Décadas de fluxos de armamento para o Iraque parcamente regulados, a par da falta de controlo sobre as armas no terreno, deixaram nas mãos do grupo armado auto-intitulado Estado Islâmico um vasto e letal arsenal que está a ser usado para cometer crimes de guerra e crimes contra a humanidade a uma escala maciça, tanto no Iraque como na Síria, demonstra a Amnistia Internacional em novo relatório.
A ssente em análises de peritos a milhares de imagens e vídeos confirmados como fidedignos, “Taking Stock: The arming of Islamic State” (Inventário: o armamento do Estado Islâmico) – publicado esta terça-feira, 8 de Dezembro – faz a catalogação de como os combatentes do grupo jihadista estão a usar as armas que obtiveram, na maioria, pilhando os arsenais militares iraquianos, e as quais foram desenhadas e fabricadas em mais de duas dezenas de países, incluindo a Rússia, a China, os Estados Unidos da América e vários países da União Europeia.
“O imenso e variado armamento na posse do grupo armado auto intitulado Estado Islâmico é um caso clássico de como o comércio irresponsável de armas alimenta atrocidades a uma escala maciça”, aponta o investigador da Amnistia Internacional Patrick Wilcken, perito em Controlo de Armas, Comércio de Segurança e Direitos Humanos.
“A parca regulação e a ausência de fiscalização dos enormes fluxos de armamento para o Iraque, que datam de há décadas, deram ao Estado Islâmico e a outros grupos armados uma bonança de acesso a armas sem precedentes”, prossegue.
Após a tomada de Mossul, a segunda maior cidade iraquiana, em Junho de 2014, os combatentes do Estado Islâmico obtiveram controlo de um enorme volume de armas de fabrico internacional que se encontravam nos arsenais iraquianos. Aqui se incluem armas e veículos militares de fabrico norte-americano, de que o grupo jihadista fez uso para conquistar outras partes do país, com consequências devastadoras para as populações civis residentes nessas áreas.
A grande diversidade de tipos de armas capturadas e ilicitamente obtidas permitiram que o Estado islâmico leve a cabo uma campanha horrível de abusos. Execuções sumárias, violações, tortura, raptos e tomada de reféns – frequentemente cometidas sob a ameaça de armas – forçaram centenas de milhares de pessoas a fugirem das suas casas e a tornarem-se deslocados internos ou refugiados.
Variedade preocupante de armamento
Esta diversidade do arsenal que está nas mãos do Estado Islâmico, tanto no seu alcance como nos seus propósitos, reflecte os fornecimentos irresponsáveis de armas que ao longo de décadas foram feitos para o Iraque. Isto foi agravado pelos múltiplos falhanços, durante a ocupação do país liderada pelos Estados Unidos, na gestão das importações de armas feitas pelo Iraque assim como na activação de mecanismos de monitorização que impedissem utilizações finais impróprias desse armamento. Da mesma forma, a ausência de controlos sobre os arsenais militares e a corrupção endémica no país em sucessivos governos iraquianos agravaram ainda mais este problema.
O relatório “Taking Stock” documenta o uso que o Estado Islâmico tem feito das armas e munições que foram fabricadas em pelo menos 25 países diferentes, cuja vasta parte foi originalmente fornecida ao Exército iraquiano pelos Estados Unidos e por países do antigo bloco soviético. Estes fluxos de armas foram financiados em negócios de troca de armas por petróleo, através de contratos firmados com o Pentágono e de doações da Nato. A maior proporção das armas nas mãos do Estado Islâmico foi obtida com a tomada de controlo ou através de desvios de armamento dos arsenais militares iraquianos.
No arsenal do Estado Islâmico está armamento extremamente sofisticado como sistemas portáteis de defesa antiaérea (MANPADS), mísseis guiados antitanque e veículos armados de combate, assim como espingardas de assalto como as russas AK e as norte-americanas M16 e Bushmaster.
A maior parte das armas convencionais usadas pelos combatentes jihadistas são de fabrico que data dos anos de 1970 a 1990, incluindo pistolas, revólveres e outras armas de pequeno calibre, metralhadoras, armas antitanque, morteiros e artilharia. Espingardas de tipo Kalashnikov, da era soviética, são também comuns, oriundas maioritariamente de fabricantes russos e chineses.
“Isto demonstra uma vez mais que a avaliação e a adopção de medidas de mitigação dos riscos nas exportações de armas para regiões instáveis têm de ser feitas com uma análise a longo prazo, e que tenha em conta toda a complexidade do processo. Tal inclui avaliar se as unidades militares e de segurança [do país de destino dos fornecimentos] são ou não capazes de efectivamente controlarem os arsenais e cumprirem os padrões internacionais humanitários e de direitos humanos”, sustenta Patrick Wilcken.
Os combatentes do Estado Islâmico e de outros grupos armados têm também vindo a fabricar as suas próprias armas improvisadas em oficinas muito rudimentares. Entre estas armas há morteiros e rockets, granadas de mão improvisadas, engenhos explosivos improvisados como carros-bomba e explosivos armadilhados, e até mesmo munições de fragmentação reutilizadas que são armas internacionalmente banidas. Em alguns casos, os engenhos explosivos improvisados são, na prática, minas, que estão expressamente banidas pela Convenção sobre a Proibição do Uso, Armazenamento, Produção e Transferência de Minas Antipessoais e sobre a sua Destruição (o Tratado de Ottawa, de 1997).
