O CORREDOR DO LOBITO: RETÓRICA, ENGENHARIA FINANCEIRA E DISPUTAS DE VALOR

O Fórum Global Gateway realizado em Bruxelas em Outubro de 2025 reafirmou o posicionamento da União Europeia (UE) como ator geoeconómico estratégico na África Austral. No centro das atenções esteve o Corredor do Lobito — a infraestrutura ferroviária que liga o porto angolano de Lobito às regiões mineiras da República Democrática do Congo (RDC) e da Zâmbia. Apresentado pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, como um dos projetos mais ambiciosos do programa europeu, o corredor é descrito como uma alavanca para garantir o acesso a minerais críticos, promover o processamento local e estimular cadeias de valor regionais (CEDESA, 2024a; European Commission, 2025).

Por Rui Verde (*)

Ambiguidade Estrutural e Engenharia Financeira

Apesar da retórica otimista, os diálogos entre especialistas e diplomatas revelam uma ambiguidade estrutural no funcionamento do Global Gateway. Ao contrário do que muitos pressupõem, o programa não constitui um mecanismo de financiamento direto e integral. Trata-se, antes, de uma plataforma de articulação entre fundos públicos, empréstimos concessionais e investimentos privados. A UE tem privilegiado o financiamento de estudos técnicos, estruturação de transações e apoio institucional, enquanto a construção física das infraestruturas depende de montagens financeiras complexas — envolvendo o Banco Europeu de Investimento (BEI), bancos comerciais e operadores como Trafigura e Mota-Engil (CEDESA, 2024a; AfDB, 2024).

A tendência de agrupar sob o rótulo “Global Gateway” iniciativas díspares, anteriores ou paralelas, levanta questões sobre transparência, coordenação e rastreabilidade dos compromissos. A ausência de um quadro consolidado que permita distinguir entre promessas políticas, investimentos efetivos e financiamentos condicionados dificulta a avaliação do impacto real do programa. A fragmentação das fontes — entre UE, EUA, operadores privados e instituições multilaterais — exige uma abordagem mais integrada e transparente, capaz de alinhar interesses estratégicos com desenvolvimento local e soberania africana sobre os seus recursos (Consilium, 2024).

O Envolvimento dos Estados Unidos: Retórica versus Realidade

A contribuição dos Estados Unidos, frequentemente citada como superior a cinco mil milhões de dólares, também merece escrutínio. Segundo fontes ligadas a uma empresa belga com conhecimento do projeto, os empréstimos americanos seguem condições de mercado, e grande parte dos investimentos efetivos provém de empresas privadas. A expectativa é que novos anúncios sejam feitos, mas permanece incerto o grau de comprometimento público versus privado, e o equilíbrio entre financiamento e execução (CEDESA, 2024b; RFI, 2025).

Este padrão de envolvimento revela uma lógica de exportação de capital e influência, onde o valor estratégico dos minerais africanos é mobilizado para justificar investimentos que também beneficiam indústrias ocidentais. A retórica de “parcerias equitativas” contrasta com a realidade de cadeias de valor ainda dominadas por centros de refinação fora do continente africano.

Angola como Plataforma Energética e Geopolítica

Paralelamente, o anúncio de um projeto energético de grande escala reforça a centralidade estratégica de Angola na arquitetura infraestrutural regional. A empresa americana Hydro-Link, subsidiária da Symbion Power, assinou um acordo preliminar com a RDC para construir uma linha de transmissão elétrica avaliada em 1,5 mil milhões de dólares, que partirá de centrais hidroelétricas angolanas rumo à região mineira de Kolwezi. Este traçado não apenas posiciona Angola como fornecedor energético regional, mas também como pivô logístico na integração dos mercados de minerais críticos da África Austral. O projeto visa fornecer 1.200 MW à zona com os maiores depósitos mundiais de cobre, cobalto, zinco, lítio e manganês, atualmente limitada por um défice energético superior a 1.500 MW (Mitrelli, 2025; Pumps Africa, 2025).

A escolha de Angola como ponto de origem da energia elétrica não é meramente técnica, mas revela uma aposta geoeconómica na estabilidade institucional e na capacidade instalada do país. Ao canalizar energia angolana para alimentar a mineração congolesa, o projeto reforça a interdependência regional e amplia o papel de Angola como plataforma de exportação de recursos energéticos e minerais. Além disso, a engenharia financeira do projeto — que combina financiamento da US Development Finance Corporation, garantias da US TDA e do Ex-Im Bank, e contratos com fornecedores americanos — inscreve Angola numa lógica de valorização estratégica dos seus ativos energéticos, com implicações diretas na sua posição negocial e na atração de investimentos estruturantes.

