PRIMEIRO PRESIDENTE DE SÃO TOMÉ É O ÚNICO SOBREVIVENTE

Mais do que a crise em que São Tomé e Príncipe vive mergulhado, diz estar preocupado com as causas da situação – pela persistência com que se arrastam, mas também pela indiferença com que a sociedade, pelo menos parte significativa dela, parece encará-las, dessa maneira conferindo-lhes normalidade.

Por Xavier de Figueiredo

Entre elas, talvez a pior de todas, como a aponta, o espírito de mera prosperidade pessoal que parece comandar grande parte dos políticos. Ora levando-os a usar os seus poderes e competências para colher vantagens pessoais, ora a fazer o que for preciso para se manterem no poder, inclusive traindo quem seja preciso trair.

Do actual governo, encabeçado por uma figura, Patrice Trovoada, apontada em meios domésticos como exemplo da mistura de assuntos de Estado com interesses privados, faz parte um ministro que foi presidente do MLSTP/PSD, partido rival da ADI, actualmente no poder. A estranheza da “passagem” é tanto maior quanto o aludido ministro, enquanto líder da bancada parlamentar do MLSTP/PSD, função que viria a exercer depois de ter deixado a liderança do partido, ter dado nas vistas pelos seus ácidos ataques a Patrice Trovoada.

O ambiente de corrupção que medra no Estado, facilitado por realidades como a mediocridade e o compadrio, mas, amarga conclusão, avolumando-as ainda mais, transformou São Tomé e Príncipe num país do qual os investidores sérios fogem e os chamados parceiros (governos e instituições internacionais), se vão pondo cada vez mais à retranca. As consequências de tal evidência, entre elas um crescimento anémico, obrigando o país a andar há anos de “mão estendida”, comprometem o seu futuro – razão bastante para se criar algo que defende com veemência: o estabelecimento de um consenso entre partidos, igrejas e organizações da sociedade civil, com o fim de encontrar um novo caminho para o país.

São desabafos como estes, dolentes, que Manuel Pinto da Costa deixa soltar de apreciações que faz do presente do seu país. A autoridade ou a pertinência com que os faz vem da própria história da sua vida – uma vida longa e cheia de coisas cheias. Foi primeiro presidente de São Tomé e Príncipe, corolário da causa nacionalista que antes abraçara. Exerceu o cargo durante mais de quinze anos; voltou a ele mais tarde, durante quatro, desta feita eleito em sufrágio universal. A atenção que por “ossos do ofício”, mas não apenas por isso, prestou aos assuntos do seu país, parece tê-la conservada intacta nos tempos de retiro político que já leva.

Quando vem a Lisboa, ultimamente quase sempre em busca de remédio para maleitas às quais o fraco sistema de saúde do seu país não dá a devida resposta, é em casas de amigos ou de conhecidos que se aloja. Os mais de vinte anos em que exerceu funções cimeiras de poder não serviram, afinal, para o enriquecer. Vê nisso uma espécie de contradita de insinuações e acusações que em tempos passados lhe foram fazendo, inclusive apresentando-o como o “o mais rico presidente africano”. E, no entanto, não faltam em Lisboa, incluindo alguns dos seus mais selectos arredores, apartamentos e moradias de outros santomenses com passagens pelo poder; ou que ainda lá se conservam.

A Manuel Pinto da Costa é-lhe também devida a “honraria” de ser o único sobrevivente dos cinco homens que há meio século se tornaram presidentes, os primeiros, dos novos Estados independentes de África nos quais se converteram as antigas colónias portuguesas. Outro motivo – a sua prerrogativa de guardião de memórias desses homens e de coisas com eles vividas – para uma conversa que vinda de tempos passados acabou em tempos do presente. A “boa cabeça” que conserva ajudou. Não fora a canadiana em que precisa de se apoiar para “fintar” um mal ósseo e dir-se-ia que a idade biológica, 87, não coincide, por excesso, com a sua aparência física.

A viragem democrática

A primeira vez que exerceu o cargo de presidente, entre 1975 e 1991, foi no quadro de uma realidade política então muito presente em África – a dos regimes de partido único, todos autoritários. Os que ascendiam ao cargo presidencial era por simples inerência da sua condição de lideres desses partidos, alguns deles considerando-se a si próprios “guias da sociedade e do Estado”. A preferência, não assumida, mas nítida, com que o MLSTP passou a contar da parte de Portugal, sobretudo a partir do momento em que o processo de descolonização começou a ser influenciado por uma dinâmica revolucionária, foi meio caminho andado para que Pinto da Costa viesse a ocupar o cargo. Era ele o presidente do MLSTP (Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe).

