UM MILHÃO DE MORTOS ENTRE PARIS E KIGALI

O presidente francês, Emmanuel Macron, considera que a França “poderia ter impedido o genocídio” no Ruanda em 1994 “com os seus aliados ocidentais e africanos”, mas “não teve a vontade de o fazer”. Calcula-se que tenham morrido entre 800 mil a 1 milhão de pessoas.

Por Orlando Castro (*)

No domingo, dia em que se assinalam os 30 anos do genocídio, Emmanuel Macron vai partilhar uma mensagem em vídeo nas suas redes sociais, o presidente à agência noticiosa France-Presse (AFP).

“O chefe de Estado recordará, em particular, que, quando começou a fase de extermínio total dos tutsis, a comunidade internacional tinha os meios para saber e agir, graças ao seu conhecimento dos genocídios, tal como nos foi revelado pelos sobreviventes dos arménios e da Shoah [o Holocausto], e que a França, que poderia ter impedido o genocídio com os seus aliados ocidentais e africanos, não teve a vontade de o fazer”, acrescentou a Presidência francesa

“Em 27 de Maio de 2021, em Kigali, o Presidente da República reconheceu a responsabilidade da França no genocídio dos tutsis, tal como estabelecido pela comissão de historiadores e investigadores liderada pelo professor Vincent Duclert sobre o papel e o envolvimento da França no Ruanda”, explicou.

“Em 7 de Abril de 2024, o chefe de Estado reafirmará que a França está ao lado do Ruanda e do povo ruandês, em memória de um milhão de crianças, mulheres e homens martirizados por terem nascido tutsis. Reiterará a importância do dever de memória, mas também do desenvolvimento de conhecimentos de referência e da sua divulgação, nomeadamente através da educação das gerações mais jovens em França”, prosseguiu.

Convidado pelo Presidente do Ruanda, Paul Kagame, a participar nas comemorações do 30.º aniversário do genocídio no domingo, Emmanuel Macron não estará presente e será representado pelo seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Stéphane Séjourné, e pelo secretário de Estado do Mar, Hervé Berville, que nasceu no Ruanda.

O genocídio do Ruanda ocorreu de 7 de Abril a meados de Julho de 1994, período de 100 dias durante o qual a maioria Hutu, liderada por extremistas étnicos, realizou um massacre contra a minoria Tutsi e Hutus moderados, resultando em mais de 800 mil mortos.

A violência foi desencadeado pela morte do presidente do país, um Hutu, cujo avião em que viajava foi abatido na véspera, dia 6 de Abril de 1994. É aplicada a designação de “genocídio” porque não se tratou de incidentes isolados ou de confrontos esporádicos, mas sim de uma campanha preparada e sistemática, destinada a eliminar toda a população Tutsi, de forma geral e indiscriminada.

Calcula-se que tenham morrido entre 800 mil a 1 milhão de pessoas durante este período de pouco mais de três meses, enquanto a guerra civil que se seguiu terá causado cerca de 2 milhões de refugiados.

O Ruanda e o Burundi são dois pequenos países africanos que viviam em permanente tensão desde a sua independência, na década de 50. Essa tensão decorria precisamente do conflito entre a maioria Hutu e a minoria Tutsi.

No Ruanda, as raízes desta hostilidade remontam ao período colonial, quando a região estava sob administração alemã e, posteriormente, belga. Como noutras regiões de África, as fronteiras dos territórios são artificiais e não correspondem a limites naturais ou respeitam as diferenças étnicas. Além disso, a administração colonial belga favoreceu a rivalidade entre os dois grupos e promoveu a supremacia da minoria Tutsi.

No início da década de 90, a guerra civil estava iminente e previa-se um conflito em larga escala, sobretudo pelo surgimento de um movimento supremacista Hutu que promovia a violência contra os Tutsi e rejeitava as tentativas de conciliação e de partilha de poder.

O Ruanda era uma espécie de barril de pólvora, cujo rastilho deflagrou, precisamente, no dia 7 de Abril de 1994.

O genocídio do Ruanda causou enorme indignação na opinião pública mundial, não apenas pelo horror causado pelos massacres, mas também pela passividade e indiferença das potências mundiais.

A ONU colocou um pequeno contingente militar no país, nos meses que antecederam os massacres, mas foi completamente impotente para proteger as populações. Houve alertas e denúncias de que estava em marcha uma catástrofe humanitária no país, mas nada foi feito.

A França, tradicional aliada dos Hutus, foi posteriormente acusada de ter tido conhecimento dos planos genocidas das elites Hutus e de não ter tomado nenhuma acção. As organizações de defesa dos direitos humanos denunciaram igualmente a hipocrisia e a insensibilidade da comunidade internacional, por se tratar de uma região remota, longe dos centros de poder mundiais.

O genocídio do Ruanda teve um impacto profundo na economia e no equilíbrio político de toda aquela região, e cujas feridas continuam, em boa parte, ainda por sarar na actualidade.

