Assinala-se hoje, 4 de Janeiro, a revolta da Baixa do Cassange, em Angola, um trágico acontecimento que ocorreu (até quanto à data não há certezas) no dia 4 ou 6 de Janeiro de 1961 e que na sua essência resultou da sublevação dos trabalhadores da cultura do algodão.
Por Orlando Castro
O tenente-coronel António Lopes Pires Nunes, no livro “Angola 61 – Da Baixa de Cassange a Nambuangongo” (Editora Prefácio) conta que “durante as operações de pacificação da Baixa do Cassange, o major Rebocho Vaz, comandante do Batalhão Eventual constituído para o efeito, ordenou, por sua iniciativa ou por indicação superior, que se fizesse um inquérito militar à actividade da Cotonang que todos apontavam como a causadora da sublevação. Das informações que recebeu não assinadas mas todas elas concordantes e apontando os factores de revolta:
“(…) O indígena na Baixa de Cassange vive em condições de absoluta miséria moral e material sob todos os aspectos. Resiste a essas condições de vida porque, quanto a mim, durante a sua infância, ou sucumbe à fome, às intempéries por falta de vestuários e às doenças de toda a espécie ou vinga e se torna imune a tudo o que desde pequeno se lhe deparou e o que mais tarde há-de passar”, atribuindo-lhe a designação de “de selecção natural”.
“Habitua-se desde tenra idade a não ter personalidade de gente, pois que o único contacto que lhe devia ser benéfico (o do europeu), é-lhe altamente prejudicial e só aprende a não ser roubado e espancado. Existem sanzalas inteiras, em que as águas no tempo das chuvas passam pelo leito das cubatas onde dormem e vivem, isto para satisfazerem a vontade do chefe de posto e do agente da Cotonang que muitas vezes não se querem incomodar a ir mais para o interior recolher o algodão e obrigam as sanzalas a serem implantadas quase sempre à beira das picadas e das estradas. Chega-se, por vezes, a não se reconhecer se um determinado indivíduo pelo seu aspecto físico, é homem ou mulher, se é velho ou novo. São os povos indígenas mais enfezados que conheço na Província”.
Depois destas considerações iniciais, o autor do relatório passa a deter-se sobre os que, na sua opinião, “lidavam e roubavam descaradamente o nativo”. Aponta, dando como certa a conclusão, “os feiticeiros, os capatazes negros, os agentes de mato da Cotonang, os comerciantes, os cabos de sipaio e os capitas da administração, não poupando também as autoridades administrativas de serem coniventes.”
“Como todos os povos subdesenvolvidos e subalimentados os povos daqui deixam-se prender por feitiços e por pretensas intervenções milagrosas e sobrenaturais. Se alguém vai à caça e não caçou qualquer peça vai ao homem dos milagres que, a troco de 20 ou 50 escudos, lhe dá um amuleto que não passa de um fio de cobre ou um simples pauzinho, garantindo-lhe que na próxima caçada terá sucesso. Se tal não suceder e for de novo procurado, o feiticeiro manda-lhe pôr um cabrito na sepultura de um parente que morreu indo de seguida roubá-lo. Perante novo inêxito, o feiticeiro recomenda outras práticas que passam sempre por extorquir dinheiro e tudo é aceite com grande naturalidade”.
Diz o autor que os feiticeiros “levam dinheiro para os tornar imunes às investidas das feras com a promessa de que, perante o perigo, se transformarão em estátuas de pau ou de pedra, para descobrir se a mulher pratica ou não o adultério e para desvendar outros mistérios da vida das pessoas. Por tudo e por nada o negro da Baixa do Cassange solicita a intervenção sobrenatural pagando bem para isso”.
Sobre os capatazes da Cotonang diz o relatório que “(…) exigem dinheiro para os não denunciar ao chefe ou ao agente de mato por uma qualquer razão inventada como seja a falta de limpeza da lavra de algodão ou outra falta relativa ao cultivo do algodão. Compram a sua criação pelo preço que entendem, vendem tudo aquilo que para eles já não tem utilidade e, nestes negócios, prejudicam sempre os indígenas.”
Quanto aos comerciantes refere que “(….) pouco espancam e maltratam o preto; contudo, além de lhes venderem artigos proibidos por lei como aguardente, pólvora, trabuques de fabrico ilegal, salitre para a pólvora etc., tudo o demais que lhes vende é por preços absolutamente fantásticos, com o pretexto de que só recebem na colheita e que alguns deles não lhes chegam a pagar. Muitas vezes vão para os mercados do algodão esperar que o preto receba para depois lhe cobrarem as dívidas, de qualquer maneira, deixando-os sem nada.)”.
Quanto aos agentes de mato da Cotonang pode ler-se: “(…) Como reis absolutos, não permitem que os pretos se desloquem a outras zonas para irem amigar (juntar-se a uma mulher), ver a família que está doente ou tratarem de tudo aquilo que lhes é indispensável e humano, coagindo-os pela força. Forçam-nos a mudarem para sítios aonde lhe dêem mais rendimento e estejam mais sob o seu olhar desprezando as condições de vida humana nos aspectos mais elementares”.
E continua: “Quase todos têm caçadores a caçar por conta deles, vendendo a caça nas sanzalas a bom preço para depois receberem na colheita. Roubam no peso e no pagamento, assim como na qualificação da fibra dizendo-lhe que a mesma está suja e tem que passar para a classificação inferior. Na maior parte das vezes isto faz-se com o consentimento da autoridade administrativa que está presente ao mercado, sendo norma da Cotonang não manter agentes junto de chefes de posto com os quais não estejam nas melhores relações”.
“De acordo com os comerciantes, vendem os objectos que a companhia lhes entrega para contemplar os indígenas que melhor trabalharam, como catanas, enxadas e roupa de fardo. Apenas não se vendem as enxadas porque têm a marca da companhia. Permitem que as esposas façam toda a casta de negócios e de trafulhices, chegando a castigar os não obedientes com o cavalo-marinho. Metem-se nas questões indígenas, arvorando-se em autoridades, chegando nalguns casos a cobrar multas”, acrescenta o autor do relatório.
O relatório é ainda acusativo para com os auxiliares da autoridade administrativa, os capitas, os sipaios e os cabos de sipaio de quem se diz: “(…) Como bons terroristas das sanzalas, levam-lhes a criação, dinheiro e tudo aquilo a que podem deitar a mão, com pretextos de não os denunciarem à autoridade administrativa e os ilibarem do respectivo castigo. Na maior parte das vezes com motivos por eles próprios forjados. Exercem toda a gama de patifarias dizendo que vão da parte do chefe de posto e às vezes, infelizmente vão mesmo”.
O relatório pedido pelo major Rebocho Vaz continua: “São os vendedores e compradores dos chefes de posto vendendo tudo o que a estes já não interessa, assim como as caçadas dos seus caçadores… para receber na colheita. Os cabos de sipaio são os “sub-chefes” do posto. Como na maioria das vezes são eles que fazem a maior parte do serviço do posto para descanso do chefe, tomam um ascendente sobre as populações indígenas absolutamente incrível. Multam por tudo e por nada, recebem dinheiro para quando servem de intérpretes e favorecem o indivíduo que lhes paga. Estes mata-borrões chegam a estabelecer-se com casas de comércio”.
Quanto às autoridades administrativas, o relatório acusa-os em geral de serem coniventes com a situação descrita, de forçarem os sobas a darem-lhes presentes e, principalmente, de receberem da Companhia, a todos os níveis da administração da área concessionada pela Cotonang, envelopes com quantias avultadas.
