EM MOÇAMBIQUE GRITA-SE: “PAREM DE MATAR O NOSSO POVO”

A pressão de algumas centenas de profissionais de saúde moçambicanos, liderados pelos médicos, gritando “parem de matar o nosso povo”, concretizou hoje a primeira manifestação em Maputo desde a paralisação das actividades no âmbito da contestação aos resultados eleitorais.

Anunciada inicialmente como uma “marcha pela saúde e pelos direitos humanos”, logo cedo Napoleão Viola, presidente da Associação Médica de Moçambique (AMM), que acabou por liderar a manifestação, avisava do entendimento com a polícia para passar o protesto a uma concentração à porta da instituição por “motivos de segurança”.

Perante a pressão de centenas de profissionais de saúde, que gritavam “queremos marcha”, os manifestantes acabaram por seguir, primeiro, a pé, pacificamente, até ao Banco de Socorro do Hospital Central de Maputo, retornando e, em seguida, descendo a avenida Eduardo Mondlane e marchando até à estátua do histórico líder moçambicano, entre gritos de “socorro”, “salvem Moçambique” e “parem de matar o nosso povo”, enquanto centenas nos prédios e nos passeios aplaudiam.

Cerca das 12 horas, já no caminho de regresso à sede da AMM, empunhando cartazes de contestação à violência pós-eleitoral e à repressão policial, sempre sem qualquer incidente ao longo de mais de duas horas, e perante a vigilância da polícia, estes profissionais gritavam: “Marchamos ou não marchamos?”.

“Correu muito bem, na medida em que os objectivos foram atingidos. Primeiro passar uma mensagem de paz, de saúde e da necessidade de melhorar a questão da segurança pública, da não violência e do respeito pelos direitos humanos”, afirmava, no final, Napoleão Viola.

“Segundo, conseguiu-se garantir que os colegas pudessem efectivamente, hoje, marchar com liberdade e com segurança e a polícia também conseguiu cumprir com o seu papel, também está de parabéns”, acrescentava o líder da classe médica, numa marcha marcada por profissionais de bata branca e estetoscópios ao pescoço.

Esta foi a primeira manifestação, que descreveram como “apartidária”, que se realizou sem intervenção da polícia – que travou as anteriores com gás lacrimogéneo e tiros para dispersar os manifestantes – desde quinta-feira, quando se iniciou o período de sete dias de paralisação geral e contestação pedidos pelo candidato presidencial Venâncio Mondlane, que não reconhece os resultados anunciados das eleições gerais de 9 de Outubro, que deram a vitória (70,67%) a Daniel Chapo, candidato apoiado pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo, no poder desde 1975).

“É a grande lição que fica hoje, de que devemos ter a capacidade para ouvir a voz do povo. Ouvimos a voz do povo, associação ouviu, a polícia ouviu, e conseguimos garantir a segurança para todos e todos estamos felizes no final do dia”, afirmava o presidente da AMM.

Durante o protesto de hoje, os médicos denunciaram que na violência dos últimos dias, nomeadamente em manifestações travadas pela polícia, pelo menos 108 pessoas foram baleadas e 16 morreram, estando os serviços de saúde sob pressão.

Fyasse, pediatra de 40 anos, garantia, ao longo da marcha, que a mensagem dos médicos moçambicanos passou: “Passamos aquilo que era o sentimento de todos os moçambicanos e principalmente nós, da área da saúde, que prezamos pela vida e pela saúde dos nossos pacientes”.

Enquanto isso os colegas voltavam ao grito de protesto que marcou a marcha de hoje. “Não matem o nosso povo, exactamente. Não matem o povo porque é uma violência. Basta”, explicava o pediatra.

Iaqni de Sousa, médico de clínica geral de 30 anos, fez questão de mostrar nesta marcha “indignação” pelo que diz ser a “violação dos direitos humanos” e o “atentado à vida”.

“Nós estamos a preservar a vida, esse é o nosso maior valor. É um direito fundamental para todos”, afirmou.

Ao lado, um estudante de medicina, que acabou de ingressar no curso, desabafava: “A polícia não tem simplesmente que tirar a vida a um ser humano”.

FRELIMO ACUSA MONDLANE DE “VANDALISMO E VIOLÊNCIA”

Ontem, a ministra dos Negócios Estrangeiros e Cooperação de Moçambique acusou Venâncio Mondlane de proferir discursos que transformam manifestações em “actos de vandalismo, violência e roubo”, pedindo à comunidade internacional “ajuda” para restabelecer a “estabilidade”.

“Os discursos do candidato Mondlane e seus correligionários criaram o ambiente propício para a transformação das manifestações – um direito constitucional – em actos de vandalismo, roubo e violência que se propagou um pouco por todo o país e que resultou na morte de algumas pessoas, prisões, saques e destruição de infra-estruturas e propriedade alheia”, declarou Verónica Macamo.

Venâncio Mondlane apelou a uma greve geral e manifestações durante uma semana em Moçambique, a partir de 31 de Outubro, e marchas em Maputo em 7 de Novembro.

O candidato presidencial designou esta como a terceira etapa da contestação aos resultados das eleições gerais de 9 de Outubro, que se segue aos protestos realizados nos passados dias 21, 24 e 25 de Outubro, que provocaram confrontos com a polícia, de que resultaram pelo menos 16 mortos, dezenas de feridos e 500 detidos, segundo o Centro de Integridade Pública, uma organização não-governamental moçambicana que monitoriza os processos eleitorais.

Numa mensagem ao corpo diplomático acreditado em Moçambique face ao processo eleitoral, Verónica Macamo acusou Mondlane de convocar manifestações que “desembocaram em violência, morte e destruição de infra-estruturas públicas”.

“Os moçambicanos, na sua maioria e sobretudo os de baixa renda, estão a pagar uma factura bastante pesada, chegando a passar fome porque muitos vivem do comércio informal (…) Preocupa-nos o uso de cidadãos, muitos dos quais adolescentes, para praticarem actos criminais, que ofendem as normas legais e os bons costumes do nosso povo”, apontou a ministra.

A responsável acrescentou igualmente que as manifestações convocadas por Venâncio Mondlane “desencorajam investidores” com consequências para um “maior empobrecimento” de pessoas consideradas de baixo rendimento.

“Reafirmamos aos parceiros da comunidade internacional que, apesar da situação do ambiente conturbado pós-eleitoral caracterizada por tensões, o Governo está empenhado na estabilização da situação (…) Pedimos aos nossos parceiros de cooperação para nos ajudarem no restabelecimento da calma, serenidade e estabilidade”, declarou a governante.

O Governo de Moçambique voltou a pedir “respeito pela lei” e apelou ao diálogo entre os intervenientes do processo eleitoral.

“O nosso conselho é que aguardemos pacientemente pela validação dos resultados eleitorais pelo Conselho Constitucional. Devemos confiar nas instituições que nos termos da lei têm a missão de dirimir litígios”, concluiu Verónica Macamo.

Folha 8 com Lusa

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