O Presidente angolano, igualmente Titular do Poder Executivo e Presidente do MPLA (no poder há 47 anos) afirmou hoje que os indícios contra a ex-presidente do Tribunal de Contas (TdC) eram “irrefutáveis” depois de a magistrada ter feito uma “tentativa de extorsão” de ministros do seu governo. Nada melhor do que este reconhecimento para mostrar ao mundo que Angola não é um Estado de Direito.
João Lourenço discursou hoje no Palácio Presidencial, em Luanda, onde conferiu posse a oito novos juízes conselheiros do Tribunal Supremo (TS), e justificou a sua ausência da sessão de abertura do ano judicial por causa das alegadas acções da juíza-presidente do TdC, Exalgina Gamboa.
“Pela primeira vez este ano falo perante juízes conselheiros dos tribunais, mais concretamente do Supremo, em virtude de ter declinado o contive para presidir à sessão solene de abertura do ano judicial numa altura muito conturbada para a justiça angolana”, disse João Lourenço.
Segundo chefe de Estado angolano, o referido período conturbado teve início com queixas públicas contra a gestão magistrada e o Ministério Público “não ignorou as denúncias”.
Posteriormente, “veio a descobrir-se mais tarde factos irrefutáveis, muito mais graves do que os da denúncia pública, imputáveis à mesma juíza conselheira de que apontam para tentativa de extorsão do ministro da Energia e Águas”, apontou.
Segundo o chefe de Estado, a juíza pediu ao ministro dos Recursos Minerais e Petróleos 1% do capital social da Refinaria do Lobito como se isso fosse normal e possível em Angola de hoje que, juntos, estamos a edificar tendo a luta contra a corrupção e a impunidade como nossa bandeira”.
João Lourenço disse também, aludindo ao artigo 175º da Constituição angolana, que a independência dos tribunais se circunscreve ao exercício da função jurisdicional destes. Por isso, “na qualidade de mais alto magistrado da nação não poderia ficar indiferente perante situações tão graves”.
“De tal forma que ao abrigo das competências que a CRA lhe confere o chefe de Estado convidou a juíza conselheira em causa a renunciar, tendo sido na sequência constituída arguida pelo Ministério Público”, realçou.
Como a lei estabelece para esses casos, prosseguiu, o Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) vai desencadear o processo para o preenchimento da vaga e o chefe de Estado nomeará “de entre quaisquer um dos juízes conselheiros” o futuro venerando juiz conselheiro presidente do TdC.
O Presidente angolano, João Lourenço, anunciou, em finais de Fevereiro, que convidou Exalgina Gamboa a renunciar ao cargo no dia 21 de Fevereiro devido a várias “ocorrências” que a envolviam, mas a juíza só iria demitir-se dias depois, após ter pedido jubilação antecipada e ter sido constituída arguida.
Crimes de extorsão, peculato e corrupção são indiciados a Exalgina Gamboa, num processo onde consta também o seu filho Hailé Vicente da Cruz, igualmente arguido.
DE JOEL A EXALGINA, O MPLA IGUAL A SI PRÓPRIO!
O presidente da Associação Justiça, Paz e Democracia (AJPD), Serra Bango, disse no dia 28 de Fevereiro, em Luanda, que acompanhava com preocupação a situação que se verifica no sistema judiciário angolano, sobretudo a nível do topo, o que “não é novo e não é novidade”.
Serra Bango disse que, “na verdade, isto para nós não é novo e não é novidade, a única coisa que aconteceu é que tratou por se manifestar, provavelmente porque os actores agora são outros e há maior escrutínio também dos cidadãos, maior abertura das pessoas, de acesso à documentação”.
O responsável sublinhou que toda a situação foi conhecida “porque foram vazados para a hasta pública, por via das redes sociais, documentos que comprometem e comprovam eventual envolvimento destas entidades em processos poucos claros e transparentes”.
O activista referia-se a notícias divulgadas, nomeadamente aqui no Folha 8 e na TV8, sobre o envolvimento dos juízes presidentes do Tribunal Supremo, Joel Leonardo, e do Tribunal de Contas, Exalgina Gamboa, em casos de corrupção, peculato, entre outros.
“Isto não significa que os outros não o tenham feito. Provavelmente teriam feito, mas o acesso à documentação e a publicação dessa documentação é que não era fácil como é agora, primeiro, e também porque a consciência do cidadão para a denúncia dos actos de improbidade ou de actos pouco lícitos que envolvam agentes públicos, não era tão elevada como está a ser agora”, frisou.
Segundo Serra Bango, “isto não é um facto isolado”, abrange também outros agentes a nível do sistema judicial “do topo à base”.