Um outro relatório militar confirma o anterior e diz a dado passo:
“(…) Durante a execução da operação Lundo, tive oportunidade de conversar directa e pessoalmente com alguns indígenas desta localidade que me pareceram mais evoluídos mentalmente. Disseram-me que tinham todos vontade de trabalhar nos campos de algodão mas gostariam que não fossem utilizados processos violentos e castigos corporais, intimando-os ao trabalho. Alguns até me mostraram cicatrizes recentes de utilização de chicote ou cavalo-marinho, no seu próprio dizer e, quanto a mim, – que as observei pessoalmente, – pareceram-me efectivamente causadas por chicote”.
Outro aspecto importante é o de fome: – melhor dizendo, carência alimentar ou subnutrição vivida na região. Diz o autor do segundo relatório que: “Disseram-me também que não comiam o suficiente; na verdade. No momento em que ocorreu esta conversação, como em muitos outros locais já por mim percorridos, tive oportunidade de verificar a escassez alimentar do indígena, agora mais agravada pelo facto de lhes terem destruído muitas culturas e morto quase toda a criação que tinham, em cumprimento de uma determinação de Maria. Porém, antes destes acontecimentos da Baixa do Cassange, já em patrulhamentos anteriores tinha verificado a subalimentação do indígena, mormente em determinadas zonas nela integradas. Estou convencido que, pelo que me foi dado observar e ouvir pessoalmente, a carência alimentar e o exagero ou excesso de castigos corporais, terão contribuído, no todo ou em parte, para uma excitabilidade gradual do indígena, completada, ou levada ao clímax, por infiltrações na Baixa do Cassange de agentes subversivos, vindos do exterior, tendentes exactamente a explorar este clima psicológico indígena”.
Mas os antecedentes têm ainda outras varáveis. “Há um outro aspecto correlativo fundamental: a necessidade imperativa de uma medicação periódica do indígena e de a Cotonang a intensificar, em quantidade e qualidade. Se bem que esta companhia concessionária tenha executado, na medida do possível, esta assistência sanitária, o facto é que me parece imperativo que ela seja intensificada, em toda e qualquer sanzala da Baixa, mormente, evitando epidemias, casos flagrantes de avitaminoses tão frequentes e doenças infecto-contagiosas”.
Estes relatórios, escreve o tenente-coronel António Lopes Pires Nunes, “embora escritos sob a pressão da necessidade de encontrar responsáveis pela amotinação e do desejo de remover as causas, que apareciam claras a todos, reflectem, de algum modo, a situação a que haviam chegado os nativos da região. O que ressalta deles são, sobretudo, as imposições abusivas da Cotonang e a conivência tácita das autoridades administrativas locais, que nem sequer reprimiam os pequenos abusos dos comerciantes e dos seus sipaios, como sucedia noutras regiões”.
O negro da Baixa do Casssange, segundo o autor, “era obrigado a semear, cultivar e vender algodão à Cotonang, a concessionária do produto, tendo-se estabelecido, assim, em toda a Baixa um regime de monocultura dominado por um feroz monopólio. A companhia distribuía as sementes mas as lavras eram feitas onde os seus capatazes indicavam, por vezes a muitos quilómetros das áreas de residência, os mercados eram fixados em dias e locais onde os mesmos entendiam, muitas vezes sem atender ao ciclo vegetativo da planta, sempre com prejuízo para o cultivador. Noutras regiões, em regime não monopolista, o comércio de produtos como a ginguba (amendoim), a fuba (mandioca) e o café era feito em mercados que chegavam a realizar-se nas sedes das regedorias e mesmo dos sobados, onde os comerciantes levavam as suas viaturas de transporte, prática que a Cotonang não fazia”.
Nas áreas não monopolizadas, acrescenta “os vários comerciantes interessados estabeleciam-se com as balanças no terreiro onde o mercado se ia realizar e os nativos faziam fila para venderem o seu produto ao comprador que entendiam, tudo debaixo do olhar atento da autoridade administrativa”.
Os relatórios aludidos também dão conta de um ou outro processo disciplinar contra administrativos da região algodoeira, mas que, segundo os autores, “seriam a excepção no conjunto das cumplicidades locais estabelecidas, não chegando os factos, na sua total dimensão, ao conhecimento do administrador da Cotonang e do Governo Geral de Angola”.
Na Baixa, o aspecto mais gravoso de todo o processo da produção do algodão residia, de acordo com a análise aos relatórios militares, “no facto de o agricultor, já com excesso de trabalho e muito mal pago, não ter tempo para cultivar a sua própria lavra, onde deveria semear o feijão, a batata, o milho e a mandioca, indispensáveis para angariar mais algum dinheiro e sustentar o seu agregado familiar. Com o decorrer do tempo, a fome foi-se tornando endémica”, salienta por sua vez Camilo Rebocho Vaz no livro “Norte de Angola – 1961. A Verdade e os Mitos”.
Notícias da época contam também que a agravar a situação, os campos algodoeiros foram atacados, no final dos anos 50, por pragas que exigiam um redobrado esforço e o dispêndio de quantias muito elevadas para a sua desinfestação.
“Os ecos desta crise e o abuso sobre os agricultores nativos chegaram à Metrópole, que fez deslocar à região inspectores administrativos. Os seus relatórios podem ter contribuído para a nomeação de Governador Geral de Angola do próprio Sub-secretário de Estado da Administração Ultramarina, dr. Álvaro Rodrigues da Silva Tavares, perfeito conhecedor da problemática do algodão”, escreve o tenente-coronel António Lopes Pires Nunes, acrescentando que “mal chegou a Angola, uma das suas primeiras medidas foi dirigida à crise algodoeira. Em despacho exarado em 25 de Fevereiro de 1961, no rescaldo da sublevação, lembra as medidas já tomadas por ele no início de 1960″.
“(…) Logo que cheguei à Província dei instruções à Delegação da Junta do Algodão para elaborar os planos de melhoramento técnico do cultivo do algodão a adoptar pelos concessionários. Em resultado dessas instruções foram elaborados os planos onde, designadamente, se prevê a utilização de pesticidas em larga escala, o que implica a despesa de muitos milhares de contos”.
Álvaro Rodrigues da Silva Tavares diz que “os insecticidas para a Cotonang já foram por ela adquiridos assim como as máquinas pulverizadoras respectivas. Por outro lado, está em curso, pela Junta do Algodão, o estudo do aumento do preço. Também já, desde há muito, foram dadas instruções aos Governadores de Malange e de Luanda para se impedirem coacções, preconizando-se que se chegasse a acordo com o indígena sobre a efectivação da cultura e respectiva área a ser trabalhada. Fizeram-se reuniões em que intervieram o Secretário Geral, os Governadores dos distritos de Luanda e Malange, o delegado da Junta do Algodão e administradores das áreas algodoeiras e estão elaboradas normas atinentes à remoção de práticas ilegais ou incorrectas. Pedi ainda a vinda do Presidente da Junta do Algodão a Angola”.
Se o Governador Geral tomou medidas adequadas, provavelmente um tanto retardadas devido às preocupações originadas pela independência do Congo Belga, a verdade é que esses abusos continuaram e muita gente continuou a fechar os olhos.
Só, de facto, fechando os olhos ao que se passava é possível alegar desconhecimento da degradação humana a que chegara o negro algodoeiro da Baixa do Cassange.
O próprio coronel Rebocho Vaz, que foi Governador Geral durante vários anos, não se coíbe de dizer no seu livro “Norte de Angola, 1961, A Verdade e os Mitos” que “(…) Em 1971, eu li no Ministério do Ultramar, relatórios elaborados por inspectores superiores especialmente mandados para verificarem os rumores que corriam e chegavam ao Governo Central. Como foi possível haver tanta incúria e tanta corrupção? E tanta impunidade? Como? Mais ainda: e tantas promoções por distinção, tantas nomeações para novos cargos ainda de maior responsabilidade. Havia um preço a pagar. E alguém pagou. Porém, os mortos não se queixam. E é pena porque pagaram por culpa de outros. Mas pelo menos alguém devia falar por eles. Por isso, em memória deles, não me calo (…)”.
