João Lourenço, ou seja o Governo de Angola, ou seja o MPLA, ou seja o Estado, afinal continua zangado com Portugal. Depois da batalha ganha com o “trunfo” Manuel Vicente, o objectivo agora é vencer a guerra. E o trunfo desta vez é Isabel dos Santos. Registe-se, no entanto, que João Lourenço ainda não deixou cair a máscara de democrata e de defensor de um Estado de Direito para, assim, declarar “guerra” a Portugal.
Por Orlando Castro
O processo, despacho, sentença que a PGR subscreveu contra Isabel dos Santos, é uma peça brilhante do ponto de vista partidário, brilhantíssima no contexto da propaganda mas, como era de esperar, muito pobre no âmbito jurídico.
Ao contrato de Manuel Vicente que, não sendo julgado em Portugal também nunca o será em Angola pois aqui goza de imunidade, impunidade e de uma outra vasta série de prerrogativas que constam de leis ainda não elaboradas mas que o podem ser a qualquer momento, sempre com efeitos retroactivos, Isabel dos Santos já foi condenada. Como qualquer autóctone que se preze é considerada culpada até prova em contrário. Já era assim, acrescente-se, no tempo de José Eduardo dos Santos.
A criação, pelo regime de João Lourenço, de um sentimento anti-português está a ganhar adeptos. No dia 26 de Abril de 2018, por exemplo, o ex-deputado à Assembleia Nacional, Diogo Ventura, afirmou que o Governo português há muito devia apresentar desculpas às antigas colónias, pelo longo período de escravatura. Todos os argumentos são válidos para, 44 anos depois, acusar Portugal de todos os nossos males.
No dia 8 de Janeiro de 2016 o Governo angolano considerou existir “maturidade e serenidade bastantes” entre Lisboa e Luanda para “resolver e ultrapassar os eventuais mal-entendidos” e transmitiu a Portugal a sua “vontade política de sedimentar as relações” entre os dois países. João Lourenço não gostou desta afirmação e, pelos exemplos da sua gestão, terá dito que a vingança se serve fria.
Para melhor oportunidade ficou o agradecimento do regime ao facto de a “coligação” PSD, CDS-PP e PCP terem rejeitado um voto de condenação apresentado na altura pelo Bloco de Esquerda sobre a “repressão em Angola” e com um apelo à libertação dos “activistas detidos”, iniciativa que teve a abstenção do PS.
A mensagem do Governo, na altura liderado por José Eduardo dos Santos, foi transmitida pelo ex-embaixador angolano em Portugal, José Marcos Barrica, ao ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva.
O embaixador sustentou (sem ouvir o futuro Presidente) que havia “maturidade e serenidade bastantes entre as legítimas autoridades de ambos os Estados para que, em sede própria, sejam resolvidos e ultrapassados os eventuais mal-entendidos ou até espevitações mal-intencionadas de quem, por qualquer razão subjectiva, esteja a desfavor de um bom relacionamento entre os nossos países e povos”.
Marcos Barrica considerou haver “relações de cooperação entre Estados que devem ser mantidas e incrementadas na base da confiança mútua e respeito recíproco”. Estragou tudo. Isso era na Angola antes de Isabel dos Santos ser “criminosa-mor”.
O diplomata mostrou-se convicto que os executivos dos dois países “continuarão a trabalhar nesse sentido, apesar de haver alguns ruídos nas relações, o que é natural na dinâmica dos processos de interacção humana”.
Na audiência, o diplomata angolano entregou ao ministro português uma missiva, na qual o então chefe da diplomacia angolana, Georges Chikoti (entretanto “amarrado curto” por João Lourenço), o felicita pela sua nomeação e apresentava em nome do Governo de Angola e em seu nome pessoal, “as sinceras felicitações, assim como os votos de prosperidade para o povo português”.
Na missiva, o ministro angolano exprimiu “o desejo de continuar a trabalhar para que as relações de amizade e de cooperação existentes entre a República de Angola e a República Portuguesa se fortaleçam nos mais variados domínios, no interesse dos dois povos e governos”.
Segundo a nota da embaixada angolana, a mensagem que José Marcos Barrica entregou a Augusto Santos Silva “traduz um sinal claro e inequívoco da vontade política continuada do Governo de Angola de sedimentar as relações entre ambos os governos, mas sobretudo entre os povos, que se ligam por laços históricos e afectivos profundos e que não devem, por isso, ser negligenciados”.
Nada se perde… sempre para os mesmos
A partir da altura em que o dono de Angola deu um ultimato político a Portugal, consubstanciado no fim, ou no adiamento sine die, da parceria estratégica, os tribunais portugueses – por determinação política – subjugaram-se e passaram a, juridicamente, ter uma só sentença em relação a qualquer questão que envolva altos dignitários do regime: arquive-se. É claro que, ao que tudo agora indicia, Isabel dos Santos não será considerada pelo Governo português como alto dignitário do regime.
Pelo menos nos próximos anos não vale a pena intentar qualquer acção contra os homens (e mulheres) de João Lourenço. Lisboa rendeu-se e, como tal, encontra todos os subterfúgios legais, mas sobretudo políticos, para nada fazer. As excepções são todos os que tenham ligação familiar a José Eduardo dos Santos.
