DIA MUNDIAL DA LIBERDADE DE IMPRENSA

Neste dia, pelo menos neste dia, falemos do melhor de nós, William Tonet. Como muitos da sua geração — mas mais do que alguns dos seus conterrâneos que andam por aí na ribalta do poder — cresceu como “criança soldado”. Não havia alternativa. O seu pai foi um dos fundadores da 1.ª Região Político-Militar do MPLA. Aos oito anos de idade, com uma perspicácia que manteve ao longo da vida, já dominava as comunicações militares. Foi, aliás, um dos mais novos comandantes militares. Tinha 16 anos de idade.

As etapas da vida percorreu-as uma a uma, moldando o seu carácter férreo e íntegro, solidificando a sua crença de que quem não vive para servir, não serve para viver. Esse foi um ensinamento que provou com dor quando esteve na Cadeia de São Nicolau, com o seu pai, preso, quando tentavam abrir uma região político-militar do MPLA no Huambo, em 1968.

William Tonet foi um dos que implantou a organização dos pioneiros do MPLA (OPA) em Luanda, e foi um dos comandantes que carregou a bandeira, em 11 de Novembro de 1975, no dia da proclamação da Independência. Foi igualmente um dos impulsionadores das estruturas juvenis da JMPA, nas fábricas e locais de trabalho, entre 1975 e 1976. Há quem teime em apagar esta e outras verdades. No entanto, ele manteve sempre a assunção das suas responsabilidades, nunca renegando os degraus que subiu, como os subiu, as quedas que deu, os perigos que viveu, os amigos que conquistou e os inimigos que fizeram delete na memória para esquecer, ou tentar apagar, as verdades.

William Tonet trabalhou no gabinete do então ministro da Administração Interna, comandante Nito Alves, sendo responsável das comunicações e dos assuntos juvenis. Já aí, de forma ainda mais visível e estruturada, se antevia que punha o Povo, o seu Povo, o nosso Povo em primeiro lugar.

Esteve preso em 1977. Era uma sina da família. Ele, o pai e dois tios que, inclusive, foram enterrados vivos, sentiram no corpo e na alma quão difícil é só aceitar estar de joelhos perante Deus. Apesar disso assim continua. Perante os homens, por muito armados que estejam, teima em estar sempre de pé. O regime não gosta, mas não é para ele que William Tonet vive. É para o Povo. E o Povo gosta dele.

Neste dia, pelo menos neste dia, falemos do melhor de nós. William Tonet. Em 1979 entrou para os quadros da TPA (Televisão Pública de Angola, cada vez mais um órgão de propaganda do regime), como assistente de câmara, depois de ter sido expulso do “Jornal de Angola”, por Costa Andrade, Ndunduma, acusado de ligações aos chamados fraccionistas.

Na televisão teve programas de grande audiência, destacando-se o “Horizonte”, dedicado à juventude. Com este programa contribuiu decisivamente para as transmissões em directo da TPA, que tiveram início com um espectáculo no Sporting de Luanda. William Tonet foi também o primeiro delegado da Televisão Pública de Angola em Benguela e professor do ensino secundário, no Ciclo Velho.

Criou o programa “Panorama Económico” no período de partido único. Constituiu uma novidade, para a época. Valeu-lhe muitos amargos de boca, tendo estado este na origem da sua saída da TPA. Crime? William Tonet sempre pensou pela própria cabeça e, como jornalista, sempre entendeu que só devia obediência aos seus leitores, ouvintes ou telespectadores.

Foi quadro fundador da Delegação da LUSA em Angola, com Sérgio Soares, sendo o primeiro jornalista angolano a trabalhar como tal na “Voz da América” e a cobrir os dois lados do conflito (período da Guerra Fria, entre UNITA e MPLA).

É o jornalista que mais se especializou na cobertura do conflito militar angolano, conhecendo e mantendo relações com os dois beligerantes. Com isso granjeou amigos e inimigos dos dois lados. Mas, diga-se, foram mais os amigos que juntou, os irmãos que uniu.