Para o tenente-coronel António Lopes Pires Nunes, “tendo motivos de queixa, os povos negros da Baixa do Cassange provavelmente não se teriam revoltado da forma como o fizeram se não tivessem assistido aos desmandos da independência do Congo, que viveram de perto, por habitarem na zona fronteiriça do rio Cuango, frente à província do Baixo Congo Congolês, e se não houvesse um partido político a instigá-los – neste caso o PSA (Partido de Solidariedade Africana), um partido congolês, explorando as suas fraquezas e a sua propensão para a feitiçaria”.
A SUBLEVAÇÃO DA BAIXA DO CASSANGE
No dia 11 de Janeiro, o Comando Militar de Angola foi alertado, através do Governo Geral, que havia uma rebelião dos nativos da povoação de Milando, no distrito de Malange. A 3ª Companhia de Caçadores Especiais (3ª CCE), sedeada em Malange, destacou para Milando uma patrulha, que ali chegou na madrugada do dia 12 encontrando a população bastante alarmada.
O chefe de posto informou, então, que os nativos das sanzalas de Ganga-Mexita e Quivota, respectivamente a 5 e 9 quilómetros da povoação, se tinham recusado a trabalhar e afirmavam que matariam qualquer sipaio que ali fosse. A patrulha deslocou-se à primeira das sanzalas onde encontrou, dispostos em linha, cerca de 200 nativos com armas gentílicas e, embora inicialmente se gerasse alguma confusão, tudo serenou quando os rebeldes verificaram as intenções pacíficas da tropa. Três representantes dos amotinados falaram com o oficial comandante da patrulha dizendo-lhe que não trabalhavam por ordem de Kasavubu e ao administrador da circunscrição, que entretanto ali se deslocara, que Maria os proibira de trabalhar pelo que era com ela, que os castigaria se trabalhassem, que deveria falar.
Tornavam-se confusos os motivos que os levara à rebelião, porquanto Kasavubu era Presidente do Congo ex-belga, e a alusão a Maria indicava uma preparação das populações por agentes que exploravam as suas crenças no sobrenatural.
Na manhã do dia seguinte soube-se que fora assassinado um capataz mestiço da Cotonang e, quando a patrulha voltou às sanzalas, verificou que estavam já totalmente abandonadas, com indícios de a fuga ter sido preparada. No dia 22, ocorreu idêntica rebelião em Tembo Aluma, por parte de 300 nativos, alguns dos quais empunhando dísticos do PSA (Partido de Solidariedade Africana) e, à semelhança dos acontecimentos do dia 11, não houve agressões ou violências. A rebelião manifestou-se depois em Cunda-Ria-Baza, Quela, Marimba, longo e Xamuteba. Em pouco tempo a sublevação estendeu-se a toda a Baixa do Cassange, com a adesão dos bangalas e dos maholos, sobre os quais o PSA exercia uma forte e sistemática pressão. A influência de um partido congolês em território angolano explica-se pela continuidade das etnias angolanas no Congo ex-belga e por haver mesmo sobas portugueses que ali habitavam.
A calma pareceu reinar em Milando; apesar disso, o Comando Militar de Angola ordenou a permanência de uma secção de atiradores naquela região, enquanto a 3ª CCE fazia intensos e longos patrulhamentos, que se estenderam até Camaxilo, no norte da Lunda, tendo em vista esclarecer a extensão da rebelião. A situação na Baixa do Cassange piorava de dia para dia. No dia 1 de Fevereiro mais de mil nativos concentraram-se próximo de Cunda-Ria-Baza e, no dia 2, os europeus desta povoação fugiram para Malange, perante as ameaças dos amotinados que gritavam não querer ali brancos e exigiam a sua saída. No Relatório Especial de Informações de 2 de Fevereiro, do Comando Militar de Angola para o Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas, em Lisboa, diz-se mais “(… ) cerca de 600 trabalhadores voluntários das prospecções mineiras ao longo do rio Cuango, abandonaram o trabalho. A situação parece extremamente grave e tudo indica que estes acontecimentos se possam alastrar ao norte do distrito do Congo, e ao distrito da Lunda (…)”.
Não percebia ainda o Comando Militar de Angola a verdadeira causa da sublevação, mas o mesmo manifestava como provável que, conta o tenente coronel António Lopes Pires Nunes “(…) se pretende que os europeus abandonem a região e que a agitação possa estar ligada ao caso do “Santa Maria”. Teme-se ainda que a área da Diamang, na Lunda, até então calma, venha a agitar-se e que se iniciem acções urbanas que fixem as tropas nas cidades para que seja mais fácil o alastramento da subversão nas zonas rurais.”
A OPERAÇÃO CASSANGE
“(…) A 4ª CCE iniciou a operação (a primeira em África da geração de 1961) partindo de Malange em direcção a Quela mas cedo se verificou que as dificuldades eram muitas. A principal relacionava-se com o facto de as tropas portuguesas serem constantemente desprestigiadas pelas atitudes dos revoltosos que as desafiavam e insultavam, dançando em frente às viaturas, o que exigiu muito sangue frio e uma rigorosa disciplina. Pesou também o mau estado dos itinerários daquela região alagadiça, onde as viaturas se atolavam a todo o momento e os nativos começavam a destruir as pontes e pontões.
Os reabastecimentos constituíam outro grave problema, em grande parte resolvido pela Força Aérea. As tropas da 4ª CCE depararam-se sempre com grandes concentrações de nativos, frequentemente na ordem dos milhares, totalmente indiferentes à soberania portuguesa, visto considerarem-se independentes e indispostos com os representantes da autoridade e com os funcionários da Cotonang, para a qual a maioria trabalhava na cultura do algodão. Da inicial recusa ao trabalho em breve passaram à acção violenta, tendo saqueado, destruído e queimado as instalações da Cotonang, as casas comerciais e os edifícios dos postos administrativos de algumas localidades (Marimba, Tembo-Aluma)”, relata o autor do livro “Angola 61 – Da Baixa de Cassange a Nambuangongo”.
“Habilmente manobradas por elementos subversivos vindos do Congo, essas grandes massas de nativos julgavam-se totalmente protegidas por uma Maria que lhes dava o seu beneplácito, desde que se tratasse de escorraçar o homem branco.
Como estava determinado, as tropas pretenderam inicialmente fazer só demonstrações de fogo, mas o facto de dispararem para o lado e para o ar só piorava a situação, porque os amotinados convenciam-se ainda mais da sua imunidade às balas e granadas, o que os levavam a tomar atitudes cada vez mais afoitas e agressivas. Mesmo os aviões não passavam para eles de “enviados de Maria”, para os quais entoavam cânticos. Porém, os primeiros tiros mostraram-lhes que a Maria os tinha enganado e, a partir de então, as operações tomaram o rumo da captura dos cabecilhas, que logo eram desprestigiados perante a multidão, e da apreensão das armas em seu poder”, relata o livro.
E prossegue: “Procurou-se imediatamente dar ajuda material às populações famintas que, antes, haviam destruído os seus haveres e a sua criação, porque essas eram as ordens de Maria, que também lhes tinha dito que só deveriam fazer capelas e embelezar as sanzalas para o dia da sua chegada.
