VINTE E DOIS ANOS DE PAZ E BARRIGA VAZIA

A cidade do Huambo acolhe, quinta-feira, o acto central das celebrações do 22º aniversário da Paz e Reconciliação Nacional, que se assinala sob o lema “4 de Abril, juntos pelo crescimento inclusivo do País”.

Com palco no pavilhão multiusos Osvaldo de Jesus Serra Van-Dúnem, nada melhor do que um general para presidir ao evento, o ministro de Estado e Chefe da Casa Militar do Presidente da República, Francisco Pereira Furtado, em representação do Chefe de Estado (não nominalmente eleito), general João Lourenço. E mostrando a vitalidade do Estado de Direito que Angola (não) é, não se pode esquecer que o general escolhido pelo MPLA também representa o presidente do seu partido, o Titular do Poder Executivo (do seu partido) e o Comandante-em-Chefe das Forças Armadas (do seu partido)

Em comunicado de imprensa, o Governo da província do Huambo considera o 4 de Abril como uma data que marcou o virar de uma página negra e amarga da história de um povo, cujo desentendimento das forças beligerantes de outrora impediram-no de crescer e fazer crescer uma Nação permanentemente em luta. Tão permanente que, por vontade exclusiva do MPLA, 22 anos depois da assinatura da Paz, o Governo ainda não conseguiu encontrar uma personalidade da sociedade civil para presidir à cerimónia comemorativa.

Entretanto, lê-se no comunicado, fruto do bom senso e do mais alto sentido patriótico, o país alcançou a Paz, cujos acordos obtidos, primeiramente, na cidade do Luena, província do Moxico e, em seguida, no Namibe, com a assinatura do Memorando de Entendimento Complementar aos Acordos de Luena, perduraram até à presente data, permitindo, deste modo, o desenvolvimento e a modernização de uma Angola próspera, una e indivisível.

“Ao celebrarmos o 22º aniversário da Paz e da Reconciliação Nacional, o Executivo angolano, liderado pelo Presidente da República, João Lourenço, reitera o seu firme compromisso de continuar a materializar as políticas de Estado, voltadas para o bem-estar económico e social do povo angolano e de tudo fazer a preservação e manutenção deste feito duramente alcançado”, refere o comunicado.

De igual modo, conforme o documento, o Executivo reitera a valorização dos bravos combatentes da liberdade e veteranos da Pátria que, com a sua entrega abnegada e tenacidade, romperam a partir das trincheiras de luta, as barreiras da incompreensão e distância ideológica, colocado um fim às hostilidades militares.

De acordo com o programa, o acto será antecedido do acender do Facho da Paz e da disposição da coroa de flores no largo António Agostinho Neto que, como se sabe, foi o genocida responsável pelos massacres (perto de 80 mil mortos) de 27 de Maio de 1977.

A efeméride assinala 22 anos, desde que a 4 de Abril de 2002 as chefias militares das Forças Armadas Angolanas (FAA) e das forças da UNITA (FALA) rubricaram o Memorando de Entendimento do Luena, complementares aos Acordos de Lusaka, colocando fim a 27 anos de conflito armando.

A cidade de Nova Lisboa (Huambo), inaugurada pelo então governador-geral de Angola, o general português José Mendes Ribeiro Norton de Matos, a 21 de Setembro de 1912, na sequência de um despacho administrativo emitido pela portaria nº1040, datado de 8 de Agosto do mesmo ano, é hoje a cidade do Huambo, a capital da província com o mesmo nome, localizada no Planalto Central de Angola, com pouco mais de dois milhões 700 mil habitantes, distribuídos em 11 municípios.

O MPLA, com o seu brilhantismo habitual, diz que os angolanos são capazes de reconstruir o país, de criar condições para erradicar a pobreza e de promover o desenvolvimento e o bem-estar social.

Os angolanos são, sim senhor, capazes de tudo isso. Pena é que o regime não os ajude. Já lá vão 22 anos de paz total e, feitas as contas, poucos continuam a ter cada vez mais milhões e, é claro, milhões continuam a ter cada vez menos.

A constatação propagandística do MPLA, partido no poder desde 11 de Novembro de 1975, insere-se naquilo a que se convencionou chamar o Dia da Paz e da Reconciliação Nacional. O MPLA exorta os seus militantes, simpatizantes e amigos e todo os angolanos a transformarem as comemorações do 4 de Abril numa “verdadeira jornada de reflexão e de júbilo”.

Que o regime esteja em júbilo (assinala desde logo a rendição da UNITA) ainda vá que não vá. No entanto, aos angolanos resta eventualmente reflectir… de barriga vazia. E, exactamente por termos 20 milhões de pobres, é que o regime espera que as reflexões dos angolanos não sejam muito profundas.

Reflectir sobre o estado actual de Angola é lembrar que hoje, como ontem e certamente como amanhã, apenas um quarto da população tem acesso a serviços de saúde, que, na maior parte dos casos, são de fraca qualidade; que 12% dos hospitais, 11% dos centros de saúde e 85% dos postos de saúde existentes no país apresentam problemas ao nível das instalações, da falta de pessoal e de carência de medicamentos.

