Escrevo para V/Excia, mas sei também que o alcance das minhas palavras ultrapassa a vossa instância, por isso decidi fazer uma carta pública.
Por Raul Tati
Q uis o destino que nos cruzássemos na vida num momento dramático da minha terrena existência, quando em 2010 fui detido e submetido ao vosso arbítrio. Na circunstância V/Excia acusou-me de ter cometido crimes contra a segurança do Estado angolano e, sem apelo nem agravo, pediu a minha condenação a cinco anos de reclusão.
Desde então a minha vida ficou inexoravelmente marcada pelo vosso nome e pelo vosso rosto, e pelos piores motivos possíveis, como pode imaginar. Nunca mais se me apagará da memória a vossa figura, em sede do tribunal, a pedir a minha condenação.
Por vezes, quando me deparo com V/Excia assalta-me este pensamento ruim: se fosse nos tempos do Tribunal Popular Revolucionário, de triste memória, esse homem teria pedido a pena capital de morte por fuzilamento para mim e para os meus companheiros da desventura. Noutras palavras, por um fio tive a minha vida em vossas mãos. Seria hoje um homem morto, e da forma mais abjecta.
As gerações vindouras recordar-me-iam como um PADRE TERRORISTA ou, talvez, a história absolver-me-ia, conforme apelou Fidel Castro no seu julgamento. E o meu sangue teria sido o refrigério da volúpia do vosso sinédrio. Vejo-o, por conseguinte, como um carrasco!…
É claro que não é um pensamento benfazejo que me possa trazer alijamento, mas é uma guinada quase irreprimível. Infelizmente, V/Excia passou a fazer parte de mim e da minha história porquanto protagonista da página mais lúgubre e sombria que me foi dada a dita de escrever com a humilhação, o degredo, a mordaça, o sofrimento psicológico e moral e toda a pletora de circunstâncias envolventes durante os onze meses da minha detenção nas masmorras do regime de que V/Excia é exímio pontífice em Cabinda.
Mas hoje, escrevo esta carta com muita amargura e acerbidade por um outro motivo: chama-se JOSÉ MARCOS MAVUNGO.
Confesso que foi com a maior incredulidade que acolhi a sua decisão de pedir ao Tribunal a pena de 12 anos de reclusão para o activista e defensor dos direitos humanos, José Marcos Mavungo, declarado PRISIONEIRO DE CONSCIÊNCIA pela Amnistia Internacional.
E aqui, a fortiori, tenho de regurgitar o mesmo pensamento ruim que esbocei supra: se tivéssemos ainda a lei da pena de morte, V/Excia teria pedido exactamente isso: a morte para o infeliz!
É muito fácil tirar as ilações do caso. Se para V/Excia a liberdade do cidadão Marcos Mavungo é algo insignificante e nada representa, não há melindres para não poupar-lhe a vida. Pois bem, a minha incredulidade foi de pouca dura, porque caí na real, como se tem dito: estamos perante um regime cruel, severo, desumano, onde os instintos lupinos (homo homini lupus) têm todas as chancelas franqueadas. Estamos à mercê de um Leviatã, segundo a metáfora de Thomas Hobbes, e não de um Estado democrático de direito. A decisão de V/Excia é tão desalmada que só cabe nesse quadro tétrico.
Os jurisconsutos romanos deixaram-nos esta máxima do direito: ´´maximum jus, summa injuria´´ (a justiça levada ao extremo, torna-se uma supina injustiça).
V/Excia, como garante da legalidade, decidiu cilindrar literalmente tudo o que se passou em sede de julgamento, onde não foi possível provar o que quer que fosse em relação ao corpo do delito contra o cidadão José Marcos Mavungo, e por estar obcecado a perseguir a justiça pela justiça, está empenhado em levar toda essa trama até às últimas consequências: ver o cidadão Marcos Mavungo a apodrecer nas vossas masmorras nos próximos doze anos!