Nós sabemos que os ucranianos, tal como os russos, não são pretos. Nós sabemos que os israelitas e os palestinianos também não são pretos. O Ocidente, a Europa, os EUA não se preocupam com África. Por cá, a maioria são pretos e, por isso, a comunidade internacional pode dormir descansada. Dormir e ter, pelo menos, três refeições por dia nos melhores hotéis…

De uma forma geral e desde sempre os africanos foram (em alguns casos continuam a ser) instrumentos descartáveis nas mãos dos colonizadores ou dos ex-colonizadores. Ontem uns, hoje outros. Entre escravos, carne para canhão e voluntários devidamente amarrados, foram um pouco de tudo. Muitas vezes foram tudo ao mesmo tempo. Na I Guerra Mundial, por exemplo, deram (pudera!) o corpo às balas, a alma ao Diabo e a dignidade às valas comuns.

Neste conflito alheio, mais de um milhão estiveram na frente de combate, morreram mais de 100 mil. Alguém se recorda hoje deles, ou os recorda, com a dignidade histórica que merecem? Se ser soldado desconhecido é só por si um drama, ser um soldado desconhecido… africano (negro) é obra desenganada. Infelizmente.

De uma forma geral, os africanos são um povo (lato sensu) ingénuo que, mesmo depois de ter poder de decisão, acredita em milagres, sobretudo quando estes não são feitos por santos da casa. Não admira, por isso, que muitos dos seus dirigentes da época (tal como os de hoje) “esperavam que a sua participação, em pé de igualdade com os seus companheiros de armas europeus e americanos, numa guerra que não lhes dizia respeito, mas que lhes foi imposta”, lhes trouxesse “melhorias constitucionais, económicas e sociais nos seus territórios de origem”, escreveu Eugénio Costa Almeida no seu livro “África no Centenário da Guerra de 1914-1918”.

Enganaram-se. O máximo que conseguiram como reconhecimento do seu esforço e dedicação foi mudarem de donos. Ficou, contudo, a semente da rebelião que germinaria no deserto de injustiças que os europeus foram, do alto da sua suposta superioridade, regando.

Suposta superioridade que levou os europeus a pensarem que, regando essa semente, acabariam por a afogar. É claro que, mesmo no próprio continente africano, muita dessa rega foi feita com sangue e não com água. Denominador comum em todas as guerras em África entre africanos: a ambição ocidental em dominar as riquezas autóctones.

Em Angola (tal como noutras colónias) as consequências, o acerto de contas, surgiram meio século depois, contra as potências coloniais. Embora banidas pelo uso da razão da força conseguiram que a força da razão se mantivesse viva e, com a ajuda dos europeus africanos, gerasse um imparável nacionalismo.

A tudo isto acresce a megalómana tese europeia de que a História só é válida quando são os europeus (ou os seus sipaios autóctones) a contá-la. Daí a tendência de, por regra, esquecer o contributo da participação de africanos. Até mesmo nos meios académicos, supostamente mais equidistantes de interesses rácicos, os africanos eram (são) vistos como seres menores, auxiliares, sem direito a figurar como combatentes em pé de igualdade com os europeus juntos dos quais mataram e morrem por, corrobore-se, uma causa que não era sua.

”Recentes documentos, entretanto, disponibilizados, mostram que a presença dos africanos foi muito maior do que parecia expectável”, assinala Eugénio Costa Almeida, acrescentando que (…) “a participação de expedicionários africanos (soldados e carregadores) junto das forças anglo-francesas se elevou a mais de 500.000 indivíduos; (…) entre os mais de 1.186.000 tropas francófonas mortas em combate, cerca de 71.100 eram provenientes das colónias francesas da Argélia, Madagáscar, Marrocos, Senegal e Tunísia”.

Ao longo dos tempos, milhares de africanos morreram para ajudar os europeus. Quantos europeus morreram para ajudar os africanos? Pois. Essa é outra história da nossa História comum…

Em 2016, Sidiki Kaba, presidente da Assembleia dos Estados parte do Estatuto de Roma, tratado fundador do Tribunal Penal Internacional (TPI), apelou à África do Sul e ao Burundi para reconsiderarem as suas decisões de retirada daquela instância. Hipocrisia ao seu mais alto nível.

Em síntese, dir-se-ia que o Ocidente vende as armas, os africanos matam-se e o TPI condena os… africanos!

Enquanto existir carne negra para morrer e riquezas para roubar, os países ditos civilizados cá estarão prontos para vender arsenais em nome da… justiça.

O antigo Presidente da Libéria, Charles Taylor, foi condenado a 50 anos de prisão pelo Tribunal especial das Nações Unidas para a Serra Leoa, pelos crimes cometidos na guerra civil de 1991-2002, descritos pelo juiz na leitura da sentença como “os mais abomináveis” na história da humanidade.

Taylor, que insistiu estar inocente, fora dado como culpado numa decisão judicial histórica, em 11 acusações de uma série de crimes de guerra – de violações a assassínios ao uso de soldados crianças – devido ao apoio que deu aos rebeldes da Frente Revolucionária na Serra Leoa durante a guerra civil em que morreram dezenas de milhares de pessoas.

