O juiz que preside ao julgamento sobre a transferência “irregular” de 500 milhões de dólares de Angola, para um banco no exterior, disse que o tribunal já enviou um questionário ao ex-Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, que se encontra há vários meses fora do país.
João Pitra deu esta informação na oitava sessão de audiência de discussão e julgamento do processo em que são réus Valter Filipe, antigo governador do Banco Nacional de Angola (BNA), José Filomeno dos Santos, ex-presidente do Fundo Soberano de Angola e filho de José Eduardo dos Santos, Jorge Gaudens Pontes Sebastião, empresário e sócio maioritário da Mais Financial Services, e António Samalia Bule Manuel, ex-director do departamento de gestão e reservas do BNA.
O juiz respondia a um pedido do advogado oficioso do réu José Filomeno dos Santos, para que fosse incluído no questionário a ser enviado a José Eduardo dos Santos, se tinha sido ele a indicar que o seu filho fosse o assessor do BNA neste processo de capitalização de investimento.
Em resposta, João Pitra disse que tinha sido já enviado o questionário, aguardando-se apenas a resposta, brincando que “só se fosse enviada uma adenda”.
Sobre a resposta ao questionário, o tribunal deverá pronunciar-se em fase de audição dos declarantes.
No início do julgamento, a 9 deste mês, Sérgio Raimundo, advogado de defesa de Valter Filipe, solicitou ao tribunal que o ex-chefe de Estado angolano fosse ouvido como testemunha no caso da suposta transferência “irregular” de 500 milhões de dólares (452 milhões de euros) do BNA para uma conta de um banco em Londres, tendo o juiz deferido o pedido.
Sérgio Raimundo alegou que a diligência de se ouvir José Eduardo dos Santos é “imperiosa” e que devia ter sido desencadeada “antes do procedimento criminal”.
No primeiro dia da sua audição, na quarta-feira passada, o ex-governador do BNA disse que toda a “operação ultra sigilosa” foi comandada pelo ex-Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos.
Valter Filipe, que é acusado dos crimes de burla por defraudação, branqueamento de capitais e peculato, foi constituído arguido em Setembro de 2018, juntamente com José Filomeno dos Santos, que responde pelos crimes de burla por defraudação, branqueamento de capitais e tráfico de influência, tendo este chagado a estar seis meses em prisão preventiva.
No processo, são também co-arguidos Jorge Gaudens Pontes Sebastião, pronunciado dos crimes de burla por defraudação, branqueamento de capitais e tráfico de influência, enquanto que António Samalia Bule Manuel responde pelos crimes de burla por defraudação, branqueamento de capitais e peculato.
A audiência foi, entretanto, interrompida e face ao período de quadra festiva será retomada a próxima sessão no dia 14 de Janeiro, com a fase de audição das três testemunhas – o então ministro das Finanças, Archer Mangueira, o actual governador do BNA, José de Lima Massano, e o então assessor económico do co-arguido Valter Filipe, João Ebo, e dos 13 declarantes.
O caso remonta ao ano de 2017, altura em que Jorge Gaudens Pontes Sebastião apresentou a José Filomeno dos Santos uma proposta para o financiamento de projectos estratégicos para o país, que este encaminhou para o executivo, por não fazer parte do pelouro do Fundo Soberano de Angola.
A proposta foi apresentada ao executivo angolano no sentido da constituição de um Fundo de Investimento Estratégico, que captaria para o país 35.000 milhões de dólares (28.500 milhões de euros).
O negócio envolvia como “condição precedente”, de acordo com um comunicado do Governo, emitido em Abril de 2018, que anunciava a recuperação dos 500 milhões de dólares, a capitalização de 1.500 milhões de dólares (1.218 milhões de euros) por Angola, acrescido de um pagamento de 33 milhões de euros para a montagem das estruturas de financiamento.
Na sequência foram assinados dois acordos, entre o Banco Nacional de Angola e a Mais Financial Services, empresa detida por Jorge Gaudens Pontes Sebastião, amigo de longa data do co-arguido José Filomeno dos Santos, um para a montagem da operação de financiamento, tendo sido em Agosto de 2017 transferidos 500 milhões de dólares para a conta da PerfectBit, “contratada pelos promotores da operação”, para fins de custódia dos fundos a estruturar.
