A (VERDADEIRA) HISTÓRIA NÃO TEM DONOS

O escritor angolano José Eduardo Agualusa considerou hoje legítimas eventuais “reparações históricas” sobre a responsabilidade de Portugal por crimes cometidos durante a era colonial, lembrando que o país europeu fez o mesmo em relação aos judeus sefarditas.

Em declarações à Lusa, em Maputo, José Eduardo Agualusa diz que “há uns 12 anos, Portugal decidiu fazer uma reparação relativamente aos judeus que foram expulsos da península ibérica, há mais de 500 anos. A reparação foi dar o passaporte português a quem quisesse e que pudesse provar que descendia dessas famílias de judeus sefarditas. Na altura ninguém protestou”.

“Se os portugueses aceitam fazer uma reparação em relação aos judeus que foram expulsos por que não aceitariam fazer uma reparação aos africanos, que foram sequestrados e escravizados, que é muito pior do que ser expulso”, acrescentou.

Em causa estão declarações do Presidente da República português, Marcelo Rebelo de Sousa, em que reconheceu a responsabilidade de Portugal por crimes cometidos durante a era colonial, sugerindo o pagamento de reparações pelos erros do passado.

“Temos de pagar os custos. Há acções que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isto”, afirmou Marcelo Rebelo de Sousa, num jantar com correspondentes estrangeiros em Portugal, citado pela agência Reuters.

Para o escritor angolano, a livre circulação de pessoas entre Portugal e os países africanos está entre as opções que podem ser adoptadas no âmbito desta ideia de “reparação histórica”.

“Há muitos anos que se fala na criação de um passaporte lusófono. É tempo de todos nós nos debruçarmos sobre isso e tentar criar o tal passaporte. Essa é a melhor reparação que se pode fazer: facilitar o trânsito das pessoas nestes territórios”, declarou.

José Eduardo Agualusa também defende a necessidade de reflexão sobre outras formas de narrar a guerra colonial, considerando que nas antigas colónias existem outras versões que devem também ser ouvidas.

“Existe uma versão em Portugal sobre o processo colonial. Mas os angolanos têm outras versões. Os moçambicanos têm outras versões. Os brasileiros têm outras versões. Então, os próprios livros de história deveriam ser redigidos em conjunto. Um livro de história sobre este processo colonial deveria contar com historiadores portugueses, mas também africanos e brasileiros. E essas diferentes versões da história deveriam estar disponíveis nos bancos da escola”, acrescentou.

As declarações de Marcelo Rebelo de Sousa, que antecederam as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, suscitaram um debate em Portugal, com o Chega pedir o agendamento de um debate de urgência no Parlamento para que o Governo esclareça se está a ser equacionada a atribuição de eventuais “indemnizações às antigas colónias”.

O partido político liderado por André Ventura acusou o chefe de Estado de trair os portugueses e pediu a Marcelo Rebelo de Sousa que se retrate por estas declarações.

NÃO APAGAR A MEMÓRIA NEM A VERDADE

O antigo campo de concentração da ditadura portuguesa no Tarrafal, Cabo Verde, conta a partir do passado dia 1 com um centro de documentação, na Internet (www.tarrafal-cdt.org). A iniciativa surgiu no âmbito da evocação pela Comissão Comemorativa dos 50 anos do 25 de Abril, que se associou à celebração dos 50 anos da libertação dos presos políticos do Tarrafal.

Em Julho de 2021, Cabo Verde e Portugal assinaram um protocolo para protecção e conservação do património cultural, com destaque para o antigo Campo de Concentração do Tarrafal, visando a candidatura a património mundial. Em 2008, Manuel Pedro Pacavira (dirigente do MPLA e colaborador da PIDE) foi um dos presos angolanos a intervir no Colóquio Internacional sobre o Tarrafal.

O memorando de entendimento foi assinado pelos então ministros da Cultura e das Indústrias Criativas de Cabo Verde, Abraão Vicente, e da Cultura de Portugal, Graça Fonseca, no âmbito de uma visita oficial que a governante portuguesa efectuou ao arquipélago, e aconteceu no antigo Campo de Concentração do Tarrafal, no norte da ilha de Santiago.

Com o documento, os dois países pretendiam cooperar na protecção, conservação, salvaguarda e divulgação do património cultural, através de formação, capacitação técnica, partilha de conteúdos científicos, publicações, investigação, intercâmbio profissional, actividades científicas conjuntas.