As cadeias de fornecimentos
A investigação contida no relatório “Taking Stock” abrange o longo historial do Iraque no que toca à proliferação de armas e as complexas cadeias de fornecimentos que mais provavelmente permitiram fazer chegar às mãos do Estado Islâmico algumas das mais recentes armas que estão na posse do grupo.
O arsenal do Exército iraquiano cresceu substancialmente nos finais dos anos de 1970 e no início da década de 1980, especialmente no contexto da guerra entre o Iraque e o Irão. Este foi um momento prolífico no desenvolvimento do mercado moderno global de armamento, altura em que pelo menos 34 países diferentes forneceram armas ao Iraque – e 28 desses mesmos países estavam também, ao mesmo tempo, a exportar armamento para o Irão.
Entretanto, o então Presidente do Iraque, Saddam Hussein, supervisionou o desenvolvimento de uma robusta indústria nacional de armamento, tendo sido fabricadas no próprio país armas de pequeno calibre, morteiros e bombas de artilharia.
Depois de o Iraque ter invadido o Kuwait em 1990, um embargo às armas aprovado pelas Nações Unidas fez diminuir as importações de armamento pelo Iraque até 2003, mas durante e após a invasão liderada pelos Estados Unidos uma vez mais o país foi inundado com fornecimentos de armas. Muitos destes fluxos tão pouco foram devidamente monitorizados e auditados pela coligação liderada pelos Estados Unidos, nem pelas reconstituídas forças armadas iraquianas. Perdeu-se o rasto a centenas de milhares dessas armas, que continuam desaparecidas.
Os esforços mais recentes para reconstruir e reequipar o Exército iraquiano e forças associadas voltaram a resultar num fluxo maciço de armas para o país. Entre 2011 e 2013, os Estados Unidos assinaram contratos no valor de milhares de milhões de dólares de fornecimentos de tanques 140-M1A1 Abrams, jatos de combate F16, unidades portáteis de mísseis antiaéreos 681 Stinger, baterias antiaéreas Hawk, e outro equipamento de elevado grau de sofisticação. Em 2014, os Estados Unidos tinham entregado já armamento de pequeno calibre e munições ao Governo iraquiano no valor de mais de 500 milhões de dólares.
A corrupção endémica nas forças armadas do Iraque, a par dos fracos controlos feitos aos arsenais militares e o débil rastreio das armas, traduzem-se na existência de um continuado alto nível de risco de estas armas serem desviadas por grupos armados, incluindo o Estado Islâmico.
Prevenção da proliferação de armas
Os Estados podem aprender com os muitos e sucessivos erros do passado e dar passos urgentes para refrear futuras vagas de proliferação de armas no Iraque, na Síria e em outros países e regiões instáveis.
A Amnistia Internacional exorta todos os países no mundo a aprovarem um embargo total de armas às forças governamentais sírias assim como aos grupos armados da oposição que estão envolvidos em crimes de guerra, crimes contra a humanidade e outros graves abusos de direitos humanos.
Têm também de aprovar uma regra de “presunção de recusa” das exportações de armas para o Iraque, em que os fornecimentos de armamento para aquele país apenas possam ser feitos depois de cumpridas avaliações rígidas dos riscos. As unidades militares e de polícia iraquianas, que sejam sinalizadas como excepção na aplicação daquela regra, têm de demonstrar que respeitam rigorosamente e de forma consistente os direitos humanos e a lei humanitária, e que estão dotadas dos necessários mecanismos de controlo para garantir que as armas não acabam por ser desviadas para grupos armados.
Além disto, qualquer país que pretenda fazer potenciais fornecimentos de armamento às forças armadas iraquianas tem de primeiro investir em sistemas de controlo prévios e posteriores a essas entregas, assim como no treino e na monitorização, de acordo com os padrões internacionais respeitantes à gestão e à utilização das armas.
E todos os países que ainda não assinaram ou ratificaram o Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais (TCA, ATT na sigla em inglês) devem fazê-lo imediatamente. Um dos objectivos deste tratado é justamente “prevenir e erradicar o comércio ilícito de armas convencionais e evitar o desvio das mesmas”. O tratado contém também cláusulas que visam pôr fim aos fornecimentos para destinos em que existe um risco significativo de o armamento ser usado para cometer violações graves dos direitos humanos ou da lei humanitária.
“O legado da proliferação de armas e de abusos no Iraque e na região circundante já destruiu as vidas e o sustento de milhões de pessoas e continua a constituir uma ameaça. As consequências dos fornecimentos irresponsáveis de armamento para o Iraque e para a Síria, e a subsequente tomada de controlo dessas armas pelo Estado Islâmico, têm forçosamente de funcionar como uma chamada de alerta aos exportadores de armamento mundiais”, remata o perito da Amnistia Internacional.
Fonte: Amnistia Internacional