Quando o muro de Berlim caiu e por via disso o grande jogo da política internacional virou, Pinto da Costa não hesitou, coisa de que se gaba, em aceitar naturalmente o princípio do multipartidarismo que então se começou a espalhar. Lembra-se de uma cimeira dos PALOP, em Cabo Verde, em 1989 (ano do mauerfall, como o bom domínio que tem do alemão o levou por uma vez a chamar à queda do muro), a ser bastante criticado por alguns dos seus pares, Aristides Pereira, Nino Vieira e Joaquim Chissano, os mais mordazes, pela abertura que então revelação às perspectivas de grandes mudanças que então se vinham desenhando. A própria URSS, onde Gorbachev já “reinava” mandou-lhe um emissário para o advertir.

Na sua vida de exilado político, toda ela partilhada com a vida de estudante, Pinto da Costa passara anos a fio na defunta RDA (República Democrática Alemã). Conta hoje, parecendo verdadeiro, que muito daquilo que aí viu e sentiu, ou mesmo viveu, foi alimentando nele sentimentos de decepção ou de reprovação da ideologia comunista. Isso e o facto de ter “abraçado” o sistema de partido único como algo que o espírito do tempo tornava natural em Àfrica, é um dos argumentos que invoca para justificar a abertura com que aceitou a transição democrática. Viu nela proveitos como uma descompressão social e política e um impulso ao desenvolvimento económico.

A economia de São Tomé e Príncipe nunca se guiara propriamente por modelos centralistas. O fracasso em que foram redundando, um a um, todos os processos de nacionalização das antigas roças e os maus resultados de duas empresas públicas, uma cervejeira e uma cerâmica, ambas para ali deslocalizadas pela RDA, terão contribuído para reforçar a cautela das novas autoridades ante a economia socialista. Acontecera, até, em abono dessa cautela, ter-se descoberto que o cacau que para pagar as fábricas era fornecido à RDA, acabava reexportado para a Alemanha Ocidental como forma de acesso ao forte marco alemão.

Às suas reservas em relação aos sistemas ou experiências revolucionárias, também não eram estranhos episódios como aquele, passado em 1978, quando Kadhafi, grande paladino da revolução em África, lhe prometeu importantes ajudas destinadas a Pôr de pé em São Tomé e Príncipe um moderno e pujante sistema de ensino, mas apenas desde que aquele “jovem presidente”, como o tratava, ali à sua frente, o ajudasse a levar por diante o “divino desígnio” de estender o Islão em países do Golfo da Guiné onde a fé ainda não chegara.. E nem era preciso que se convertesse ao islamismo. Bastaria autorizar a construção de algumas mesquitas no seu país.

Ainda antes da independência, ele próprio, na qualidade de líder do MLSTP, promovera uma reunião com os roceiros destinada a aquietá-los. Alguns já tinham deixado o país e constava que outros se propunham fazê-lo, assustados com o ruído dos “cívicos” como era conhecido um activo bando de jovens santomenses dados a uma agit-prop revolucionária da qual fazia parte o controlo da economia. Na sua maioria eram estudantes na Metrópole, que no seguimento do 25 de Abril se afadigaram em regressar, imbuídos de ideologias marxistas que passaram a propagar, agrupados numa Associação Cívica, por eles criada como uma espécie de frente interna de apoio ao MLSTP, então ainda no exílio.

A produção de cacau – verdadeiro ouro do país – estava então na casa das 12.000 t. Já muito longe do máximo de 35.000 t que chegara a atingir no início do século XX, mas, ainda assim, uma considerável fonte de riqueza para o território. Os seus crónicos orçamentos superavitários eram devidos ao El Dorado do cacau. Por efeito do abandono das roças por parte dos roceiros metropolitanos, a produção foi decaindo sempre. Em 1988 já não passava de 3.000 t e em 2000 estava em 2.000 t. O criterioso tratamento que os cacauzais requerem para que as plantas se mantenham vivas deixara de ser assegurado pelos seus novos “donos”. Ora por falta de saberes, ora por falta de organização e meios. de vontade. Muitas degeneraram em quintas de lazer.

Foi em Março de 1991 que tiveram lugar as primeiras eleições multipartidárias (ou livres) em São Tomé e Príncipe. Por ironia, havia sido em Cabo Verde, dois meses antes, que eleições da mesma natureza haviam tido lugar, um facto não inteiramente surpreendente para Pinto da Costa, tendo ele ainda presente a maneira efusiva com que e, 1989 fora saudado por dirigentes cabo-verdianos conhecedores da maneira como se batera na cimeira dos PALOP pela aceitação da liberalização política. Demarcavam-se, assim, de Aristides Pereira, coisa que a ter sido do seu conhecimento o levara a não se deixar isolar. Os partidos únicos perderam as eleições em ambos os países, sendo a seguir rendidos por partidos novos, recém-criados.

