UMA CARTA… EM PAPEL PERFUMADO

A visita de trabalho do responsável dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, a Angola acontece numa altura em que o general João Lourenço, após se posicionar de forma neutra perante a guerra de Vladimir Putin na Ucrânia, abstendo-se de votar uma resolução das Nações Unidas condenando a invasão russa, em Março, juntou-se em Outubro à maioria dos países que condenaram a anexação de territórios ucranianos pela Rússia.

O ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa, Serguei Lavrov, desloca-se amanhã à capital angolana, para se encontrar com o seu homólogo, Téte António, e com o Presidente general João Lourenço. A chegada de Lavrov ao Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro está marcada para o fim da tarde, realizando-se o programa oficial apenas no dia seguinte.

Na quarta-feira, o chefe da diplomacia russa, acompanhado da sua delegação, vai encontrar-se de manhã com o ministro das Relações Exteriores, Téte António, seguindo depois para uma audiência com o chefe de Estado, Presidente do MPLA e Titular do Poder Executivo, general João Lourenço.

Às 12h30, o ministro russo visita o Memorial Dr. António Agostinho Neto (o genocida responsável pelo assassinato, também com a ajuda dos militares russo, de milhares e milhares de angolanos nos massacres de 27 de Maio de 1977), bem como o jazigo do ex-presidente José Eduardo dos Santos, que morreu em 8 de Julho do ano passado. Serguei Lavrov segue logo depois para uma visita guiada ao Museu Nacional de História Militar e irá passar ainda antes de almoço pela Escola da Embaixada da Federação Russa. O diplomata regressa a Moscovo na quinta-feira de manhã.

Angola tem vindo, até ver, a reposicionar-se nos últimos meses em termos de política externa, aproximando-se dos Estados Unidos da América e da União Europeia, e distanciando-se da Rússia.

Ainda em meados de Janeiro, o general João Lourenço disse que era hora de negociar a paz na Europa, voltando a apelar a um cessar-fogo definitivo e incondicional por parte da Rússia para criar o “necessário ambiente negocial” entre as partes.

O chefe de Estado angolano (não nominalmente eleito) apontou a guerra na Ucrânia como “uma séria ameaça à paz e segurança” da Europa e do mundo, provocando a maior crise energética, alimentar e humanitária desde a Segunda Guerra Mundial.

Em Abril de 2019, o general João Lourenço visitou Moscovo e discursou perante os 450 deputados da Duma (a Câmara Baixa do parlamento russo) incentivando a uma maior cooperação empresarial em áreas que contribuam para a diversificação da economia angolana.

Citado na altura pelo órgão oficial do MPLA, Jornal de Angola, o Presidente angolano falou sobre parcerias público-privadas e empresas mistas russo-angolanas e lembrou que é “em momentos de crise que se reconhecem os amigos”, numa alusão à necessidade de a Rússia apoiar Angola no seu objectivo de se libertar de uma economia dependente há 47 anos (tantos quantos o MPLA tem no Poder) das receitas do petróleo.

Para África, já e em força

O regresso da Rússia a África está marcado pelo investimento, ou seja, venda de armas e envio de “conselheiros” ou mercenários, com Moscovo a competir com a Europa e a China para o papel de principal parceiro do continente africano.

De acordo com um artigo da agência France-Presse, o destaque da crescente presença da Rússia em África surgiu no dia 30 de Julho de 2018, com o assassinato de três jornalistas russos na República Centro-Africana, que investigavam a presença do grupo mercenário Wagner no país.

Segundo o artigo, desde o início desse ano, a Rússia terá enviado cinco oficiais militares e 170 instrutores civis – que alguns especialistas acreditam ser mercenários do grupo Wagner -, entregado armas ao exército nacional após uma isenção ao embargo da Organização das Nações Unidas (ONU) e assegurado a segurança do Presidente centro-africano, Faustin-Archange Touadéra, cujo conselheiro de segurança era (claro!) de nacionalidade russa.

A entrega de armas aos Camarões para a luta contra o grupo ‘jihadista’ Boko Haram, as parcerias militares com a República Democrática do Congo (RDCongo), Burkina Faso, Uganda e Angola, as cooperações num programa de energia nuclear civil com o Sudão, na indústria mineira no Zimbabué ou no alumínio da Guiné, representam algumas das iniciativas de Moscovo nos últimos anos.

A Rússia tem também diversificado as suas parcerias africanas, expandindo as relações para além das nações com quem tem ligações históricas – como Argélia, Marrocos, Egipto e África do Sul – e procurou aliados na África subsaariana, onde estava “virtualmente ausente”, lê-se no artigo.

“África continua a ser uma das últimas prioridades na política externa da Rússia, mas a sua importância tem vindo a crescer”, de acordo com o historiador Dmitry Bondarenko, membro da Academia Russa de Ciências.

A URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) manteve, durante décadas, uma presença activa no continente. Agora, com outro nome, mantêm-se os objectivos: sacar o máximo e perder o mínimo. Um bom negócio, desde logo porque a carne para canhão é negra e as riquezas africanas são inesgotáveis.

A medida representava uma das armas na guerra ideológica contra o Ocidente, apoiando os movimentos de libertação africanos e, após a descolonização, enviava milhares de conselheiros até esses territórios.

Com a desintegração da URSS, as dificuldades económicas e as lutas internas na Rússia durante os anos 1990, Moscovo abandonou as suas posições em África.