Mas também promover a mobilidade de técnicos, preparação de exposições, nomeadamente nos domínios do património material (móvel e imóvel), do património imaterial e dos museus, com especial destaque para o Museu da Resistência do Campo do Tarrafal e para o Museu Nacional da Resistência e da Liberdade.

A então ministra da Cultura portuguesa, Graça Fonseca, acrescentou que o protocolo iria ajudar na elaboração da candidatura do antigo campo de concentração do Tarrafal a património material da Humanidade, feita em colaboração com o trabalho que o Governo português estava a realizar na Fortaleza de Peniche.

“São dois locais que têm uma história para contar, estamos a partilhar o trabalho, iniciamos em Portugal com todo o processo de musealização da Fortaleza de Peniche, agora Museu Nacional da Resistência, e é exactamente com esse objectivo, cooperação técnica nas diferentes áreas”, afirmou a ministra.

A cooperação técnica envolvia a Direcção Geral do Património de Portugal e o Instituto do Património Cultural (IPC) de Cabo Verde, explicou ainda a ministra, considerando que os dois países mostraram que não esquecem o passado e estão a construir o futuro.

“Para que a cultura chegue a todos, para que o património cultural esteja ao dispor de todos, é fundamental preservá-lo e dá-lo a conhecer, sem censura, nem omissão, porque assim mesmo é a cultura”, disse Graça Fonseca.

Por sua vez, o ministro da Cultura e das Indústrias Criativas de Cabo Verde, Abraão Vicente, disse que, depois da reabilitação concluída há quatro meses, o país dava início a uma nova etapa de preservação e valorização da memória colectiva e “nunca esteve tão perto” da entrega da candidatura do antigo campo de concentração do Tarrafal a património da Humanidade.

Acreditando que a candidatura tinha todas as condições para ser “vitoriosa”, Abraão Vicente disse que, além de Portugal, esperava contar com “total engajamento” de Angola, Guiné-Bissau, Moçambique, Timor-Leste e São Tomé e Príncipe.

Situado na localidade de Chão Bom, o antigo Campo de Concentração do Tarrafal foi construído no ano de 1936 e recebeu os primeiros 152 presos políticos em 29 de Outubro do mesmo ano, tendo funcionado até 1956.

Reabriu em 1962, com o nome de “Campo de Trabalho de Chão Bom”, destinado a encarcerar os anticolonialistas de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde.

Após a sua desactivação, o complexo funcionou como centro de instrução militar e desde 2000 albergou o Museu da Resistência. O espaço foi classificado Património Cultural Nacional em 2004 e integra a lista indicativa de Cabo Verde a património da UNESCO.

Ao todo, foram presas neste “campo da morte lenta” mais de 500 pessoas: 340 antifascistas e 230 anticolonialistas.

No dia 29 de Outubro de 2008, Manuel Pedro Pacavira foi um dos presos angolanos a intervir no Colóquio Internacional sobre o Tarrafal, colóquio este promovido pelo movimento «Não Apaguem a Memória» e pela Associação 25 de Abril e realizado na Assembleia da República Portuguesa.

Em 2009, Manuel Pedro Pacavira foi reeleito para o Comité Central e para o Bureau Político do MPLA. Foi Ministro da Agricultura e dos Transportes, representante de Angola na ONU, Governador do Cuanza Norte e embaixador de Angola em Cuba e na Itália. Foi, antes de tudo isso, colaborador da PIDE como consta da folha 84 do Processo-Crime nº 554/66 existente na Torre do Tombo, em Lisboa.

Paulo Lukamba Gato pergunta, com assertividade e oportunidade, “mas na história militar do nosso país, não consta pelo menos uma batalha contra os portugueses durante a guerra colonial?”. Embora num contexto antagónico à “história” que o MPLA nos conta, há angolanos (mesmo que não reconhecidos como tal pelo MPLA por pertencerem à etnia dos angolanos bancos) que já deram o seu contributo.

A 15 de Março de 1961 começou, em Angola, a guerra contra a dominação colonial portuguesa. Entre muitas obras já escritas, recordamos a “Guerra Colonial – A História na Primeira Pessoa”, 16 volumes publicados em 2011 e de que são autores dois jornalistas angolanos, Paulo F. Silva (já falecido) e Orlando Castro (hoje director-adjunto do Folha 8).