Se fizermos uma pequena incursão à psicanálise, tendo em conta a vossa atitude e comportamento em relação ao José Marcos Mavungo, será fácil constatar que a lei serve apenas de subterfúgio, mas o que está mesmo em causa são as paixões humanas: V/Excia odeia o José Marcos Mavungo, por isso está a pedir 12 anos de prisão. Esse ódio estende-se à sua família (esposa, filhos, etc.) porque também esta estaria condenada a 12 anos de privações e sem o carinho e o amparo do seu pai.
V/Excia é pai de família, por isso não terá qualquer dificuldade em entender o que pretendo dizer: Intelligenti pauca (a bons entendedores meia palavra basta!).
Do ponto de vista moral, a vossa decisão afigura-se perversa por ser intrinsecamente má: a condenação de um inocente. A jurisprudência clássica prefere que se absolva um culpado a que se condene um inocente, por isso nos foi legado o princípio ´´in dubio pro reo´´(na dúvida a decisão deve ser em favor do réu).
Em relação ao Marcos Mavungo, se nos cingirmos ao seu julgamento feito à luz do dia e em público, ninguém saiu daí com alguma dúvida (se assim fosse seria em seu benefício) de que o réu tinha de ser ilibado e mandado em liberdade e em paz.
Portanto, é mais do que uma certeza de que o JMM é inocente e está sendo vítima de conspiração furtiva. O vosso pedido de condenação é comparado a intrusão de um elefante numa loja de porcelana.
V/Excia provavelmente acredita que está a prestar um serviço relevante à justiça e à pátria. Desengane-se. Está simplesmente a destruir os fundamentos sagrados da justiça e do direito. Está a colocar a justiça ao descrédito e ao pejo. Ademais, está a prestar um mau serviço público aos cidadãos em termos de administração da justiça. Nestes últimos dez anos, aproximadamente, do vosso consulado em Cabinda V/Excia passou a ser a expressão e a tradução fiel da ´´Espada de Dámocles´´ empunhada contra as vozes dissonantes.
O cidadão José Marcos Mavungo a quem V/Excia imputa o crime de rebelião tem um curriculum que o afasta de tudo aquilo que é cultura de violência. Conheço-o há uma década e meia. Apresentou-mo o malogrado Bispo de Cabinda, D. Paulino Fernandes Madeca, com uma recomendação de admiti-lo como professor de Filosofia no Seminário Maior de Cabinda, onde fui Reitor.
Foi admitido ao corpo docente do Seminário onde leccionou várias matérias filosóficas com brio e dedicação. Desde então começámos uma convivência salutar que se estende aos nossos dias onde fui descortinando nele profundas convicções cristãs e qualidades humanas ímpares, para além de ser um esposo e pai de família responsável e exemplar.
Como activista cívico nunca se coibiu de denunciar a violência gratuita, a intolerância e as violações dos direitos humanos em Cabinda, aliás, fê-lo também em sede de julgamento. Para além disso, lecciona também nas universidades locais matérias de economia e direitos humanos. Como cidadão, não tem registo de qualquer antecedente criminal. Diante disso tudo, questiono-me como é possível que V/Excia não tenha ponderado todos estes aspectos como atenuantes?
O Comandante Municipal de Cabinda da Policia Nacional, nas vestes de declarante, disse em tribunal que o JMM não se encontrava a cometer nenhum crime aquando da sua detenção, mas que fora detido por prevenção. Quid iuris, senhor doutor?
Para concluir, deixe-me dizer a V/Excia que quer o ora réu Marcos Mavungo quer o senhor doutor ganham com este caso um lugar nos anais da história, mas com estatutos diferentes: o José Marcos Mavungo será absolvido pela história; a onda de solidariedade nacional e internacional em seu favor, e a sua recente declaração como PRISIONEIRO DE CONSCIÊNCIA pela Amnistia Internacional (09-09-1015) é prova da sua estatura humanista; a ele aplica-se o adágio latino ´´ad augusta per angusta´´ (chegar a resultados gloriosos por caminhos estreitos).
Quanto ao senhor doutor, acaba de conquistar o estatuto de réu eterno do juízo implacável da história.
Creia-me, será sempre recordado como uma figura tristemente célebre! A V/Excia aplica-se o adágio latino ´´sic transit gloria mundi´´ (Assim vai a glória do mundo).
Cidade de Tchowa, aos 10 de Setembro de 2015.