A lembrança da tranquila aceitação com que Pinto da Costa acolheu as mudanças políticas para as quais a queda do muro abriu as portas, e a naturalidade com que encarou o desastroso resultado para o MLSTP daquelas primeiras eleições multipartidárias, deverão ter contado sobremaneira na vontade do eleitorado que em 2011 lhe deu a vitória numas eleições presidenciais às quais se apresentou como candidato independente, embora com o apoio do partido. Apenas um outro presidente em África, Mathieu Kérékou, do Benim, cometera a proeza de se fazer eleger num pleito livremente disputado, depois do exercício do cargo num quadro de partido único.

Seminarista por engano, político por vocação

A vida de Pinto da Costa, do berço para diante, não fugiu ao comum das vidas dos miúdos santomenses do seu tempo. S. Tomé e Príncipe fora sempre uma colónia sui generis, realidade a que não eram alheias coisas como a diversidade de origens da sua população, fenómeno considerado gerador de uma mentalidade e uma cultura muito próprias. De toda a filharada de que fazia parte, foi a ele que o pai, escriturário de uma casa de comércio, a Lima Gama (um antepassado de Jaime Gama) reservara o destino de “ser padre”. Foi assim que feita a antiga 4ª classe, o que o esperou foi rumar a Luanda para frequentar o Seminário.

Os quatro anos, 1950/54 em que frequentou os bancos de seminário, tendo por professores de teologia Alexandre do Nascimento e Joaquim Pinto de Andrade, o primeiro mantendo-se sempre na vida eclesiástica, chegando mesmo a cardeal, o segundo renunciando a ela para se dedicar à política, não viriam, porém, a servir para confirmar a vocação que o pai vira nele. As interrogações e as dúvidas que o assaltavam, e por vezes exteriorizava em relação a insondáveis aspectos da religião, entre eles os mistérios da fé, abrem-lhe a porta da rua. Às muitas admoestações seguia-se, sem apelo nem agravo, a expulsão.

O 4º ano completo que traz do seminário quando no velhinho “Pátria” volta à sua terra, era já uma base importante para prosseguir a sua ilustração – é o que pensa o pai. Não tem o dinheiro suficiente para o mandar para a Metrópole, destino que via como o melhor, mas uma subscrição aberta na família consegue o milagre de reunir o cabedal suficiente. Em 1959, quando é chamado para o serviço militar (o 7º ano completo abre-lhe as portas de Mafra, para frequentar um curso de oficiais), o espírito que o comanda e anima já é, porém, vincadamente político e nacionalista. O estreito contacto com outros estudantes das antigas colónias portuguesas fizera o seu caminho.

O orgulho que de certeza daria ao pai quando um dia se tornasse oficial do Exército não viria a passar de aspiração ficada por realizar. Engendra um motivo de saúde para não se apresentar no quartel, situação que se arrastará o tempo suficiente para preparar uma fuga que o levará ao exílio. O primeiro destino é Paris, aonde chega num comboio vindo de Hendaya atulhado de portugueses que para ali vão em busca de melhores condições de vida. Segue-se Bruxelas e depois Saarbrucken, na Alemanha Federal onde se emprega numa fábrica de cerveja; depois Frankfurt. Está já em Berlim Ocidental quando, impelido por um idealismo ainda viçoso, atravessa a porta da Hunten der Linden que o leva à radiosa pátria comunista alemã de Willi Stoph.

A vida de estudante do ensino superior em que aí se lança tornada possível pela aprendizagem da língua germânica e por garantias de bolsas, terá o seu expoente numa licenciatura em Economia na Universidade de Humbolt, na qual mais tarde se doutorará e a cujo corpo docente chega a pertencer 1971, como assistente. Já a vida política, para a qual contou com apoios e cobertura da UGEAN (União Geral dos Estudantes da África Negra dos Territórios sob Dominação Colonial Portuguesa), de que era dirigente, há-de levá-lo, em 1972, a participar na fundação do MLSTP. Elegem-no secretário-geral, tendo Leonel D’Alva como adjunto. do qual se tornaria SG (Leonel d’Alva era o Adjunto). O MLSTP é uma evolução do CLSTP (Comité de Libertação de São Tomé e Príncipe), pelo qual também passaram Miguel Trovoada e Carlos Graça.