Em Quela, a situação tornou-se gravíssima e intolerável pelo que a 4ª CCE viu-se obrigada a abrir fogo, para defesa própria:
“(…) Dei ordem de fogo às duas metralhadoras e à bazuca, que já havia mandado preparar com uma granada explosiva. O tiroteio foi infernal, ouvindo-se tiros por todos os lados, mesmo dos homens do pelotão que se encontravam a proteger o flanco. As primeiras linhas dos revoltosos começaram a cair, sempre cantando e dizendo “agora podemos abrir fogo” e ouviram-se alguns tiros. A bazuca abriu no meio deles uma grande clareira e, sob continuação da intensa metralha, o grupo foi caindo sempre a cantar, verificando-se já algumas tentativas de fuga. Ordenei alto ao fogo, sendo necessário gritar e apitar intensamente, no que fui ajudado pelo senhor alferes Condesso, que se encontrava ao meu lado. Após tudo serenado, verifiquei que os homens se encontravam lívidos e que alguns haviam até disparado para o ar, sendo necessário andar a acalmá-los e a encorajá-los. O balanço total das baixas foi de um morto e quatro feridos no nosso pessoal e de 71 mortos e 41 feridos entre os indígenas revoltados (…)”, escreve num relatório de 6 de Fevereiro o comando da companhia.
A 4ª CCE dirigiu-se depois para Cunda-Ria-Baza de onde partiu para patrulhamentos a várias sanzalas amotinadas.
“(…) Esta sanzala, a primeira da região baixa, mostrava-se mais hostil, como aliás todas as outras que iríamos encontrar. Nela fomos recebidos com cânticos, mas bastaram umas granadas de mão ofensivas e umas coronhadas para a desarmar, Não se verificaram incidentes graves. Exigi a apresentação, no dia seguinte, do respectivo soba, também nesta região”, escreve o comando da companhia, acrescentando que “como esta sanzala se encontrava ainda bastante afastada da estrada e como a noite se aproximava rapidamente e se ouviam nela igualmente os mesmos cânticos, ordenei um tiro de bazuca com granada explosiva para perto, ao mesmo tempo que pedia ao avião outra demonstração de força. Depois de uma rajada de metralhadora executada pelo avião e terem parado os cânticos, prossegui viagem. Não houve qualquer ferido.”
O relatório do comando da 4ª CCE diz que com raras excepções, as machambas encontram-se completamente destruídas, que a criação foi totalmente morta, raríssimos bois se encontram e os cães, animais de maior estimação dos indígenas, desapareceram por completo tendo apenas encontrado um cão amarrado e já em decomposição dentro de uma palhota.
No dia 8, ocorreu segundo os relatos militares o que podia ter sido um verdadeiro massacre, quando a 4ª CCE foi ameaçada por uma gigantesca concentração de nativos, “mas a amotinação foi esvaziada com apenas baixas ligeiras”.
O relatório do capitão Morais, escrito em pleno acto da revolta na região, diz que “a cerca de 300 metros da sanzala levantou-se um enorme alarido para os lados da sanzala, que se transformou em coro de cânticos à Maria”.
Escreve o capitão Mirais: “Ordenei que os pelotões formassem em linha e continuei o avanço com o capim pela cintura e em terreno alagado. A cerca de 100 metros mandei parar o avanço, porque, agora com o campo de observação desimpedido do capim, verifiquei que junto à casa do soba estavam reunidos cerca de 10.000 indígenas, homens, mulheres e crianças, encontrando-se os homens armados. Com a ajuda do intérprete, senhor Frade, que me acompanhava, soube que estavam a fazer uma jura de guerra perante o soba e se preparavam para nos atacar.
Ordenei a um sargento que voltasse atrás e que num jeepão viesse pedir reforços de mais um pelotão e a secção de morteiros. Entretanto, o intérprete procurava parlamentar com o soba, mas quem lhe respondia, à frente do bando, era o feiticeiro.
Para os amedrontar, mandei lançar 4 granadas de mão ofensivas e uma granada de bazuca, que rebentaram em frente à sanzala, levantando-se um grande alarido, seguido de um coro. Traduzido pelo intérprete, diziam que a Maria lhes falava verdade e que as armas dos brancos nada lhes faziam.
Chegados à entrada da sanzala, o senhor Frade, que se encontrava a meu lado, subiu a um poste e chamou novamente o soba a fim de parlamentar, mas o feiticeiro interpunha-se sempre. Então o senhor Frade pediu uma das nossas espingardas e, apontando cuidadosamente, abateu o feiticeiro. Imediatamente outro indígena o substituiu, que vim mais tarde a saber ser o filho do soba, futuro substituto do pai. Outro guia, que também me acompanhava, senhor Leonel, pediu uma espingarda a um soldado, apontou com cuidado e abateu esse indígena com um tiro numa coxa.
Os cânticos redobraram e mandei então fazer um tiro de bazuca para a frente do grupo, mas as três granadas não funcionaram, pelo que desisti. Pegando eu próprio numa metralhadora ligeira, de um cabo que se encontrava a meu lado, em posição de tiro e marchando, executei uma rajada por cima do grupo. Começaram a dizer que as nossas armas “só deitavam água”, o que me levou a concluir que água para eles é “nada”.
Acabei por despejar esse carregador com tiros para o tecto da casa do soba. Levantaram-se gritos que traduzidos pelo intérprete diziam que iam atacar. Metendo novo carregador na metralhadora, fiz fogo directo sobre o grupo dispersando-se o mesmo aos gritos. Uma nuvem de indígenas armados fugiu na direcção de este e o grupo mais pequeno na direcção do norte. Tendo mandado avançar os dois pelotões em linha, revistando as palhotas, aproximei-me do centro da sanzala. Verifiquei então que cerca de 300 mulheres, muitas crianças e velhos se encontravam reunidos por detrás da casa do soba, acompanhados por uns 100 homens que não tiveram tempo de fugir, quase todos eles armados.
No chão, ferido, encontrava-se o Chirimbimbe, filho do soba da região, com um tiro na coxa, como aliás atrás foi dito. Tendo mandado ao senhor Frade fazer uma prelecção aos amotinados sobre o grave incidente que motivaram, tornando-os responsáveis pelas mortes já feitas, esbofeteei o soba grande que caiu para o chão, mandando-o amarrar com os seus sobas e sobetas. Seguidamente mandei transportar para esta povoação os feridos em padiolas, pelos homens prisioneiros que saíram à frente do enorme grupo de mulheres, crianças e velhos.
Comigo seguiram os sobas e sobetas amarrados. O balanço das baixas foi de 4 mortos e 4 feridos. Mandei tratar dos feridos e fazer comida para o pessoal aprisionado. Tendo falado aos prisioneiros, por intermédio do intérprete, concordaram que haviam sido enganados e que os culpados tinham sido os maholos. Fiz seguir vários emissários para as sanzalas dos sobas principais da região, ordenando-lhes a sua presença imediata e entrega das armas levando como amostra um cartucho completo de espingarda, dizendo-lhes que a Maria não transformava aquele ferro em água.
Pela tarde apareceram nesta povoação, a apresentar-se, uma enorme quantidade de sobas e sobetas com armas trazidas das suas sanzalas. Um ex-soldado indígena, que prestara serviço em Macau, apresentou-se-me também como enviado de um soba, trazendo um molho de armas gentílicas. Aguardo para amanhã a chegada de mais sobas, que enviaram à sua frente os seus emissários, dizendo que devido à idade, tinha sido impossível apresentarem-se hoje. Quartel em Cunda, 8 de Fevereiro de 1961.”
Os relatos da altura, feitos pelos militares portugueses, dizem que “de Cunda, a 4ª CCE passou a Belo Horizonte e ao Caombo, mas viu-se na necessidade de voltar à primeira povoação porque um grupo de cerca de 200 nativos, todos armados, ameaçava de morte a população branca. Sendo intimados a entregar as armas e a manterem-se pacificados, não aceitaram a rendição e apontaram as armas para disparar. Gerou-se um pequeno tiroteio, do qual resultaram 20 mortos e 16 feridos, que foram imediatamente tratados”.