Uma investigação ordenada pelo Presidente João Lourenço concluiu pela “falta de capacidade dos promotores e da empresa contratada para estruturar e mobilizar os fundos propostos ao Executivo”. Também “não foi confirmada a idoneidade da empresa PerfectBit” e verificou-se a “não existência de qualquer sindicato de bancos internacionais”, pelo que “a operação tinha fortes indícios de ser fraudulenta”.
Pela boca morrem (alguns) bagres
Valter Filipe, enquanto governador do Banco Nacional de Angola acusou “grupos empresariais estrangeiros e bancos de matriz portuguesa de práticas de corrupção e de suspeitas de financiamento do terrorismo internacional”.
No dia 30 de Maio de 2016, o Folha 8 perguntava a este propósito: “Será mais um caso em que a estratégia passa por atacar para não ser atacado?”, e acrescentava: “Seja como for, as afirmações de Valter Filipe são de tal gravidade que algumas cabeças já deveriam ter rolado. Mas não. Os “bancos de matriz portuguesa” calaram-se e, como se diz lá pela banda de Lisboa, quem cala consente.”
Do ponto de vista político, também se esperavam reacções. De Luanda a solidariedade com o governador do BNA (ou a sua demissão), e de Lisboa uma explicação. Mas nada. Tudo continuou na mesma. E assim sendo, até prova em contrário, Valter Filipe tinha razão… até agora.
Segundo uma edição dessa altura do jornal português Expresso, o então recém-nomeado governador do BNA queixava-se de que o país “é uma porta frágil onde entra todo o tipo de risco financeiro”. Tinha razão. Mas entrava porque o Executivo de José Eduardo dos Santos estava a dormir ou, pelo contrário, estava bem acordado e até ajudava a escancarar as portas porque isso lhe convinha.
Mau grado Angola ser independente desde 1975, dava sempre jeito ter alguns bodes expiatórios para justificar a corrupção e a lavagem de dinheiro. Portugal, neste como noutros casos, era (continua a ser) o alvo ideal. Até porque se falasse muito arriscava-se a que o regime de Eduardo dos Santos pusesse a descoberto a careca portuguesa. Neste particular João Lourenço está a seguir a mesma estratégia.
Na altura o alvo foram os bancos de origem portuguesa ou geridos por portugueses. Mas havia mais alvos. Aliás, Eduardo dos Santos tinha um restrito grupo de especialistas internacionais, pagos a peso de ouro, que iam somando factos a um vasto dossier atómico (económico e político-partidário) contra Portugal e que, se necessário, seria usado a qualquer momento. Admite-se que esse dossier tenha passado para a posse de João Lourenço.
Lisboa sabia e sabe disso. Alguns desses especialistas são, aliás, portugueses. E como sabe, come e cala. De vez em quando finge que protesta, procurando passar a imagem de que é um Estado sério. Mas, tal como Angola, não é sério e está com dificuldades em parecer que é sério.
Valter Filipe estava chateado e tinha razão. Ele não gostava que “70% das empresas do mercado angolano fossem detidas por emigrantes de origem duvidosa” e, é claro, atribuiu – sem que alguém tenha contestado – a culpa a bancos controlados por gestores portugueses, acusando-os de supostos desvios de divisas para o mercado paralelo e prática de lavagem de dinheiro.
É claro que o então governador do BNA, pessoa da incondicional confiança de José Eduardo dos Santos, não explicou como é que isso era possível e que a culpa é, desde a independência, do único partido que governa Angola, o MPLA.
Ou será que esses gestores tomaram de assalto as nossas empresas? Terão utilizado metralhadoras para subjugarem os angolanos? Terão protagonizado uma espécie de golpe de Estado? Ou, pelo contrário, compraram os nossos dirigentes? Onde estava e o que fazia, nessa época, João Lourenço?
Folha 8 com Lusa