaria com um consórcio de bancos, tinha como “condição precedente”, de acordo com um comunicado do Governo angolano, emitido em Abril de 2018, que anunciava a recuperação dos 500 milhões de dólares, a capitalização de 1.500 milhões de dólares (1.218 milhões de euros) por Angola, acrescido de um pagamento de 33 milhões de euros para a montagem das estruturas de financiamento.
Quem ficou com as acções de João Lourenço no Banco Sol?
Uma investigação jornal português Expresso, assinada pelo jornalista Nelson Francisco Sul, revela que a participação de 5,42% do Presidente angolano, João Lourenço (suposto paladino da luta contra a corrupção, a impunidade e o nepotismo) no Banco Sol foi colocada em funcionários de ex-assessor de Eduardo dos Santos. Com a devida vénia transcrevemos o referido artigo.
«Faltavam quatro meses para as eleições gerais de 2017 em Angola, já com indicadores de que a transparência e o fim da promiscuidade na relação gestores públicos e privados estariam em foco na campanha eleitoral, quando João Lourenço deixou de fazer parte da estrutura accionista do Banco Sol, colocando as suas acções em nome de uma sociedade anónima registada em nome de cinco pessoas.
Trata-se da AZURY- Serviços de Consultoria, SA, criada com um capital social de 2 milhões de Kwanzas (€11 mil à taxa de câmbio oficial da altura), na Loja de Registos e Notariado do Cassenda, em Luanda, a 17 de Fevereiro de 2017.
Neste mesmo ano, a 9 de Março, acontecia a publicação da empresa em “Diário da República”.
Os documentos relativos à constituição da sociedade foram assinados na firma de advogados CFA, acrónimo de Carlos Feijó e Advogados, situada no 15º andar do edifício CIF Luanda One, rua 1º Congresso do MPLA.
Mas foi registada com o endereço social (sede) na Rua Marechal Brós Tito, nºs 35/37, Edifício ESCOM, sexto (6º) andar, onde funcionava uma dependência do escritório de Feijó, actual membro do Bureau Político do MPLA e antigo assessor e ministro de Estado e chefe da Casa Civil na presidência de José Eduardo dos Santos.
A investigação do Expresso apurou que três dos subscritores da referida sociedade são funcionários de Carlos Feijó: Lucrécia António Garcia, auxiliar administrativa; Domingos da Silva Luís, chefe de transportes; e Adriano Gomes da Costa (não conseguimos identificar a função).
O Expresso não conseguiu apurar se os outros accionistas formais que representam as participações do Presidente Lourenço, nomeadamente José Dias dos Santos e Paulino Inácio, serão também funcionários do político e advogado Carlos Feijó.
Além de funcionários de Feijó há um outro elemento importante que liga os accionistas da AZURY, SA.: todos eles vivem em bairros pobres da província de Luanda, como Rangel e Samba.
Alguns deles, por exemplo, residem no bairro da Terra-Nova, município do Rangel, um conhecido subúrbio da cidade angolana.
De resto, a colocação das acções de João Lourenço em nome de funcionários do escritório de Carlos Feijó tem sido o modus operandi de vários governantes e dirigentes políticos que, por força da lei, não podem exercer funções empresariais e que, por isso, indicam as suas cozinheiras, escriturários, estafetas ou motoristas como proprietários do seu património.
Desde 2011 que João Lourenço detinha 5,42% do capital social do Banco Sol, não se conhecendo os meandros da sua entrada na estrutura, muito menos da saída, indirecta, da instituição bancária fundada a 2 de Outubro de 2001.
A saída, de resto, não foi objecto de qualquer informação pública, tanto da parte do Presidente angolano como do banco dirigido por Coutinho Nobre Miguel.
Aliás, a agenda de trabalhos da reunião da assembleia-geral ordinária de accionistas, realizada no dia 7 de Abril de 2017, abarcou apenas a discussão e aprovação do Relatório e Contas, análise dos relatórios e pareceres do Auditor Externo e do Conselho Fiscal, distribuição e aplicação dos dividendos, plano de consolidação, modernização e desenvolvimento e aumento do capital social.
A alteração na estrutura societária do sétimo maior banco em activos do sistema financeiro angolano voltou a não fazer parte da reunião seguinte, que juntou accionistas a 6 de Abril de 2018 na sua sede, com o exercício do ano anterior em discussão.
Coutinho Nobre Miguel, presidente do conselho de administração e administrador não executivo do Banco Sol, explica que, apesar de não ter sido feito publicidade, “a saída do accionista João Lourenço foi discutida internamente”.
“O que aconteceu é que o accionista (Presidente da República) decidiu alienar as suas participações em nome da empresa Azury porque os demais accionistas prescindiram do direito de preferência”, começou por esclarecer o principal gestor da instituição bancária, que, sem avançar mais pormenores, assegura que “foram cumpridos todos os procedimentos legais e que tiveram o aval do Banco Nacional de Angola (BNA)”, à época dirigida por Valter Filipe.
Entretanto, fontes do Expresso que pediram para não ser identificadas, descartam qualquer hipótese de João Lourenço ter vendido as suas participações.
“O que o Presidente fez foi colocar à guarda as suas acções em função das actuais responsabilidades políticas e governativas, porque não queria misturar negócios e a política”, asseguraram três responsáveis da instituição bancária.