Acrescentam também que “quando as tropas se encontravam no rio Gombe, a caminho de Marimba, depararam com o chefe de posto de Tembo Aluma e dois guardas da PSP que tinham sido obrigados a fugir. Haviam feito uma marcha forçada durante a noite e ao passar por Marimba foram desarmados, vexados e torturados. Informaram que a situação por aquelas bandas era insustentável. A tropa seguiu para Marimba e, perante as atitudes usuais por parte dos amotinados, foram disparados alguns tiros de metralhadora, o que os obrigou a dispersar. Ao aproximarem-se do rio sucedeu que a sanzala que domina a margem, até então desabitada, encheu-se de uma multidão que, entrincheirada na paliçada de canas que a rodeava, a desafiou esgrimindo trabucos e catanas. Naquela direcção foram disparadas algumas rajadas de uma metralhadora pesada, enquanto um morteiro ligeiro de 60 executava tiros para as suas imediações. Não houve vítimas e, pouco depois, tudo recaía na calma, enquanto prosseguia a construção de uma jangada”.
No dia 17, de acordo com o comandante operacional dos militares portugueses, “já a companhia atingira Tembo Aluma, onde as sanzalas estavam desabitadas e o edifício da administração arrombado e saqueado. Perseguindo o bando, as tropas aproximaram-se da fronteira e na região das Quedas Guilherme, ao chegarem perto de uma sanzala, depararam com um grande grupo de nativos armados. Foram aconselhados a entregarem-se, explicando-se-lhes que seriam bem recebidos. Perante a recusa foi disparada uma granada de bazuca sobre uma palhota próxima que, com surpresa, explodiu violentamente. Era um esconderijo de pólvora, armas e munições que, incendiando as outras palhotas, provocou a debandada do grupo. A 4ª CCE ao atingir Tembo Aluma cumprira a sua missão”.
À medida que ia resolvendo a agitação que se lhe deparava, da forma descrita pelos operacionais, verificava-se que os povos mais pacíficos voltavam à sua vida normal e a região podia considerar-se pacificada. Só os maholos não se aproximavam e fugiam para o Congo sem voltarem a criar problemas.
“Os agitadores falharam os seus propósitos e a 4ª CCE havia conseguido o que à partida parecia impossível – pacificar a região em 12 dias. Espalhou depois os seus pelotões pelas povoações da área onde estivera em operações aguardando o evoluir da situação, enquanto executava patrulhamentos e fazia acção psico-social sobre as populações nativas, impondo aos sobas a obrigação de entregar os agitadores e os feiticeiros”.
No dia 17 de Fevereiro o major Rebocho Vaz elaborou para o Comando Militar de Angola a seguinte apreciação (Plano de Operações nº 3 – Operação Cassange):
“(…) O elevado moral da 4ª CCE, o espírito de decisão do comandante e das tropas e ainda o bom senso e equilíbrio revelados na resolução de incidentes graves, limitaram o número de baixas sofridas pelos indígenas. Houve sempre o propósito de causar o mínimo de mortos ou feridos e, sempre que houve necessidade imperiosa de abrir fogo, procurou-se fazer pontaria baixa. Este facto reflectiu-se nos feridos apresentados no hospital de Malange, que têm, na grande maioria, ferimentos nas pernas. Também nessas ocasiões se procurou sempre abater, em primeiro lugar, os indivíduos que, nitidamente, se destacavam como cabecilhas.
É de realçar a ajuda prestada por civis, utilizados como pisteiros e conselheiros nas relações com os indígenas, em especial a do sr. Frade, de Malange. Actualmente julga-se que ainda é necessário manter, por um período razoável, uma ocupação na zona pacificada com a finalidade de mostrar aos indígenas que as Forças Armadas estão atentas e dar aos europeus a confiança necessária para retomarem as suas actividades comerciais. Também servirá para mostrar aos povos gingas que o Estado está pronto a protegê-los contra a influência perniciosa dos maholos que, antes da pacificação, chegou a atingir graves aspectos (obrigaram alguns sobas gingas a aderir).
Seria de encarar a hipótese de as Autoridades Administrativas substituírem todos os sobas que se sublevaram. Teria também uma influência extraordinária na atitude dos maholos se lhes tirassem a concessão que têm sobre as minas de sal gema existentes na região de Milando. Segundo informações, dessas minas exportavam sal praticamente para toda a Baixa e até para a República do Congo. Bastaria atribuir, como castigo temporário ou definitivamente, essa concessão aos povos bondo e bangala (que parece que foram os primeiros concessionários) para que material e psicologicamente os maholos fossem muito atingidos e sentissem o castigo imposto.
Tem de se encarar desde já a necessidade urgente de se acudir com alimentos às populações indígenas. A parcial destruição das culturas, a morte do gado e dos cães, a apreensão das armas normalmente utilizadas na caça, irão provocar, sem dúvida, uma crise gravíssima. É opinião geral que a miséria é enorme e que muitos morrerão à fome se não houver uma acção centralizada de auxílio em alimentos. Esta acção, além do fundamental aspecto humanitário, teria também paralelamente um efeito psicológico decisivo sobre as populações, que foram arrastadas a esta situação por agitadores que, habilmente, exploravam condições locais péssimas, originadas pelos indiscutíveis abusos dos agentes das empresas concessionárias e até das Autoridades Administrativas (…)”.
No dia 16 de Fevereiro, a 4ª CCE tinha já a sua missão cumprida e o comandante do batalhão considerou que a zona de acção onde aquela companhia interviera se encontrava praticamente pacificada, chegando a altura de atribuir uma missão à 3ª CCE.
No Plano de Operações nº 2, elaborado nessa data, diz-se que as regiões de Caombo, Benge-Angola, Marimba, Tembo Aluma, Anguengo, Chiquita, Quinzenga e de Cunda-Ria-Baza eram já pacificadas, em especial as zonas sul e oeste, prevendo-se que a 4ª CCE pudesse cumprir sozinha a pacificação total da área sem mais problemas. Os nativos estavam a regressar ao trabalho e iam voluntariamente receber sementes da Cotonang.
Acrescentava o mesmo documento que os povos gingas, situados a noroeste da estrada Caombo-Marimba, estavam a apresentar cumprimentos ao comandante da coluna e a entregar os agitadores que neles se tinham introduzido. O Plano expressava ainda que não havia indícios de sublevação a sul da estrada Malange-Xandel-Xa-muteba e apontava como único problema, o receio das populações brancas de Milando, o coração da rebelião, de voltar a trabalhar na região. O comandante de batalhão era da opinião que ali deveria ser colocada uma força com armas automáticas, o que, por si só, resolveria a situação, pois não se previa que houvesse mais mostras de força por parte dos sublevados.
Faltava, entretanto, percorrer a faixa a leste de Milando, ou seja, o sector a norte da linha Cassange-Iongo-Cuango até Luremo e Catxinga. Uma vez que se previa que a 5ª CCE demoraria pouco tempo a chegar a Malange, o mesmo documento operacional expressava que ela deveria ir efectuar a segurança de Malange e libertar a 3ª CCE para operar naquela região.
Foi então dada à 3ª CCE a missão de se deslocar no itinerário Malange-Quela-Iongo a fim de avançar para norte, procurando sufocar as eventuais sublevações com que deparasse e, para sul, proceder de igual forma até à linha Xandel-Xamuteba.
Em relação à 4ª CCE confirmou-se a previsão do Plano de Operações e, em 19 de Fevereiro, o seu comandante pôde relatar para o comandante de batalhão: “tudo se encontra pacificado e o terror de Maria desapareceu para dar lugar ao terror do exército. O mito desfez-se e a principal cutilada foi dada ontem pela avioneta que eles estavam convencidos que vinha do Congo e que eles cumprimentaram. Evidentemente que a resposta que lhes deram matou dez e convenceu-os que Maria estava zangada com eles”.