O projeto liderado pela Hydro-Link inscreve-se numa lógica de política externa americana que mobiliza aliados empresariais próximos de Donald Trump. O CEO da Symbion Power, Paul Hinks, tem histórico de colaboração com agências federais como a Millennium Challenge Corporation e o Ex-Im Bank, e é ativo em fóruns empresariais que promovem a presença americana em África. A possível assinatura do projeto durante a U.S.–Africa Business Summit em Luanda — organizada pelo Corporate Council on Africa, entidade com ligações históricas a administrações republicanas — reforça o alinhamento com a política “America First”, que privilegia contratos com fornecedores dos EUA e a exportação de capital estratégico (Business Insider Africa, 2025; African Business, 2025).

Também relevante é a participação do grupo Mitrelli, com forte implantação em Angola, liderado pelo israelita, Haim Taib, o que permite antecipar uma aliança entr o poder económico angolano (e político, uma vez que ambos estão ligados) e os interesses financeiros de possíveis aliados de Donald Trump.

Disputas de Valores e Narrativas Concorrentes

O Corredor do Lobito tornou-se um palco de disputas de valores e narrativas concorrentes. A UE promove uma abordagem centrada na sustentabilidade, inclusão e desenvolvimento local, enquanto os Estados Unidos enfatizam a segurança energética e a competitividade industrial. A China, embora menos visível neste projeto específico, continua a ser um ator dominante na mineração africana, com redes logísticas e industriais já consolidadas, pelo que dificilmente, o Corredor do Lobito poderá ser um sucesso sem a participação e colaboração chinesa.

Neste contexto, a retórica de “parcerias equitativas” deve ser confrontada com indicadores concretos de transferência de tecnologia, capacitação local e participação africana nas cadeias de valor. A ausência de centros de refinação no continente, por exemplo, perpetua uma dependência estrutural que limita os ganhos de valor agregado para os países produtores. A engenharia financeira sofisticada, embora necessária, não pode substituir compromissos claros com a soberania económica africana.

Rastreabilidade e Transparência: A necessidade de um Observatório Independente Africano para o Corredor do Lobito

Por fim, a questão da rastreabilidade dos compromissos permanece central. A falta de um inventário público e verificável dos projetos, montantes e beneficiários dificulta a avaliação do impacto real do Global Gateway e dos acordos bilaterais. A fragmentação das fontes — entre UE, EUA, operadores privados e instituições multilaterais — exige uma abordagem mais integrada e transparente (Consilium, 2024; European Commission, 2025).

A criação de um observatório independente, com participação africana, é fundamental para consolidar dados, monitorar compromissos e avaliar impactos. Tal iniciativa permite distinguir entre promessas políticas, investimentos efetivos e financiamentos condicionados, promovendo maior responsabilização e alinhamento com os objetivos de desenvolvimento sustentável, e evitando mais um projeto neocolonial de mero extrativismo acelerado.

Referências

AfDB. (2024). *Global Gateway: Comissão Europeia e Grupo Banco Africano de Desenvolvimento desbloqueiam novos financiamentos para projetos de infraestruturas em África*. https://afdb.africa-newsroom.com

African Business. (2025). *US firm to build $1.5bn Angola to DRC power line*. https://african.business

Business Insider Africa. (2025). *US firm to build $1.5B power line linking Angola, DRC*. https://africa.businessinsider.com

CEDESA. (2024a). *Corredor do Lobito: A nova geopolítica dos minerais críticos*. https://www.cedesa.pt

CEDESA. (2024b). *Análise económica: Angola 2025*. https://www.cedesa.pt

CEDESA. (2024c). *Quem somos*. https://www.cedesa.pt

Consilium. (2024). *Global Gateway: Conselho aprova lista de projetos emblemáticos para 2025

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[1] O texto conta com variados contributos dos participantes no II Fórum Angola-RDC realizado a 15 de Setembro de 2025 no Club Prince Albert, em Bruxelas. Uma vez que se aplicam as regras Chatham House, apenas as ideias são divulgadas, mas não quem as adiantou.

(*) Vice-Presidente e director-geral de investigação do CEDESA – Centro de Estudos para o Desenvolvimento Económico e Social de África

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