Um gestor de topo do BNA, o regulador do sistema financeiro de Angola, diz que, devido à elevada “exposição política” do Banco Sol, que tem accionistas maioritariamente dirigentes do Bureau Político e do Comité Central do MPLA, “o ideal seria o banco e o accionista em referência prestarem alguma informação aquando da operação, até mesmo para salvaguardar os riscos reputacionais da instituição”.
Perguntas enviadas há mais de dois meses a João Lourenço por intermédio do seu secretário para os Assuntos de Comunicação Institucional e de Imprensa, Luís Fernando, ficaram sem resposta.
Uma delas era sobre o que o levou a colocar as suas participações em nome de funcionários de Carlos Feijó, ao invés, por exemplo, de familiares directos e por que razão ao assumir a função de Presidente da República não anunciou publicamente como ficaria a gestão da sua participação societária no Banco Sol.
Entretanto, semanas depois de ter sido confrontado com o questionário, o Presidente da República concedeu uma entrevista conjunta ao semanário angolano “Novo Jornal” e à Televisão Pública de Angola, na qual explicou que fez a sua declaração de bens e rendimentos na Procuradoria-Geral da República, conforme manda a lei, e que o conteúdo do documento, com detalhes sobre a sua participação societária na instituição bancária, só poderá ser tornado público “caso eu venha a ter algum problema e a justiça seja obrigada a violar, digamos, o lacre do envelope que entreguei”.
Também pedimos esclarecimentos ao advogado Carlos Feijó, na qualidade de partner da firma de advogados que defende os interesses da sociedade comercial que “protege” a posição societária de Lourenço no Banco Sol.
Este recusou-se a comentar, remetendo a sua reacção para os esclarecimentos prestados pelo presidente do conselho de administração do banco.
“A informação que disponho é a de que o presidente do Banco Sol, Coutinho Nobre Miguel, forneceu todos esclarecimentos. Não sou seguramente a pessoa indicada para dar informações sobre acções em bancos, que devem ser da exclusiva responsabilidade dos bancos”, afirmou Feijó, por SMS.
Embora aplaudida em alguns círculos, a decisão do Presidente da República merece uma observação crítica do economista Alves da Rocha, director do Centro de Estudos e Investigação Científica (CEIC) da Universidade Católica de Angola (UCAN), para quem “o Presidente tem o dever e a obrigação de informar os cidadãos sobre a sua vida financeira”.
“Por uma questão de transparência, atendendo aos desafios de combate à corrupção que o Presidente Lourenço se propôs, era fundamental saber com que património entrou e com que património vai sair”, disse o economista, acrescentando que “temos de saber com quem estamos a lidar”.
Em jeito de conclusão, Alves da Rocha, também membro do Conselho Fiscal do Fundo Soberano de Angola, deixa um conselho: “Penso que seria um passo importante de modo a que se consiga renovar a confiança no Presidente Lourenço”.
Numa das sessões parlamentares relativas à discussão da lei sobre o repatriamento coercivo de capitais, o deputado pela CASA-CE, Makuta Nkondo, defendia que João Lourenço e a mulher, Ana Dias Lourenço, antiga representante de Angola no Banco Mundial e ex-ministra do Planeamento no Governo de Eduardo dos Santos, deviam “declarar publicamente as suas fortunas, os seus bens móveis, imóveis, corpóreos e incorpóreos” e “explicar onde estão, em nome de quem e como os adquiriram”.
O economista Precioso Domingos, professor de Economia Internacional na UCAN e investigador sénior do CEIC, afirma que, sendo o Presidente da República uma figura que integra o grupo das pessoas politicamente expostas, e tendo em conta que apregoa a transparência e o combate à corrupção, “era fundamental que desse informações sobre o seu património e como ficaram as acções no Banco Sol, para evitar que, venha a ser acusado de enriquecimento ilícito”.
Mas o economista não acredita que o Presidente angolano “tenha interesse em levantar poeira”, sob pena de “também ser visto como alguém que acumulou riqueza no passado” e um dos beneficiários do “banquete” [expressão introduzida no léxico político angolano pelo sucessor de Eduardo dos Santos para classificar os que se enriqueceram às custas do Estado].
Por seu turno, Sérgio Raimundo, um dos mais renomados advogados criminalistas do país, diz que a falta de informação sobre a saída de João Lourenço, principalmente por parte da própria instituição bancária, tem muito que ver com a cultura de transparência nas instituições angolanas, em particular as que mantêm ligações excessivamente políticas.
“Esconder este tipo de informação só prejudica a reputação do banco, mais ainda porque, a nível internacional, os investidores e as instituições bancárias têm enormes dificuldades em trabalhar com bancos ligados a governantes ou a pessoas politicamente expostas”, afirmou.
Raimundo defende, por isso, uma “urgente” alteração da legislação em vigor sobre a declaração de bens e rendimentos: “Se quisermos aplicar mesmo a transparência, não podemos ter condutas ocultas”.
Até Dezembro do ano passado (2018), integravam a estrutura accionista do Banco Sol, entre particulares e accionistas colectivos, a Sansul SA, com 51,00% do capital, a Fundação Lwini, com 10,00%, Noé Baltazar (5,42%) e a ex-primeira-dama de Angola, Ana Paula dos Santos (5,4%), a Sociedade Comercial Martal, LDA (5,42%), o antigo ministro das Finanças Júlio Marcelino Bessa (4,17%), Coutinho Nobre Miguel (3,91%), António Mosquito (6,33%) e AZURY, SA (5,42%).»