O final de um mandato em cargo público não deve representar, directamente, o termo da prestação de serviço público do indivíduo, comum em muitos países, principalmente se o final não for por motivação voluntária ou em cumprimento de prazo legal, mas por pressão externa ou interna.
Por Sedrick de Carvalho
De Espanha vem-nos um exemplo de como é possível ascender moralmente no momento da queda, ainda mais quando escandalosa. Mariano Rajoy, que se tornou persona non grata para muitos no final do seu mandato, para além de cair com o governo do qual era primeiro-ministro, abdicou sensatamente da presidência do Partido Popular (PP).
Outro feito. Não lhe bastou a renúncia à liderança, pois também renunciou o cargo de deputado ao Congresso – o parlamento espanhol. Também se fala que não usufruirá do seu direito de estar no Conselho de Estado.
Rajoy deixou o governo com a imagem completamente chamuscada, envolvido em escândalos de corrupção e que, provavelmente, ainda o farão sentar no banco dos réus para esclarecimentos e, se provadas as acusações, respectiva punição.
Depois de tantas decisões inesperadas após a forçada demissão do governo, despoletada por uma moção de censura levada a cabo pelo Partido Socialista Espanhol (PSOE), Mariano Rajoy pediu para voltar ao seu antigo trabalho de conservador do registo de propriedade. E voltou!
Surpreendeu e saltou logo para as capas dos jornais espanhóis, tendo o El País, o periódico de maior tiragem, referido que o ex-chefe de governo passou do tudo ao nada em menos de um mês. Ora, creio ser errada esta percepção de tudo e nada.
O comum, ao fim de mandato, é não vermos ou sabermos o trabalho dos ex-governantes, como vários antigos ministros e governadores provinciais angolanos, e quando se dá o contrário estão em empresas privadas milionárias que beneficiaram, quase sempre ilegalmente, dos cofres públicos ou comunitários com aprovações feitas pelo novo membro. Esta última variante verifica-se imenso na Europa, e, como exemplo, aponto o caso de Durão Barroso quando deixou a presidência da Comissão Europeia e assumiu o cargo de chairman do agressivo banco Goldman Sachs.
Por não ser comum, o pedido de Mariano Rajoy para regressar ao antigo posto de trabalho espantou até os jornalistas, e daí a infeliz expressão “passou do tudo ao nada”, uma forma de dizer ao ex-primeiro-ministro espanhol que ele está a ser imbecil por não entrar num banco do tipo Goldman Sachs. Nesses tempos que correm, onde a política está para servir-se e não para servir, Rajoy está a ser politicamente incorrecto para a real politik.
Mas Rajoy ganha imenso no seu declínio político com esse gesto, inclusive a minha admiração, depois de sete anos de administração desastrosa. Estando em óptimas condições de saúde e em idade activa, é natural que ele volte ao posto de trabalho que ocupava.
São poucos os indivíduos que, em Angola, chegam aos cargos no governo por competência técnica. A militância partidária está acima do conhecimento técnico, ou seja, tem de ser militante profissional. E para esse militante fim de mandato significa ruína financeira, daí que não encara os prazos legais de exercício de um cargo como o seu horizonte temporal de trabalho. Ficar eternamente é o que lhe convém, só mudando se for para uma posição hierarquicamente superior.
Por ser competente na repetição dos discursos do partido e uso de utensílios propagandísticos – camisolas, chapéus, lapelas, etc. -, e estando consciente de que a sua salvação financeira reside nesta militância, o militante descura o conhecimento técnico, o trabalho árduo, à espera duma nomeação.
Quando exonerado, acto positivo que virou moda e hoje quase todos estão certos de que podem ser exonerados pelo exonerador a qualquer instante, o sujeito deveria voltar ao anterior posto de trabalho – professor, gestora, médico, jornalista, etc.. Entre jornalistas é difícil lembrar algum que tenha voltado a exercer a profissão depois da passagem por um cargo na governação, e vários colegas passaram pelos CDIs dos governos provinciais.
Reconheço acima que a exoneração é um acto positivo, não sendo comum a auto-demissão, pois espera-se que os governantes se empenhem no trabalho em prol dos governados para que não sejam os próximos a serem exonerados. Mas o efeito das exonerações tem sido negativo pois, em seguida, o exonerado é recolocado noutra dependência estatal, como em embaixadas, onde passam a gozar do que considero férias pagas com dinheiro público. Deste jeito, não se dá a ascensão no momento da queda, que passaria por reavaliar a sua prestação.
E o retorno ao anterior posto de trabalho acaba por ser terapêutico, dando uma oportunidade ao ex-governante para perceber os efeitos do seu trabalho na base, percebendo os pontos em que acertou ou errou ao longo da sua administração, e as críticas positivas e negativas directas são o barómetro ideal.
Não se trata de sair do tudo para o nada. É apenas de governante a governado, povo, que é o que todos somos antes de tudo. Ou deveria ser. E o povo é o detentor do principal poder.
Quando esse exercício inverso começar a ser feito com regularidade em Angola a relação servidor-utente vai melhor significativamente. E o outrora governante será admirado, tal como Mariano Rajoy. Pena ter chegado atrasado logo no seu primeiro dia de regresso ao trabalho.