É em Libreville, no Gabão, ali ao lado de São Tomé e Príncipe que vive, quando em Portugal ocorre o pronunciamento militar de 25 de Abril de 1974. Por pouco esteve parra ser outro o seu paradeiro, mas, à custa de influências com que contou, fora possível anular uma medida de expulsão que sob ele impendeu, baseada num relatório do serviço secreto gabonês, chefiado pelo francês Conan, que o considerava um “perigoso comunista”, a manter à distância. Ao passado de Libreville como fulcro do nacionalismo santomense ficou também ligada a criação da Associação Cívica, encabeçada por Gastão Torres.

A muitas dúvidas e incertezas inicialmente geradas pelo 25 de Abril, aconselhavam a que o MLSTP e os seus dirigentes se mantivessem a bom recato, para não se exporem a “imprevistos”. O regime colonial não brincava em serviço. Mas era preciso aproveitar a mudança para promover no território uma campanha de sensibilização em prol do MLSTP. O voluntarismo dos “cívicos”, na sua maioria acabados de chegar da Metrópole e o benefício da dúvida com que a partir de certa altura se foi passando a olhar para as intenções descolonizadoras de Portugal, fez com que tivesse sido a Associação Cívica a desempenhar a tarefa.

De avanço em avanço o processo iniciado no 25 de Abril não tardaria abrir as portas à descolonização do minúsculo território. A via que há-de determinar a modalidade e o alcance da transição é a referendária – assegura Almeida Santos a Miguel Trovoada quando com ele se encontra em Argel para uma conversa exploratória. O argumento invocado é o não reconhecimento ao MLSTP de legitimidade suficiente para uma transmissão directa do poder. Os impetuosos avanços do PREC, em Portugal, haveriam, porém, de tornar efémera a vida da exigência do referendo como via de acesso ao poder.

Entregar directamente o poder ao MLSTP foi, no entanto, algo que os descolonizadores cuidaram de evitar, por descabida. A sua legitimidade como movimento de libertação era posta em causa. Não lutara “de armas na mão” e a sua acção política, como força constituída de fresca data, resumia-se a muito pouco. A sua representatividade político-social também merecia reservas. O se programa progressista gerava desconfianças.. Na sociedade não faltavam correntes que pugnavam por um outro caminho para a independência, havendo também aqueles que davam preferência à continuação de uma ligação a Portugal. Diziam que a pequenez do território e a sua escassa base económica aconselhavam a isso. A vontade de entregar o poder ao MLSTP, essa, porém, persistiu. Evitou-se a via directa, mas a escolhida foi “quase isso”.

Nas vésperas da data fixada para a independência, 12 de Julho de 1975, o governo de transição em funções, dominado por quadros do MLSTP ou próximos, procederia à criação de uma Assembleia Constituinte, para a qual o poder seria formalmente transferido no acto da proclamação da independência. Tudo se viria a passar conforme Pires Veloso, o brigadeiro português que chefiava o governo de transição, dissera a Pinto da Costa, quando com grandes deferências, incluindo a de o instalar numa casa de campo dos governadores, no morro da Trindade, o recebeu no território algum tempo antes data. O que estava decidido era que o poder fosse parar às mãos do MLSTP, atentas vantagens como a de ter do seu lado os quadros nacionais. Até a data fixada coincidiu com a data de 1972 em que o MLSTP fora fundado.

E assim se passou tudo. À passagem de 11 para 12 de Julho, a bandeira da nova nação era içada num mastro do qual imediatamente antes fora arriada a bandeira portuguesa, que naqueles ares quentes tremulara havia cinco séculos. Rosa Coutinho, que na cerimónia representou o Estado Português, fez o que estava previsto: entregou o poder à recém-constituída Assembleia Constituinte, ela também dominada por gente do MLSTP ou com ele alinhada. Sem grande perda de tempo seguiu-se uma reunião do Bureau Político do partido”, que culminou com a escolha de Pinto da Costa para exercer o cargo de presidente da nova República.

Estava iniciada a parte mais activa de uma vida política que diz ter valido a pena por ter levado a conquistas como a independência do país do jugo colonial. A independência económica então também prometida, essa é que cinquenta anos depois continua por alcançar. Pior ainda: a economia não tem parado de empobrecer – uma sina atenuada por via de um elevado endividamento ou graças a uma política de mão estendida. Mas isso é obra da acção humana. A rara abundância de frutos e tubérculos silvestres (matabala, fruta pão, mandioca e inhame, entre outros), bem como a fartura de peixe no mar, ajuda a explicar a conformação daquela gente com aquele destino. A fuga para o estrangeiro, Portugal à cabeça, de quadros mal pagados ou desempregados, também serve de alívio à pressão, mas de ruins efeitos para o país.

Fotos: Manuel Pinto da Costa com os três outros presidentes dos PALOP: Samora Machel, Agostinho Neto e Aristides Pereira e, nos dias de hoje, aos 87 anos.

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