E, de facto – não de jure -, as razões de Estado são uma espécie de albergue onde cabe tudo o que interessa a Portugal, nem que isso seja um atropelo às regras de um Estado de Direito. Ou seja, permite (ou tem permitido) que a pedido do Governo angolano (primeiro de Eduardo dos Santos e agora de João Lourenço) se lavre a sentença antes da averiguação dos factos. Primeiro arquiva-se ou criminaliza-se (no caso de Isabel dos Santos) e depois articula-se juridicamente os argumentos que sustentem esse veredicto. Simples. É assim que funciona em Angola, portanto…
Num Estado de Direito uma das regras fundamentais é dar à política o que é política e aos tribunais o que é dos tribunais. Em Portugal nada disso é assim. E então em Angola nem vale a pena falar. A promiscuidade é tal que, cada vez mais, os tribunais fazem política e a política investiga e dá sentenças.
Cérebros vazios de Lisboa
Os cérebros que gravitam no governo (ou em organismos para-governativos) de António Costa, tal com os que antes faziam o mesmo no de Passos Coelho, sabem que o futuro de uma qualquer parceria estratégica passa pelo índice de bajulação e subserviência de Lisboa junto do MPLA.
Mais do que declarações políticas de ministros portugueses, o regime do MPLA/Estado exige que os seus dirigentes estejam acima das leis e que, como por cá, gozem de total imunidade e impunidade. Enquanto isso não for assumido sem subterfúgios por Lisboa, Portugal chupará cada vez menos nas tetas disponibilizadas por João Lourenço.
Luanda não aceita, repita-se, desvincular seja o que for do direito – que entende soberano – de exigir ao antigo colonizador que os seus dilectos e impolutos dirigentes estejam sempre acima de qualquer suspeita, por mínima que seja. Também não admite que Lisboa critique a decisão de o MPLA considerar que até prova em contrário Isabel dos Santos é… culpada.
Em Portugal, o presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, foi uma das mais proeminente figuras portuguesas na bajulação ao regime de José Eduardo dos Santos e ao seu clã. Apesar da mudança, certamente que o autarca manterá a mesma ausência de carácter nas relações com João Lourenço. Desde logo porque, como tanto gosta o MPLA, pouco se importa que Angola seja um dos países mais corruptos do mundo e um dos países com um vergonhoso índice de mortalidade infantil do mundo.
Rui Moreira (que, é claro, não pode ser confundido com a população do Porto), está-se nas tintas para os angolanos que são gerados com fome, nascem com fome e morrem, pouco depois, com… fome. E isso é mais de meio caminho andado para ajudar a criar a reconciliação entre Portugal e o MPLA (Angola é outra coisa).
Alguém ouviu ou ouvirá Rui Moreira recordar que 68% da população angolana é afectada pela pobreza, que a taxa de mortalidade infantil é a mais alta do mundo?
Alguém ouviu ou ouvirá Rui Moreira recordar que apenas 38% da população angolana tem acesso a água potável e somente 44% dispõe de saneamento básico?
Alguém ouviu ou ouvirá Rui Moreira recordar que apenas um quarto da população angolana tem acesso a serviços de saúde, que, na maior parte dos casos, são de fraca qualidade?
Alguém ouviu ou ouvirá Rui Moreira recordar que 12% dos hospitais, 11% dos centros de saúde e 85% dos postos de saúde existentes no país apresentam problemas ao nível das instalações, da falta de pessoal e de carência de medicamentos?
Alguém ouviu ou ouvirá Rui Moreira dizer que 45% das crianças angolanas sofrerem de má nutrição crónica, sendo que uma em cada quatro (25%) morre antes de atingir os cinco anos?
Alguém ouviu ou ouvirá Rui Moreira dizer que, em Angola, a dependência sócio-económica a favores, privilégios e bens, ou seja, o cabritismo, é o método utilizado pelo MPLA para amordaçar os angolanos?
Alguém alguma vez ouviu ou ouvirá Rui Moreira dizer que, em Angola, o acesso à boa educação, aos condomínios, ao capital accionista dos bancos e das seguradoras, aos grandes negócios, às licitações dos blocos petrolíferos, está limitado a um grupo muito restrito de famílias ligadas ao regime no poder?
Não. Nunca ninguém ouviu ou ouvirá. E isso são pontos essenciais na análise de João Lourenço. Rui Moreira atribuiu a medalha de ouro da cidade do Porto a Sindika Dokolo, ilustre marido de Isabel dos Santos.
Espera-se agora que, para mostrar que pode ser muito mais do que presidente da câmara da segunda maior cidade de Portugal, Rui Moreira dê à Avenida da Boavista uma nova toponímia, passando a chamar-se Presidente João Lourenço. Aliás, em colaboração com o seu homólogo de Lisboa, Fernando Medina, poderiam (a bem da Nação e das pazes com o MPLA) chamar à auto-estrada do Norte (que liga Lisboa ao Porto) Super Avenida João Lourenço…