Face à falta de fundos, aumentou o número de embaixadas e consulados a encerrar, diminuíram o número de programas e as relações atenuaram.

Foi apenas no novo milénio que o Kremlin começou a reavivar as suas antigas redes e regressou gradualmente a África, procurando novos parceiros à medida que a ideologia era substituída por contratos e pela venda de armas. E, também, à medida em que os “velhos” comunistas se rendiam às benesses do capitalismo, selvagem ou não. Caso do MPLA.

Em 2006, o Presidente Vladimir Putin viajou até à Argélia, África do Sul e Marrocos para assinar contratos, algo que o seu sucessor, Dmitri Medvedev, estendeu a outros países – Egipto, Angola, Namíbia e Nigéria -, três anos mais tarde.

O chefe da diplomacia russa, Serguei Lavrov, visitou cinco países africanos, enquanto representantes de várias nações do continente estiveram presentes no Fórum Económico de São Petersburgo.

Se a Rússia encontrar interesse económico, permite aos países africanos “ter mais um parceiro, o que significa outro canal de investimentos e desenvolvimento, e o apoio de um país poderoso no cenário internacional”, declarou o analista russo e antigo embaixador em vários países africanos, Evgeni Korendiassov, citado pela AFP.

A Rússia, que não tem um passado colonial em África, espera apresentar-se como uma alternativa para os países africanos face aos europeus, norte-americanos e chineses.

A AFP considera a República Centro-Africana um “excelente exemplo”, dado que este país nunca esteve perto da URSS durante a Guerra Fria e agora volta-se para a Rússia para fortalecer as suas forças militares, com dificuldades em enfrentar os grupos armados.

“Desde 2014 e da anexação da Crimeia, a Rússia tem confrontado o Ocidente e declarado abertamente a sua vontade de se tornar novamente uma potência mundial. Não pode, portanto, ignorar uma região”, apontou Bondarenko. Segundo ele, Moscovo está interessado em África não por razões económicas, mas para “um avanço político”.

“Anteriormente, os países com quem o Ocidente não queria cooperar, como o Sudão ou o Zimbabué, só podiam recorrer à China. A Rússia passou a ser uma alternativa tangível”, acentuou, antes de concluir que “este não era o caso antes, e isso pode mudar significativamente a ordem geopolítica do continente”.

Africanos… descartáveis

De uma forma geral e desde sempre os africanos foram (e continuam a ser) instrumentos descartáveis nas mãos das grandes potências, coloniais ou não. Ontem uns, hoje outros. Entre escravos, carne para canhão e voluntários devidamente amarrados, foram e são um pouco de tudo. Muitas vezes foram tudo ao mesmo tempo. Na I Guerra Mundial deram (pudera!) o corpo às balas, a alma ao Diabo e a dignidade às valas comuns.

Nesse conflito alheio, mais de um milhão estiveram na frente de combate, morreram mais de 100 mil. Alguém se recorda hoje deles, ou os recorda, com a dignidade histórica que merecem?

Se ser soldado desconhecido é só por si um drama, ser um soldado desconhecido… africano é obra desenganada. Infelizmente.

De uma forma geral, como passado um século continua a ser verificado, os africanos são um povo (lato sensu) ingénuos que, mesmo depois de terem poder de decisão, acreditam em milagres, sobretudo quando estes não são feitos por santos da casa. Não admira, por isso que muitos dos seus dirigentes da época (tal como os de hoje) “esperavam que a sua participação, em pé de igualdade com os seus companheiros de armas europeus e americanos, numa guerra que não lhes dizia respeito, mas que lhes foi imposta”, lhes trouxesse “melhorias constitucionais, económicas e sociais nos seus territórios de origem” (escreve o angolano Eugénio Costa Almeida no seu livro: “África Colonial no Centenário da Guerra de 1914/1918”).

Enganaram-se. O máximo que conseguiram como reconhecimento do seu esforço e dedicação foi mudarem de donos. Ficou, contudo, a semente da rebelião que germinaria no deserto de injustiças que os europeus foram, do alto da sua suposta superioridade, regando.

Suposta superioridade que levou os europeus a pensarem que, regando essa semente, acabariam por a afogar. É claro que, mesmo no próprio continente africano, muita dessa rega foi feita com sangue e não com água. Denominador comum em todas as guerras em África entre africanos: a ambição ocidental em dominar as riquezas autóctones.

Em Angola (tal como noutras colónias), as consequências, o acerto de contas, surgiram meio século depois, contra as potências coloniais. Embora banidas pelo uso da razão da força conseguiram que a força da razão se mantivesse viva e, com a ajuda dos europeus africanos, gerasse um imparável nacionalismo.

A tudo isto acresce a megalómana tese europeia de que a História só é válida quando são os europeus a contá-la. Daí a tendência de, por regra, esquecer o contributo da participação de africanos. Até mesmo nos meios académicos, supostamente mais equidistantes de interesses rácicos, os africanos eram (ainda são) vistos como seres menores, auxiliares, sem direito a figurar como combatentes em pé de igualdade com os europeus juntos dos quais mataram e morrem por, corrobore-se, uma causa que não era sua.

Ao longo dos tempos, milhares de africanos morreram para ajudar os europeus. Quantos europeus morreram para ajudar os africanos? Pois. Essa é outra história da nossa História comum.

Folha 8 com Lusa

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