“Para Angola depressa e em força”, anunciou António de Oliveira Salazar no rescaldo da insurreição angolana em 1961. Entre as plantações de algodão e café, as intervenções militares portuguesas começavam a ser uma constante, provetas de uma Guerra Colonial que duraria até ao 25 de Abril em 1974.

“Quando tinha sete anos lembro-me dos meus pais oferecerem café ao exército português, enquanto um dos soldados me meteu um capacete na cabeça”, relata Orlando Castro, autor, a par de Paulo F. Silva, da colecção de 16 livros sobre a Guerra Colonial. A criança fascinada com o capacete acompanhou os terrores de guerra em directo, assim como o resto do povo angolano e soldados portugueses, envolvidos num conflito que não deixou ninguém indiferente.

“A História na Primeira Pessoa” serve de subtítulo para o que os dois jornalistas descrevem como “o outro lado da Guerra Colonial”. Em vez da mera cronologia de guerra, Orlando Castro e Paulo F. Silva recolheram testemunhos de veteranos e de soldados da época, que imortalizaram os seus pensamentos em cartas e relatórios. “Houve uma vontade generalizada de contar as histórias, apesar de ainda haver alguns veteranos que preferem guardar as suas memórias”, indica Orlando Castro.

O primeiro volume, por exemplo, acompanha o ano de 1961, quando na Baixa de Cassange ocorreu a primeira sublevação de trabalhadores angolanos. Na empresa luso belga Cotonang, um regime quase de escravidão imposto nas plantações de algodão resultou na revolta de alguns camponeses e o consequente embate com as tropas portuguesas.

“O massacre na baixa de Cassenge reflectiu um povo que se sentia frustrado no seu próprio país e outro que usou o que tinha ao seu dispor para controlar a sua colónia”, explica Orlando Castro. Nessa primeira intervenção do exército português, Paulo F. Silva realçou como “ainda existem episódios que não estão esclarecidos”. O exemplo mais célebre é o uso de napalm, que foi confirmado por pessoas como António Lobo Antunes e desmentido pelo exército português.

“A informação não chegava a Portugal, as pessoas quando iam para a tropa estavam a embarcar para o desconhecido”, indicou na altura do lançamento da obra Paulo F. Silva. A escassa informação das condições sociais e geográficas da colónia, levou a uns primeiros anos de descoberta. “Um dos exemplos desta falta de preparação foi um comandante que programou um ataque por mar numa zona interior do país”, sublinha Orlando Castro.

Um dos testemunhos no primeiro volume que ilustra melhor este desconhecimento é o de António de Oliveira Gomes, um ex-furriel miliciano: “O maior choque na minha vida não foi ir para a guerra em Angola. O maior choque foi regressar a Lisboa e enfrentar o desinteresse e o desconhecimento do que se passava no Ultramar.”

Os dois jornalistas nasceram em Angola, sendo que em 1975 rumaram para Portugal. Se Paulo F. Silva não recorda o período de guerra, Orlando Castro, seis anos mais velho, acompanhou em primeira-mão os 13 anos de conflito.

“Aos poucos comecei a ter uma percepção diferente da guerra e descobri que existia alguma legitimidade pela luta da independência”, confessa Orlando Castro. Apesar desta colecção de livros acompanhar uma perspectiva portuguesa, os dois filhos de portugueses e assumidos angolanos não esqueceram a reflexão sobre a luta pela independência de Angola.

“A guerra faz parte da história de Portugal, para podermos entender a nossa posição na União Europeia temos de conhecer o nosso passado”, alertava Paulo. Como ex-jornalista de guerra, Paulo F. Silva aproveitou a sua experiência para transcrever uma guerra que não vivenciou. “Depois de estar em Timor ou no Afeganistão, passei por situações muito complicadas que me ajudaram a interpretar a Guerra Colonial”, acrescentou.

“Aos olhos de hoje estes massacres são inconcebíveis”, diz-nos Orlando Castro. Na primeira pessoa, os 16 volumes servem para humanizar uma guerra que vitimou portugueses e angolanos, uns perdidos em território desconhecido e outros a lutar pelo nome próprio. “Numa guerra ninguém ganha, todos perdem”, lembram os jornalistas.

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