Reflectir sobre o estado actual de Angola é lembrar que 45% das crianças angolanas sofrerem de má nutrição crónica, sendo que uma em cada quatro (25%) morre antes de atingir os cinco anos.

Reflectir sobre o estado actual de Angola é lembrar que a dependência sócio-económica a favores, privilégios e bens é o método utilizado pelo MPLA para amordaçar os angolano; que 80% do Produto Interno Bruto é produzido por estrangeiros; que mais de 90% da riqueza nacional privada é subtraída do erário público e está concentrada em menos de 0,5% de uma população; que 70% das exportações angolanas de petróleo tem origem em Cabinda.

Reflectir sobre o estado actual de Angola é lembrar que o acesso à boa educação, aos condomínios, ao capital accionista dos bancos e das seguradoras, aos grandes negócios, às licitações dos blocos petrolíferos, está limitado a um grupo muito restrito de famílias ligadas ao regime no poder.

O MPLA pede aos angolanos que fortifiquem os laços de união em prol da busca de consensos para o futuro do país, a consolidação da unidade nacional e o aprofundamento do processo democrático em curso.

Essa do aprofundamento do processo democrático em curso é mesmo brilhante. Aliás, nem sequer haveria necessidade de o aprofundar. Basta ver que, por exemplo, o ex-presidente da República, José Eduardo dos Santos, esteve no poder dezenas de anos sem nunca ter sido eleito e que João Lourenço foi “eleito” devido a carradas de batota que a máquina do MPLA/Estado colocou ao seu serviço.

“A paz tem permitido ao nosso povo o usufruto do direito à segurança, à tranquilidade, à estabilidade e à livre circulação em todo o território nacional e tem facilitado o processo de reconstrução e de criação de infra-estruturas para o desenvolvimento, o que tem sido constatado, de forma entusiasta, por todos os de boa-fé, cientes de que a paz veio para ficar e de que o futuro será infinitamente melhor do que o passado”, lê-se em todas as declarações que, ao longo dos últimos 22 anos, a máquina propagandística do regime produziu e divulgou por todos os cantos e esquinas.

Pois é. Tudo isso é visto, sentido, apoiado e reconhecido pelo menos por 70 por cento da população que, recorde-se, continua na miséria.

“O processo de reconciliação nacional, que continua a decorrer de forma sólida, não obstante as inúmeras tentativas de o dificultar, permite que os angolanos acreditem no futuro e tem constituído um factor importante para a consolidação da economia e o seu notado crescimento, viabilizando o processo de reconstrução nacional e a paulatina melhoria das condições de vida do nosso povo”, sublinhava em 2011 o Secretariado do Bureau Político do MPLA.

O MPLA, o regime de João Lourenço, não diz mas, importa reconhecê-lo, as “inúmeras tentativas de dificultar” todo o processo fazem com que, no mínimo, o MPLA precise aí de mais uns 51 anos para tornar o país num Estado de Direito.

O Governo de Angola/MPLA considera (em tese) que a paz é “uma conquista de todos os angolanos”, mas a UNITA defende que o calar das armas, há 22 anos, ainda não se reflecte na condição social e económica das famílias.

O Bureau Político do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) diz que, 22 anos depois, “constata, aplaude e encoraja o facto de a sociedade angolana estar mais aberta”, em que os seus cidadãos “têm mais liberdade de expressão, de reunião e de associação e em que existe maior liberdade de imprensa”.

Já a UNITA, maior força da oposição que o MPLA ainda permite que exista, considera que o calar das armas “ainda não se reflecte na condição social e económica de muitas famílias”.

“Há muitas famílias que se conformam com elevados índices de pobreza, agravados pelo desemprego que afecta a juventude e os ex-militares, em particular”, sublinhou a UNITA, que reclama o “cumprimento cabal” dos compromissos assumidos pelo Governo com a UNITA com vista à paz efectiva em Angola, tendo como base os acordos assinados em Bicesse, Lusaca e Luena.

“Longe de celebrarmos apenas mais uma data do calar das armas, a UNITA considera que se impõe uma profunda reflexão sobre as bases e pressupostos em que assentaram os precedentes que vieram a culminar com o Memorando de Entendimento do Luena (acordo de 2002), com vista à paz efectiva e duradoura, factores imprescindíveis na construção e consolidação de um verdadeiro Estado Democrático de Direito”, diz a UNITA.

“A celebração remete para a reflexão de que a paz social passa, inevitavelmente, pela boa governação, com a adopção de políticas públicas viradas para a resolução dos problemas candentes das famílias e das suas comunidades, mormente no que tem a ver com a distribuição justa e equitativa do rendimento nacional, educação e saúde de qualidade, bem como na igualdade de direitos e oportunidades para todos singrarem na vida, independentemente da sua condição política ou social”, refere.

“Eu estou sempre acordado porque estou em constante movimento. Vocês é que estão a dormir… por isso é que o MPLA está a aldrabar-vos”. Não somos nós os autores desta afirmação que, embora dita há muitos anos, mantém toda a actualidade. Quem a disse foi Jonas Savimbi.

Foto: Abreu Muhengo “Kamorteiro” e Armando da Cruz Neto

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