Foi o primeiro antigo chefe de Estado a ser condenado por crimes de guerra num tribunal internacional desde os julgamentos de Nuremberga, no pós II Guerra Mundial.

Os procuradores pediam uma sentença de 80 anos de prisão, que reflectisse “a gravidade dos crimes” cometidos e o “papel principal” que Taylor teve, argumentando ainda que a idade e o débil estado de saúde do arguido não deveriam ser considerados como factores na tomada de decisão da sentença por parte dos juízes.

A defesa argumentou por seu lado que aquele termo de prisão era “manifestamente desproporcionado e excessivo” e que o tribunal concluíra apenas na culpa do ex-Presidente num “papel indirecto”, o de ajudar os rebeldes e não na sua liderança.

Na altura, segundo dados do Instituto de Pesquisas para a Paz de Estocolmo (Sipri), o comércio internacional de armas tinha aumentado 24% nos últimos cinco anos. Pois é. O TPI julga (alguns) criminosos de guerra que, embora não sendo fabricantes de armas, lhe dão o uso para que elas foram feitas.

E se os maiores exportadores mundiais são os EUA, a Rússia, a Alemanha, a França e Grã-Bretanha, não deveriam estes países serem igualmente julgados pelo TPI?

A Índia tornou-se o maior importador de armas do mundo (representa 10% do comércio mundial), seguida de Coreia do Sul, Paquistão, China e Singapura.

Segundo os autores do estudo, a Índia ultrapassou a China como maior comprador graças em grande parte ao facto de a indústria bélica chinesa ter crescido muito nos últimos anos.

Um outro estudo divulgado por um centro de estudos de Londres indicava que os gastos militares asiáticos superaram os europeus pela primeira vez em 2012.

Stephanie Blencker, da Sipri, afirmou que a China estava prestes a integrar o grupo dos cinco maiores vendedores de armas do mundo, sobretudo devido às suas vendas ao Paquistão.

Por outro lado, o coronel Theoneste Bagosora, acusado de ser o “cérebro” do genocídio ruandês de 1994, que causou mais de 800.000 mortos, foi condenado no dia 18 de Dezembro de 2008 a prisão perpétua pelo TPI para o Ruanda.

Achamos muito bem, apesar de a justiça teimar (quando teima, e teima poucas vezes) em actuar à posteriori e não como meio profiláctico. É que, pensamos, para os milhares de mortos já nada adiantou a prisão de Theoneste Bagosora ou de Charles Taylor.

Nenhum destes (e de muitos outros) criminosos fabrica armas. Elas vão lá parar, a troco de petróleo ou de diamantes, enviadas pelo Ocidente que é onde elas se fabricam. Aliás, se Omar al-Bashir ou Thomas Lubanga, por exemplo, não existissem teriam de ser fabricados para que a indústria de armamento, que não é africana, pudesse continuar a ter lucros fabulosos.

O TPI considerou que Theoneste Bagosora foi o principal instigador do genocídio ruandês que, em 100 dias, vitimou mais de 800.000 pessoas. E, enquanto o TPI se entretém a fazer esta justiça (sem dúvida importante), outros genocídios continuam a acontecer, sem que se tomem medidas profilácticas.

Por cada genocídio que acabe, outro tem necessariamente de nascer. É disso, ou também disso, que vivem os países mais ricos do mundo. Com a diferença que os criminosos dão a cara, enquanto os instigadores e municiadores se acobardam nos areópagos da alta política ocidental.

Outros dois oficiais do exército ruandês foram condenados à mesma pena, igualmente por genocídio, crimes de guerra e contra a humanidade. “O tribunal condena Bagosora, Aloys Ntabakuze, Anatole Nsengiyumva a prisão perpétua”, afirmou na altura o presidente norueguês do tribunal, Erik Mose.

E então os outros? Os europeus, os norte-americanos, os russos ou os israelitas não deveriam também ser condenados?

Foi feita justiça? Foi, com certeza. E, portanto, todos podem dormir descansados até aos próximos julgamentos. É que, com tanta hipocrisia internacional, não vão faltar casos para julgar e – é claro – milhões de vítimas para somar ao rol dos que não contam para nada. Veja-se, por exemplo, o caso da Síria.

De acordo com a acusação, Bogosora anunciou em 1993, ao fechar a porta a negociações com os rebeldes tutsis da Frente Patriótica ruandesa, que ia regressar ao país para “preparar o apocalipse”, ou seja, o genocídio.

Hoje todos sabem que há outros generais a “preparar o apocalipse” mas, apesar disso, estão caladinhos. Lá vão vendendo as armas, trazendo petróleo e diamantes e depois reclamam justiça e decretam umas prisões perpétuas.

Enquanto existir carne negra para morrer e riquezas para roubar, os países ditos civilizados lá estarão prontos para vender arsenais em nome da… justiça.

(*) Com agências e RTP

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