Este natal não celebrei. Fiquei em casa, sozinho, comi o normal e fiz noitada. Às tantas da madrugada ouvi um roçar de borracha na pedra da chaminé. Presumi que fosse o pai natal e confirmei-o quando, depois de descer, lhe descobri o fato vermelho na penumbra da sala.
Por João Paiva
V inha manifestamente cansado, pelo que se sentou na poltrona junto do sofá. Só depois de instalado é que me fitou e eu, embriagado já de sono, anuí à sua presença com um modesto movimento de cabeça. Vendo-se aceite e talvez estranhamente identificado com o ambiente daquela sala, pediu uma coca-cola. Eu disse que, de porcarias, só bebia álcool. E apenas quando o pedia o coração.
Daí a momentos, foi o velho buscar o seu enorme saco e trouxe-o para perto de mim. Eu adiantei que não gostava de presentes, muito menos de surpresas, que não queria nada de novo, que preferia ficar como estava. Ele ouviu mas continuou como se nada fosse, ou melhor, como se outra coisa não pudesse fazer.
Pôs a mão dentro do saco e tirou para fora um banqueiro. Estava a besta fumando charuto e sorrindo, sempre sorrindo. O pai natal reparou no meu esgar de nojo mas colocou-o, sem hesitar, no meio da sala.
Depois voltou a mergulhar a mão no saco e tirou para fora um demagogo exaltado. Cerrava os punhos e agitava os braços, mas tinha a face serena e apagada.
O gordo das barbas procurou o terceiro e último presente. Aos dois anteriores juntou um talibã, tecido escuro à volta da cabeça e kalashnikov nas mãos.
Vi com raiva o pai não sei de quê, vestido de vermelho, olhar as três prendas que me cabiam nesse ano, encolher os ombros e pegar no saco para partir. Antes que lhe pudesse dirigir as palavras violentas que me acorreriam à boca no momento, já estavam os três demónios analisando a superfície de um globo terrestre desencantado não sei onde, sulcando-o com linhas medonhas de lápis pesados. Trocavam palavras cordiais e palmadinhas nas costas.
Revoltado, levantei-me bruscamente do sofá. Algo quase tão forte como a minha revolta me prendia ao recosto confortável. Bem sei o que me custou usar as pernas e braços para me pôr de pé. Olhei à volta, reconheci o meu passado e o meu futuro nas quatro paredes que me rodeavam. Parei o tempo. Estava na minha casa, minha vontade feita em espaço. Comandava-me a razão, o peso de um passado e o orgulho de uma identidade.
Despi o banqueiro de todas as roupas e acessórios que trazia. Coloquei o saco de presentes do pai natal na mão direita do demagogo. Tirei das mãos do talibã a kalashnikov e substituí-a por um cravo, dos muitos que conservava sempre vivos numa jarra da sala. Depois, disse ao tempo para resolver o resto.
Os quatro acordaram da sua síncope. O banqueiro, vendo-se nu e igual a todos os homens, desatou num choro suplicante e saiu a correr. O demagogo viu-se satisfeito da sede de não sei bem o quê que o possuía há tanto tempo e abalou expurgado. O talibã olhava fixamente a flor que recebera, como se olha um ente perdido e esquecido, apesar de querido. Saiu depois da casa, nunca deixando de olhar para o objecto estranho.
Eu permaneci quieto, esperando. É então que o pai natal começa a correr, em fuga desalmada, desprovido pela primeira vez do domínio das rédeas dos acontecimentos. Vi-o partir, ágil, já sem ser nem pai natal nem coisa nenhuma. Com a arma de fogo que conservara nas mãos, cravei uma rajada de balas nas costas da criatura, como só o diabo merece. Levei a carcaça para fora de casa e deixei-a no meio da rua.
Daí em diante, fiquei conhecido como o homem que matou o pai natal. Hoje espero, talvez em vão, pelo próximo.