A 3ª CCE não estivera até então completamente inactiva. Por se preverem alterações da ordem na região de Cuango, o administrador de Canhungula solicitou ao destacamento de Camaxilo (norte da Lunda) que ali se deslocasse uma patrulha. No dia 9 de Fevereiro, durante o deslocamento e já próximo de Cuango, a força deparou com cerca de 300 a 400 nativos amotinados que haviam cortado a estrada e várias pontes. Tendo sido intimados a reparar imediatamente os estragos, pois as pontes eram necessárias para a passagem das viaturas, recusaram sempre com o mesmo argumento de Maria, deram sinais de querer iniciar um ataque e dispararam um tiro apontando ao administrador.
“No alvoroço que se gerou, as tropas dispararam primeiro para o ar e fizeram, depois, tiro ajustado e intencional, resultando a morte de 8 amotinados e muitos feridos, num total de 50 baixas”, salienta um relatório das operações.
No dia 11, chegaram ao Cuango notícias de que as populações já haviam iniciado a reparação da estrada e das pontes e, no dia 12, todas elas estavam já reconstruídas, como o administrador confirmou. Uma informação posterior da Autoridade Administrativa referia também que, depois do sucedido em Cuango, os nativos de Luremo, com algumas excepções na fronteira, apareceram todos a fazer as suas lavras. Na zona de acção desta companhia tudo se passava igualmente da forma habitual – a pacificação era rápida mas só ocorria depois de os revoltosos sentirem na pele o efeito das balas das forças portuguesas.
Transcrevem-se alguns excertos significativos, de 23 de Fevereiro, do comandante da 3ª CCE: “(…)Operação ‘Truta’ (região de Monte Papo) – a primeira que a companhia realizou: após o bombardeamento efectuado ontem tive conhecimento, por intermédio do chefe de posto de Iongo, que foram mortos muitos indígenas e enviei um emissário para Donga, a fim de averiguar ali os resultados da acção aérea. Foram confirmados 11 mortos e 21 feridos.”
“(…) Operação ‘Raia’ (região de Muanha): avistámos à volta do armazém da Cotonang uma multidão de pretos reunidos. Aproximámo-nos a cerca de 50 metros; mandei chamar o soba Muanha, mas ele respondeu-me que “fosse lá eu”; insisti novamente, dizendo-lhe que haveria muitos mortos se ele não comparecesse perante mim. Voltou as costas, dizendo que era Deus e que só obedecia à Maria, começando a referir-se com violência aos brancos. Mandei abrir fogo, indicando como alvos principais o soba e os agitadores que estavam com ele; caíram todos e os outros, querendo reagir, foram abatidos também (…). Foi capturada grande quantidade de material, entre catanas, espingardas, azagaias e facas (resultado: 60 mortos e 80 espingardas e 150 catanas apreendidas, cf. Sitrep 23/24 do Batalhão Eventual). A acção teve consequências imediatas porquanto o pessoal das sanzalas vizinhas começou a regressar às cubatas, normalizando-se a situação nessa zona”.
“(…) Operação ‘Limão’ (região de Cuango): deparei com 200 indígenas sentados no chão em atitude de oração, com o soba maior e sobetas. Não se mexeram; mandei chamar o soba maior e os sobetas, os quais vieram logo. Disse-lhes para entregarem todas as armas, o que fizeram a seguir: 130 catanas, 74 azagaias, 19 espingardas e alguns punhais (…).
Tudo se transformou numa alegre reunião de brancos e pretos, numa verdadeira e franca confraternização. Não houve um único tiro disparado. Expliquei-lhes também que deviam recomeçar o trabalho do algodão, o que prometeram fazer imediatamente. (…)”.
Com a evolução favorável dos acontecimentos na Baixa do Cassange, a acção operacional das forças portuguesas foi, gradualmente, cedendo lugar à acção psicológica e à assistência sanitária às populações da região. Em meados de Março, após uma pacificação total, as companhias em operações recolheram e ficaram apenas destacados elementos nos locais onde fora prevista a manutenção de efectivos militares, de acordo com a informação ns 52/61 da 3ª Rep/QG de 9 de Março de 1961, que a seguir se transcreve: “(…) Marimba: 1 pelotão com secções destacadas em Forte República e Tembo Aluma. longa: 1 pelotão com secções destacadas em Milando e Xamuteba. Malange: a 3ª CCE, reforçada com 4 secções de atiradores do Regimento de Infantaria de Luanda para os destacamentos anteriores. A 4ª CCE recolheu a Malange e quando a 5ª CCE chegou a esta cidade, foi extinto o Batalhão de Caçadores Eventual”.
AS BAIXAS
“Tendo os comandantes da 3ª e da 4ª CCE sido muito meticulosos na elaboração dos seus relatórios e tido o cuidado de contar e confirmar as baixas entre os sublevados (mortos e feridos), mesmo as causadas pela Força Aérea, podemos estimá-las entre duzentos a trezentos mortos e uma centena de feridos entre os revoltosos e 2 mortos e 4 feridos entre os elementos da 4ª CCE. A 2ª Rep/RMA, pelas informações posteriormente recebidas, acabou por contabilizar 173 feridos (cf. nota nº 5698 de 11 de Março de 1961 para o Governo Geral de Angola). Acresce que as Forças Armadas pareciam ter um preconceito contra a Cotonang, bem patente em todos os relatórios e a meticulosidade dos números, que as tropas entendiam ser demasiado elevados, parece um libelo acusatório contra a companhia algodoeira à qual atribuíam as culpas pela sublevação, que enfrentavam mais com relutância do que com sentido de inimizade. Diz-se com frequência que as forças portuguesas cometeram ali um massacre e que a desproporção de armamento era abismal”.
“Deve ter-se, contudo, em atenção que as armas gentílicas podiam ser tão mortíferas como qualquer outra e que centenas de amotinados, armados apenas com canhangulos e catanas, podiam causar muitas baixas entre os militares. Poderá, no entanto, ter havido excessos provocados pelo nervosismo em que as tropas estavam a operar e pelas condições absolutamente novas em que as operações decorriam. Foi na Baixa do Cassange que o Exército Português disparou pela primeira vez, em situação real, desde a I Guerra Mundial”.
A VISÃO DO LADO ANGOLANO
De acordo com um artigo de Eugénio Mateus, publicado a 30 de Dezembro de 2009 no jornal “O País” (http://opais.net/pt/opais/?id=1929&det=8567&mid) a incursão aos meandros do município do Quela, referenciado como o berço da revolta da Baixa de Cassange, trouxe a lume revelações que contrariam, de certa forma, as informações correntes sobre o massacre ali ocorrido em Janeiro de 1961.
“Contam os mais velhos e sobreviventes à chacina, que tudo começou às primeiras horas da manhã de quatro de Janeiro, 5, 6 horas, quando camponeses se rebelaram contra o esquema de escravidão implantado pela Cotonang, um consórcio luso-belga da área do algodão, na província de Malanje que ocupava uma vasta zona de cultivo.
Os soldados que dispararam as balas mortíferas naquela manhã tinham acampado desde as 17 horas do dia 3 de Janeiro, num domingo, na sede municipal do Quela e saíram de lá às primeiras horas de 4 de Janeiro”.
As fontes do jornal não se lembram do número exacto de militares do exército colonial português, mas recordam que eram “35 as viaturas que transportaram os soldados mobilizados para a operação, quando encontraram uma barreira em Khuia Makudi, próximo de uma aldeia, cujo soba se chamava Teca dya Kinda”.
Segundo o regedor do Quela, Lucas Sokola, na manhã em que os soldados saíram da sede do Quela tinham como destino o município de Kunda dya Base de onde chegaram, às autoridades coloniais, informações da ocorrência de uma rebelião dos camponeses locais que se recusavam a obedecer a autoridade colonial, vigente em Angola.