Em 1991, fruto dessas relações privilegiadas foi o primeiro mediador do conflito angolano, colocando pela primeira vez, sentados à mesma mesa, militares das Forças Armadas governamentais (FAPLA) e da UNITA (FALA), que rubricaram um acordo de 19 pontos, no Luena, no Alto Kauango, a 19 de Maio de 1991. Acordo esse rubricado pelo chefe do Estado-Maior das Forças Militares da UNITA, FALA, general Arlindo Chenda Pena “Ben Ben” e pelo chefe das Operações das Forças Militares do MPLA, coronel Higino Carneiro. Este terá sido um acordo determinante para a assinatura dos Acordos de Bicesse.

Sem estes, talvez, em 31 de Maio de 1991, não tivesse sido possível o acordo de Portugal, uma vez que os militares, no terreno, continuavam a lutar.

William Tonet foi também o criador da primeira produtora privada de televisão, responsável pela divulgação das imagens via satélite da realidade do conflito militar e social de Angola para o mundo, nomeadamente, para a CNN, CBS e em Portugal para a SIC.

Em Portugal, antes da liberalização do espectro da rádio, teve uma emissora pirata na Pontinha. Fez parte, com Emídio Rangel, do grupo fundador da TSF e da SIC, primeira televisão privada em Portugal. Trabalhou no semanário “O Jornal” e na revista “Visão”.

É o jornalista angolano mais vezes preso pelo regime, fruto da sua liberdade de pensamento, e também aquele com mais processos judiciais: mais de uma centena.

Raramente o jornalista é notícia. Contudo, não deixa, antes e durante, de ser um cidadão que, mais do que qualquer outro, tem responsabilidades acrescidas, devendo por isso, sem pretensiosismos nem falsas modéstias, assumir junto daqueles a quem exclusivamente deve explicações, os angolanos, a verdade dos acontecimentos.

A história escreve-se com a verdade que, mesmo quando bombardeada insistentemente pela mentira, acabará por se sobrepor a todo o género de maquinações e acções de propaganda. É, por isso, legítimo que se faça pedagogia e formação quando, por razões mesquinhas, alguns tentam apagar o que de bom alguns, muitos, angolanos fizeram pela sua, pela nossa, terra. E tentam apagar, revelando um manifesto complexo de inferioridade, por temerem que a verdade os mate. Esquecem-se de que, mesmo recorrendo à história, a salvação só se consegue com respeito pela verdade.

E não é por esconder a verdade que ela deixa de existir. Em 1991, quando as forças da UNITA sitiaram por 57 dias a cidade do Luena, William Tonet, abordou o seu então amigo General “Ben Ben” e um outro general das FAPLA, Higino Carneiro, que aceitaram a sua proposta de tréguas de paz que ficou conhecida como os Acordos do Alto Kauango, que foram a “mãe” dos Acordos de Bicesse.

Não adianta o MPLA, o regime, os que se julgam donos da verdade, “esquecerem” a verdade dos factos. Eles são exactamente isso, factos. E um deles, o de ter sido um angolano a mediar pela primeira vez o conflito entre angolanos, deveria ser motivo de regozijo e de reconhecimento interno e externo. Só a mesquinhez de uns tantos pode levar a que se tente, sem sucesso — é certo, apagar esta verdade. Uma de muitas outras que, infelizmente, ainda se encontram enclausuradas por medo de represálias.

O facto de o cidadão, jornalista, William Tonet ser inimigo público do regime, mau grado a sua luta ter sido sempre em prol dos angolanos, revela igualmente que na história que o regime quer que se escreva só têm lugar os que são livres para estarem de acordo com ele.

William Tonet é filho de um co-fundador do MPLA, já falecido, que chegou a ser deputado pelo partido no poder na mais longa legislatura do país.

Quando o nacionalista Guilherme Tonet foi preso no Tarrafal, o pequeno William tinha cinco anos e o pai levou-o consigo. É assim que passa a viver a sua infância na cadeia ao lado do pai e outra parte no Congo Kinshasa, onde estava a Direcção do MPLA no exterior.

Mesmo que pintem a história de outra forma, a verdade é que William Tonet nasceu dentro do MPLA e assim se percebe a fidelidade racional, crítica e independente, que mantém a este partido que, todos os dias, o maltrata por discordar das suas práticas.

Em finais da década de 70 esteve muito próximo a uma facção do MPLA próxima de Nito Alves. Foi detido. Passou dois anos nas masmorras.

