A empresária angolana Isabel dos Santos, que reside no Dubai, reiterou hoje, num comunicado, aquilo que todos (nomeadamente a Procuradoria-Geral da República de Angola) sabem. Ou seja, que sempre esteve localizável e disponível para ser ouvida num processo em que é acusada de 12 crimes associados à sua gestão na petrolífera Sonangol.
A posição de Isabel dos Santos, que insiste que é visada num processo “político” surge em resposta a declarações do Procurador-Geral da República de Angola, Hélder Pitta Groz, feitas na quarta-feira em Portugal em que afirmou que o pedido de detenção de Isabel dos Santos no Dubai já foi enviado “há mais de um ano” e que continua à espera que seja cumprido.
“O tratamento é manifestamente desigual. Se não se tratasse de um processo político contra a filha do antigo Presidente da República de Angola [José Eduardo dos Santos, falecido a 8 de Julho de 2022), o próprio Comité de Avaliação e Análise para o Aumento da Eficiência do Sector Petrolífero, em 2016 dirigido por Edeltrudes Costa, que ordenou e decidiu a contratação de consultores para a reestruturação da Sonangol, seria investigado, bem como os ministros que também seriam investigados e detidos. Isto se não fosse todo este processo, um processo político contra uma única pessoa: Isabel dos Santos”, afirma Isabel dos Santos no comunicado.
Nas declarações aos jornalistas em Lisboa, o PGR do MPLA (versão general João Lourenço) lamentou que as autoridades árabes não procedam à detenção de Isabel dos Santos, mas salientou que o mais importante é que a filha do antigo Presidente de Angola se coloque à disposição das autoridades.
“As declarações do Senhor Procurador-Geral da República de Angola confirmam que eu não estou (nem nunca estive) em parte incerta ou desconhecida. Ou seja, é falso que as autoridades angolanas não me conseguem localizar. Como ele próprio declarou, conhece a minha morada e o meu paradeiro há mais de ano e meio, confirmando o que eu sempre afirmei: não sou fugitiva da Justiça”, afirma Isabel dos Santos.
“Estou, e sempre estive, disponível para prestar esclarecimentos no interesse da verdade. Durante mais de quatro anos participei e respondi em todos os processos, em Angola, Portugal ou qualquer outra jurisdição, sempre que fui solicitada”, acrescenta.
Pitta Groz, correspondendo às ordens superiores do Presidente João Lourenço, negou as alegações de processo político apresentadas pela defesa de Isabel dos Santos.
“A melhor forma de ela [Isabel dos Santos] poder demonstrar que é um processo político é colocar-se à disposição dos órgãos de justiça de Angola e aí poder mostrar, como diz, com provas concretas, que é um processo político e não que há factos ilícitos, é o melhor caminho para isso”, disse o Procurador angolano.
No entanto, segundo Isabel dos Santos, há mais de quatro anos que os processos estão todos sob segredo de justiça, tanto em Portugal como em Angola.
“Não me é possível saber as razões ou suspeitas que existem sobre mim pois é-me negado o acesso aos processos. Em consequência do ‘segredo de justiça’ também não me é permitido prestar esclarecimentos ou apresentar provas contraditórias, que podem eliminar as suspeitas e demonstrar a minha inocência e esclarecer a verdade”, responde a empresária angolana.
“Há mais de quatro anos que tenho as contas bancárias bloqueadas, há mais de quatro anos que estou impedida de trabalhar, há mais de quatro anos que estou impedida de pagar impostos ou, até, de viajar, há mais de quatro anos que as minhas participações nas minhas empresas estão bloqueadas; há mais de quatro anos que não me posso verdadeiramente defender, pois tudo é secreto”, insistiu.
Para a defesa de Isabel dos Santos, os países que respeitam os mais básicos Direitos Humanos não sujeitam as pessoas a segredos de justiça, negando assim, há vários anos, o direito da pessoa conhecer as suspeitas que recaem sobre si, de se defender e apresentar provas ou esclarecimentos para descoberta da verdade.
“Ao contrário do que afirma a PGR de Angola, o meu caso trata-se claramente de um processo político e a realidade dos factos assim o demonstra. Caso não se tratasse de um processo político, todos os outros membros do Conselho de Administração da Sonangol, que comigo trabalharam e decidiram contratar e pagar consultores, seriam acusados e teriam ordens de detenção, bem como as empresas consultoras como a BCG, McKinsey, PWC, Vieira de Almeida — Sociedade de Advogados, entre outros, que estiveram a trabalhar na Sonangol em 2016 e 2017 com mais de 130 consultores na sua sede, em Luanda. Também estes teriam ordens de detenção e as contas bancárias e empresas bloqueadas”, argumenta Isabel dos Santos no comunicado.
Antes considerada a mulher mais rica de África, Isabel dos Santos, idolatrada pelas mais insignes figuras políticas de, por exemplo, Portugal, que vive fora de Angola há vários anos, é acusada de 12 crimes num processo que envolve a sua gestão à frente da petrolífera estatal Sonangol entre 2016 e 2017.
O Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação revelou em 2020 mais de 715 mil ficheiros, sob o nome de Luanda Leaks, que pormenorizam alegados esquemas financeiros de Isabel dos Santos e do marido, Sindika Dokolo, entretanto falecido, que lhes terão permitido retirar dinheiro do erário público angolano através de paraísos fiscais.
Independentemente das teses da PGR do MPLA e de Isabel dos Santos, parece cada vez ais claro que todo o processo, para além de mostrar que os seus pés de barro estão a desmoronar-se, é um acerto de contas mal feito e politicamente letal para as partes envolvidas. E se parece…
“Arrestar não só os bens pessoais, como o produto de contas bancárias, mas os activos que constituem o império económico e financeiro de Isabel dos Santos em Portugal, como a NOS, o EuroBic ou a Efacec, é fundamental para começar a desmontar este império sujo que Isabel dos Santos criou com enorme cumplicidade das autoridades políticas e regulatórias portuguesas”, afirmou na altura João Paulo Batalha, presidente da direcção da Associação Cívica Integridade e Transparência, no dia 15 de Abril de 2020 à DW, comentando a decisão da justiça portuguesa, tomada em Março, de congelar as participações da filha do ex-Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, em empresas como a NOS e Efacec.
Para João Paulo Batalha, este era um passo importante para evitar que Isabel dos Santos fuja com o referido património e se ponha a salvo da justiça, quer portuguesa quer angolana. Em Janeiro deste ano, as autoridades angolanas solicitaram a colaboração da justiça portuguesa para o arresto das participações que Isabel dos Santos detém nas sociedades NOS, Efacec e no Eurobic, como via para obter garantia de retorno patrimonial de 1,2 mil milhões de dólares (cerca de 1,15 milhões de euros).
Certo é que este é um imbróglio que não consegue separar o que é da justiça e o que é da (baixa) política: De certa forma, até a justiça portuguesa está a ser instrumentalizada pela PGR de Angola.
Em Abril de 2020, a Winterfell, empresa de Isabel dos Santos que controlava a Efacec, acusou a justiça angolana de provocar “danos injustificáveis” às empresas portuguesas e estar a usar indevidamente a justiça em Portugal para “fins não legais e desproporcionais”.
Em comunicado citado pela agência Lusa, a empresa salientou na altura que a justiça angolana, além de ter arrestado bens num valor superior ao suposto crédito reclamado a Isabel dos Santos (1,1 mil milhões de euros), dá um tratamento diferente a empresas portuguesas e angolanas, solicitando medidas judiciais em Portugal que não foram aplicadas em Angola.
Como exemplo, a Winterfell lembrava que, em Angola, “o procurador não solicitou o bloqueio das contas das empresas, nem impediu que fossem pagos salários, rendas, impostos, água e luz”, enquanto em Portugal “pediu o bloqueio das contas, impedindo-as de operar e forçando a sua insolvência, levando ao despedimento de uma centena de trabalhadores”, situação agravada à época pela crise decorrente da pandemia de Covid-19.
A PGR angolana dá passos maiores do que a perna e não sabe como é que há-de descalçar a bota e nem repara que está descalça… E, portanto, está de alguma forma a tentar que a justiça portuguesa faça o trabalho que ela não consegue fazer.
O próprio processo movido contra Isabel dos Santos é um processo juridicamente mal feito e que politicamente tenta mostrar uma realidade que, de facto, não corresponde aos factos. Quer o Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa, quer a justiça portuguesa, em geral, não têm (ou não quer ter) a noção de que este é um caso político, um acerto de contas mal feito por parte da PGR angolana.
João Paulo Batalha nas declarações à DW mostrou-se esperançado que seja possível devolver ao povo angolano grande parte dos activos desviados, mas considera também fundamental investigar a origem da fortuna de Isabel dos Santos e os crimes de corrupção, de favorecimento e de branqueamento de capitais que eventualmente lhe são imputados, respectivamente em Angola e Portugal. O presidente da Integridade e Transparência considerou que a justiça portuguesa continuava a agir de forma tímida e pedia mais investigação sobre as cumplicidades políticas e económicas que permitiram à filha primogénita de José Eduardo dos Santos ser tão bem recebida em Portugal e acumular o seu vasto património.
Em causa, afirmou, estavam “as responsabilidades não só de Isabel dos Santos, mas de toda esta rede que a ajudou a montar todo este império e que continua provavelmente activa no apoio a outras altas figuras do Estado angolano”, também elas com fortunas de origem suspeita ou desconhecida e que continuam a fazer negócios e a trazer para Portugal muita riqueza acumulada de forma suspeita.
Recorde-se que, na mesma altura, a plataforma Projecto de Investigação ao Crime Organizado e Corrupção (OCCRP, sigla em inglês), revelou que mais de uma dezena de entidades de influência da elite angolana e seus familiares usaram o sistema bancário para desviar centenas de milhões de dólares para fora do país, incluindo companhias alegadamente associadas a Isabel dos Santos.