Diz o jornal: “O esquema de exploração, um dos leitmotiv do episódio, incluía até a entrega de animais exóticos da fauna angolana como papagaios, jacarés, veados, macacos, corças, jibóias e peixes dos rios, na sequência de qualquer incumprimento de uma demanda colonial. Qualquer falta levava o prevaricador a apanhar entre cem e cento e vinte palmatórias nas mãos.
“Quando eles chegaram, encontraram a população agrupada aqui no Teca dya Kinda sentada na estrada para impedir que os carros passassem. A população tinha flechas e canhangulos, mas estes não estavam carregados”, disse Lucas Sokola.
O trabalho forçado também era abominado pela população local que não encontrou outra via senão afrontar o poder explorador colonial, personificado na exploração dos camponeses que trabalhavam na cultura do algodão.
“Eles disseram, quando chegaram, que não queriam nada connosco, mas sim com os do Kunda, mas nós dissemos que tanto eles, os do Kunda, como nós éramos iguais, éramos angolanos e o que eles, queriam tratar com os do Kunda, podiam tratar connosco”, revelou Sokola.
Depois de o comandante das tropas ter travado uma discussão inconclusiva a contento com os revoltados, ordenou a abertura de fogo na área onde hoje foi construído o monumento em homenagem às vítimas da repressão colonial.
Na discussão havida entre os militares portugueses e os sublevados, estes ainda disseram que das armas dos agressores sairiam água e não balas.
“Na verdade, os camponeses haveriam de ser assassinados sem apelo nem agravo e com histórias por contar”, escreve O País, acrescentando que “as razões do episódio não são bem claras, mas há a reter dos depoimentos dos mais velhos que a situação vivida no então Congo Leopoldville, marcada pela independência deste pais, activou o sentimento de revolta contra os colonialistas portugueses. Viajantes que cruzavam a fronteira traziam novidades sobre a situação no Congo”.
“Quando o povo do Quela se preparava para a revolta, houve um homem chamado Vuvu que veio na direcção de Kunda dya Base a instigar os angolanos a não obedecerem os portugueses, porque o Congo já estava livre e nós angolanos tínhamos de tomar idêntica atitude”, sublinhou um dos sobreviventes.
Juntamente com o nome de Vuvu eram referenciados os de Lumumba, Kasavubu e Maria, figuras não conhecidas fisicamente pelas fontes de O País como sendo os libertadores das terras angolanas do jugo colonial português. Este terá sido o lado político da revolta dos camponeses do algodão cujo epicentro esteve no município de Kunda dya Base.
Depois do episódio do que hoje viria a ser conhecido como o início do massacre da Baixa de Cassange, a onda de violência espalhou-se por toda a área de cultivo de algodão controlada pela Cotonang.
As vítimas Dados sobre a chacina indicam que terão sido sepultados no local do massacre perto de cinco mil pessoas, segundo informações fornecidas no local por responsáveis da administração actual do município do Quela, mas existem dados que apontam para outros números.
Informações sobre uma monografia a ser elaborada pela administração municipal local indicam que terão sido mortos em Teka dya Kinda 680 pessoas, dado atestado por um antigo funcionário da administração colonial do concelho do Quela.
Este mesmo documento a que O País teve acesso revela que a data provável do massacre terá sido o 6 de Janeiro, uma segunda-feira.
Bernardo Famorosa, um dos sobreviventes daquela manhã, ainda traz as marcas das balas disparadas contra si e conta como foram os momentos seguintes aos disparos.
“Depois de terem disparado, eles perguntaram quem estava vivo e pediram para se levantarem. Depois disso deram pão, cigarros e outros meios que eles traziam e levaram os feridos para o hospital do Quela onde foram tratados”, disse Bernardo Famorosa.
Também conta que as vítimas mortais foram enterradas no local com ajuda da população que lá acorreu depois do incidente. A escalada de violência estendeu-se a todas as áreas de cultivo com a caça às bruxas também.
As fontes disseram ao jornal ter visto um avião a sobrevoar a região sem, no entanto, ter lançado qualquer engenho explosivo.
“O avião sobrevoou aqui e desapareceu sem disparar ou descarregar uma única bomba aqui no Quela”, disseram as fontes que admitiram no entanto a possibilidade de a violência ter recrudescido noutras áreas da Baixa de Cassange.
O novo elemento introduzido pela administração local que avança o 6 de Janeiro como o da ocorrência do massacre, traz consigo também a polémica em relação à precisão se teria sido numa segunda-feira.
De acordo com um calendário perpétuo, o 4 de Janeiro foi numa quarta-feira e a agora também avançada hipótese de 6 de Janeiro foi numa sexta-feira.
O primeiro presidente de Angola, António Agostinho Neto visitou o local, a 20 de Agosto de 1979, onde foi erigido um monumento em homenagem às vítimas da Baixa de Cassange, descerrando uma placa onde se podia ler “Honremos os heróis da Baixa de Cassange” e, ao lado, deveria ser construída uma aldeia piloto que não passou do papel, pois os materiais de construção foram usados para benefício das entidades que superintendiam na província o Ministério da Construção e Habitação.
Na área cercada existem cinco montes de terra que simbolizam cada um mil pessoas, pressupondo que ali estejam enterradas 5 mil pessoas.
O reconhecimento, de facto, da data que já fora feito por Agostinho Neto, só teve lugar depois que a FNLA se bateu por ela no primeiro parlamento, embora as pessoas contactadas pelo jornal não pudessem falar da direcção política da revolta por parte desta partido político.
GÉNESIS DA GUERRA EM ANGOLA
(Mário Mendes, Companhia de Caçadores 3414 – Angola 197173 http://cc3413.wordpress.com)
«Muito antes de 15 de Março de 1961, já havia sinais evidentes de que algo estaria para acontecer em Angola, mas que o governo de Salazar menosprezou grosseiramente. Desde logo a independência do Congo Belga em 30 de Junho de 1960. Lá diz o ditado: “quando vires as barbas do teu vizinho a arder, põe as tuas de molho“.
Depois, no final de 1960, os chamados acontecimentos da Baixa do Cassange, uma extensa depressão geográfica que vai da região de Malange às Lundas, com uma superfície de cerca de 80 mil Km quadrados (quase do tamanho de Portugal Continental). Nesta região viviam os bakongos, tribo que tinha raízes comuns no Norte de Angola e no Congo, e que sofria enorme influência daquele país recém-independente, e por isso se reavivavam sentimentos de nacionalismo. Os trabalhadores indígenas eram obrigados a trabalhar na cultura do algodão para a empresa luso-belga Cotonang, e em Novembro de 1960 começaram a fazer greves porque as suas condições de vida e de trabalho eram degradantes.
Em 4 de Janeiro de 1961, a Força Aérea Portuguesa foi chamada para reprimir as manifestações na Baixa do Cassange tendo bombardeado a região. Quantos mortos? Ninguém sabe ao certo. Há relatos que dizem que foram mil, outros 10 mil. Esta data é assinalada na República Popular de Angola como o “Dia dos Mártires da Repressão Colonial”, sendo feriado nacional.
A 4 de Fevereiro de 1961, algumas centenas de revolucionários assaltam a Prisão de S. Paulo, a Casa da Reclusão Militar e a Esquadra da Polícia Móvel em Luanda. O resultado destas operações saldou-se pelo bárbaro assassinato de 7 polícias à catanada, e cerca de 40 revoltosos mortos. Nos dias a seguir aos funerais dos polícias, alguns civis brancos invadem os musseques (bairros de lata) e matam também centenas de negros.