Durante o processo de “reinserção na sociedade”, passou a trabalhar na TPA como cameraman, tendo sido um dos dinamizadores do programa “Opção”, que retratava o conflito militar. Foi ele quem abriu oficialmente a delegação da TPA em Benguela. Mudou-se depois para Portugal onde exerceu jornalismo, aprendendo com vários “monstros sagrados” da informação lusa (Emídio Rangel, por exemplo) e tornando-se igualmente num dos melhores do nosso jornalismo.

“Comecei a fazer jornalismo depois de 1977, pois até essa altura estava nas Forças Armadas. Como fui apanhado na onda dos presos de 1977, depois de sair fiquei bastante frustrado com a forma como esse processo decorreu. Depois de sair da cadeia e de ter sido colocado em Benguela e Kuando Kubango, entrei como assistente de operador de câmara na TPA, depois de ter sido rejeitado pelo “Jornal de Angola”, onde participei num concurso. Tive boa prestação, mas o director da altura, Costa Andrade Ndunduma, disse não poder aceitar um fraccionista nos seus quadros. Tive de correr dali para fora,” conta William Tonet, certamente orgulhoso de, com derrotas e vitórias, nunca se ter desviado da missão de dar voz a quem a não tem.

Ao serviço da “Voz da América” (VOA), acompanhou uma delegação norte-americana à Jamba, o então quartel-general da UNITA. Os serviços de inteligência da UNITA detiveram-no após notarem que trazia passaporte angolano. Acusaram-no de ser espião ao serviço do MPLA. Após intervenção norte-americana foi solto e Jonas Savimbi desculpou-se. Esteve então com velhos amigos dos bancos da escola, no Huambo, entre os quais o general Arlindo Chenda Pena “Ben Ben”.

Na guerra do Huambo, após as primeiras eleições gerais em Angola, William Tonet esteve enquanto jornalista na frente de combate acompanhando as FAPLA. Perante a derrota destas e consequente recuo, foi baleado e andou cerca de um mês a pé com os comandantes das FAPLA, até Benguela, onde seriam resgatados. Totalmente fragilizado e com uma bala cravada na perna, o jornalista foi evacuado pelas autoridades portuguesas para Lisboa, onde seriam exibidos os primeiros vídeos da derrota, o que acabou por irritar as autoridades angolanas, que até hoje não lho perdoam.

No hospital foi-lhe detectada uma úlcera no estômago, por ter ficado semanas sem comer, úlcera que até hoje é responsável pelo seu estado de saúde.

No seu regresso a Angola voltou ao jornalismo, criando um dos primeiros jornais privados no país, o emblemático “Folha 8″. Recorde-se que por este jornal passaram jornalistas como Graça Campos, Reginaldo Silva, Gilberto Neto. Foi detido por diversas vezes e é — reafirme-se — o jornalista com o número recorde de processos judiciais.

Não deixa, entretanto, de ser curioso que o Presidente José Eduardo dos Santos tivesse consciência do desempenho patriótico de William Tonet, tal como conhecia bem o seu papel nos Acordos do Alto Kauango, mas tenha deixado enredar-se pelos mais extremistas membros do MPLA que, por uma questão se sobrevivência, fazem de William Tonet a razão de todos os males.

Aceita-se que todo o percurso profissional de William Tonet, mas sobretudo o de cidadania activa que remonta, pelo menos, aos Acordos do Alto Kauango, seja uma espinha enorme entalada na garganta de cidadãos como António Pereira Furtado ou Hélder Vieira Dias “Kopelipa”. Mas não é matando o mensageiro, reescrevendo a verdade, em parte já histórica, que se calará a mensagem. Essa está dentro de todos os angolanos.

A filosofia oficial é valorizar os que dizem que fazem e não os que fazem, os que colocam a subserviência no lugar da competência, os que trocam um prato de pirão em pé por uma lagosta de cócoras. Mas, não me parece que seja esse tipo de sociedade, de dirigentes, que os angolanos querem. Não é, temo a certeza, o tipo de sociedade, a de dirigentes, que William Tonet quer para Angola.

À revelia ou não das ordens de José Eduardo dos Santos, o regime ao invés de trabalhar para uma verdadeira reconciliação nacional, pretendeu consolidar-se através da eliminação física dos seus adversários políticos, como aconteceu com Ricardo de Melo, Nfulumpinga Landu Victor ou Jonas Savimbi.

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