No dia 15 de Março de 1961, a UPA (União dos Povos de Angola) ataca várias fazendas de colonos brancos no Norte de Angola, chacinando a golpes de catana famílias inteiras incluindo mulheres e crianças, bem como os seus trabalhadores bailundos (povo originário do Huambo). Os relatos apontam cerca de 800 mortos e uma onda enorme de deslocados que procuram refúgio na cidade de Luanda. Só depois deste acontecimento, Salazar solta a célebre frase: “Para Angola, Depressa e em Força“.
Só a 13 de Abril de 1961 segue para Angola o 1º contingente de tropas (3 companhias = 400 homens) a bordo do navio Niassa. A 19 de Abril embarcam na TAP os 1ºs pelotões de pára-quedistas e outros que estavam em Moçambique deslocam-se para Angola. A 10 de Julho de 1961 no âmbito da “operação Viriato”, sai de Luanda o Batalhão 96, comandado pelo tenente-coronel Armando Maçanita e depois de grandes dificuldades de progressão com estradas obstruídas e pontes destruídas, chega a Nambuangongo, onde é hasteada a Bandeira Portuguesa em 9 de Agosto de 1961. A 16 de Setembro desse ano, é tomada a “Pedra Verde” uma zona de morros escarpados e grutas, reduto muito importante dos guerrilheiros, e que custou vários mortos e feridos à tropa Portuguesa.
Antes do começo da guerra não havia em Angola mais de 5 mil efectivos militares, quase todos do contingente local. No final de 1961 a tropa portuguesa contava com cerca de 33 mil homens, e em 1973 esse número ascendia já a cerca de 65 mil.»
SUBLEVAÇÃO DA BAIXA DO CASSANGE
(Vítor Elias – Batuques do Negage http://aerodromobase3.blogspot.com)
«A partir do final da década de 40 surgiram, no Norte de Angola, vários movimentos com o objectivo comum de se oporem ao sistema colonial. Tiveram, de início, características messiânicas e uma base tribal, destacando-se o movimento encabeçado pelo “profeta” Simão Toco (ou Tinoco?), que anunciava ao povo angolano o fim da miséria e uma nova mensagem divina. Embora viesse a ser detido pelas autoridades, em 1949, as suas ideias (doutrina Tocoísta) estenderam-se entre os bacongos, emigrados no então Congo Belga, que vieram a criar, em 1956 a Aliança do Povo Zombo (Aliazo). Este movimento converteu-se, em 1962, no Partido Democrático de Angola (PDA).
Mas foi outro movimento, de características similares, que esteve na base da sublevação da Baixa do Cassange, em Janeiro de 1961. O movimento, que, de alguma forma colheu de surpresa as autoridades portuguesas, iniciou-se com uma greve dos trabalhadores da Companhia Cotonang, como forma de protesto contra o atraso no pagamento dos salários, mas rapidamente se transformou num protesto das populações contra o cultivo obrigatório do algodão e as duras condições de trabalho que tinham.
Em todo o movimento, desempenhou papel de destaque António Mariano, que pertencia a uma seita religiosa, era bastante próximo da União das Populações de Angola (UPA), e cujo nome ficou ligado à insurreição conhecida com o nome “A Guerra da Maria”. Os habitantes da região louvavam Patrice Lumumba, o líder revolucionário do Congo, clamavam pela independência de Angola, enquanto queimavam as sementes, destruíam ou interrompiam as vias de comunicação, destruíam pontes fluviais, matavam os gados, invadiam os armazéns e as missões católicas, expulsavam os brancos… mas não utilizavam armas. No entanto, isto tornou-se o prelúdio ao inferno.
Para reprimir este movimento, as autoridades socorreram-se de unidades do Exército e Força Aérea presentes em Angola, que atacaram os grevistas de 24 de Janeiro a 2 de Março, transformando a acção num desproporcionado massacre de populações, cujo número de vítimas nunca se conheceu com exactidão. As Forças Armadas esmagaram a revolta com companhias de caçadores especiais e bombas incendiárias lançadas de aviões.
Um responsável da Força Aérea Portuguesa disse, na altura, ao embaixador americano em Lisboa, C. Burke Elbrick, que “a violência tinha como origem a exploração dos nativos pela Cotonang”, uma firma algodoeira luso-belga. Este turbilhão na Baixa do Cassange foi omitido à opinião pública, mas a propaganda dos Movimentos Terroristas tratou de o dar a conhecer… com o aumento de pormenores quanto aos meios e às vitimas que se calcula. Do 8 ao 80 valeu de tudo! Ainda hoje os responsáveis Angolanos – que até dedicam um dia à memória da Baixa do Cassange – são como os vendedores da banha da cobra… e falam da Baixa do Cassange como um momento alto para fomentar o ódio contra os colonizadores… esquecendo aquilo que a UPA fez a 15 de Março… ou o MPLA no 27 de Maio.
E se… aproveitassem e honrassem aqueles que pereceram e merecem ser recordados pelo que fizeram de positivo pelo Povo, em vez de se lançarem atoardas que apenas são propiciadoras de mal estar entre os homens de boa vontade?»
CASSANGE, UMA REFERÊNCIA HISTÓRICA
(Francisco Curihingana no Jornal de Angola
http://jornaldeangola.sapo.ao/20/0/baixa_de_cassange_e_referencia_historica_de_angola)
«Falar da Baixa de Cassange implica fazer uma incursão àquilo que marca a verdadeira história de Angola. A história da região representa a bravura de um punhado de angolanos que, fartos da exploração colonial e sedentos de independência e liberdade, começou a manifestar a necessidade de o colonialismo colocar ponto final à escravatura de que o povo angolano era alvo.
Na altura, o povo não dispunha de meios de defesa compatíveis aos do exército português, mas o patriotismo falou muito mais alto, ao ponto de, em nome da liberdade, colocarem as suas vidas em troca.
Os colonialistas portugueses dispunham de espingardas automáticas, mas o poderio colonial não deitou abaixo as aspirações de um povo que sempre sonhou com a sua independência e liberdade.
A localidade do Teka dia Kinda, no município do Quela, é bem o testemunho do heroísmo daquele grupo de angolanos que, cansados da atitude colonialista, dos maus tratos, preços baixos do algodão e do racismo, desencadearam a revolta que provocou centenas de mortos entre os camponeses da Baixa de Cassange.
O regedor Sokola Matari Kumata, que falou à reportagem do Jornal de Angola, disse que, além de se insurgir contra esses maus-tratos, o povo protestou contra outras atitudes menos correctas dos colonizadores, como, o trabalho forçado, a denominação de todas as senhoras negras de “Maria”, entre outros, o que, “infelizmente nos trouxe aqueles resultados desastrosos”, como referiu. “Morreu muita gente que se encontrava próxima do local do massacre, na aldeia “Socola”, incluindo o pastor David Socola da Igreja Metodista Unida e outras pessoas a si próximas, oriundas do Teka-dia-Kinda, Kula Mazau, Kamavo, Kuia Kissua e Maia Kassange”, confirmou o nosso interlocutor.
O regedor Sokola Matari Kumaca contou que quando o exército português protagonizou tal massacre, se dirigiu também para a localidade de Kunda-dia-Base, uma vez que aqui se verificaram, de igual modo, sinais de revolta. “No dia 3 de Janeiro, depois de terem passado a noite no Quela, na manhã do dia 4 eles arrancaram para o Teca-dia-Kinda, tendo encontrado um pau atravessado ao longo da estrada, sinal de bravura da população.
Os “brancos” foram à aldeia próxima chamada “Katoco” pedir auxílio, mas não foram correspondidos pela população”, disse o mais velho, acrescentando que isso constituiu a gota que fez transbordar o copo d’água e transformou aquele dia numa autêntica tragédia que ficou definitivamente marcada na memória do povo angolano.»