“Sempre dissemos, há mais de 20 anos, que o sistema de justiça no jogo dos três poderes é o mais fraco, o mais fragilizado e aquele que é facilmente condicionado pelo poder executivo”, referiu, realçando que “a nomeação e a indicação destes servidores, para o topo da hierarquia da magistratura obedece ao critério da confiança estrita do titular do poder executivo e do próprio partido [no poder]”.
Para o presidente da AJPD, um excesso de confiança poderá ter originado toda a situação que se verifica com estes servidores da justiça, em detrimento do discurso sobre o suposto combate à corrupção que o Presidente angolano vem dizendo que defende.
“Somos pessoas de confiança do titular do poder executivo, vamos fazer aquilo à semelhança do que os outros também fizeram, primeiro. Segundo a apetência pelo enriquecimento ilícito e imediato, que é o que acontece”, disse.
“Porque não se justifica, que com as condições de trabalho e as regalias que estes venerando juízes têm, não justifica este tipo de comportamento. Aqui há também a falta do cumprimento de um certo distanciamento dos juízes em relação aos negócios”, reforçou.
O presidente da AJPD recordou que o anterior juiz presidente do Tribunal Supremo, Rui Ferreira, também foi forçado a demitir-se em circunstâncias semelhantes a estas, “envolvimento em negócios”.
“É preciso que se conclua o inquérito que deve ser feito, instaurada uma investigação imparcial e neutra e se obtenha os resultados e por via dos resultados se determine a responsabilidade, que é um outro elemento que nos tem faltado cá, a responsabilização dos agentes públicos, que não se faça já o julgamento na praça pública”, frisou.
Questionado sobre se terá contribuído para a situação actual o decreto presidencial que torna a justiça parte interessada nos casos que julga, respondeu que “provavelmente”, tendo em conta que o documento “choca contra a idoneidade, a transparência, o espírito de isenção que os juízes devem ter”.
“Aquilo depois viria a redundar que os juízes seriam estimulados a determinar que processos seriam julgados em função das benesses que haveriam de usufruir”, disse Serra Bango sobre o decreto presidencial n.º 69/21, que estabelece que a Procuradoria-Geral da República e os tribunais passam a ficar, no âmbito do combate à corrupção, com 10% do valor líquido de cada activo financeiro e não financeiro recuperado a favor do Estado.
O activista defendeu para o sector da justiça um sistema de justiça forte, independente e autónomo, para determinar o seu orçamento, gerir os seus fundos, sendo fundamental que se criem condições de trabalho para todos os operadores de justiça.
“Sabemos que juízes para poderem abrir uma audiência têm que comprar papel, tinteiro, e algumas vezes têm de ser eles a abastecer o gerador para que tenham energia na sala, comprar ventoinha, etc., esta é a principal preocupação”, disse.
Justiça procura-se há muitos, muitos anos
Por uma questão de memória, recorde-se (entre muitos outros exemplos) que os deputados angolanos das bancadas da oposição que o MPLA ainda permite defenderam no dia 14 de Janeiro de 2021 que a justiça tinha de estar acima dos partidos e dos interesses particulares dos juízes, para que os tribunais merecessem a confiança dos cidadãos, admitindo que eram necessárias reformas.
Nesse dia o Folha 8 escreveu que quando, e se, isso acontecer será o fim do MPLA porque Angola passará a ser o que ainda não é: um Estado de Direito Democrático.
A Assembleia Nacional realizou nesse dia a primeira sessão plenária de 2021, debatendo quatro diplomas relacionados com o sector da justiça, relativos ao funcionamento do tribunal constitucional, lei do processo constitucional, normas do Código do Processo Civil e Penal e relativas às custas judiciais.
Antes da apreciação dos diplomas, os deputados apresentam as suas declarações políticas focando as debilidades da justiça que, como se sabe, não é de Angola mas – isso som – do partido que há 47 anos é dono do país.
Na sua declaração política, que começou dirigindo-se a “todos os jovens que são julgados injustamente por exercer os seus direitos”, num dia em que o debate se centrava na área da Justiça, a vice-presidente da UNITA, Mihaela Webba, assinalou que o funcionamento das instituições não pode ser prejudicado por interesses político-partidários.
Poder… pode. Basta ver o que se passa. Não deve. Mas por alguma razão o partido de João Lourenço diz que o MPLA é Angola e que Angola é (d)o MPLA, anotou o Folha 8.
“Temos de colocar o superior interesse dos angolanos acima dos interesses dos nossos partidos políticos”, frisou a parlamentar do maior partido da oposição (que o MPLA ainda permite), apontando um retrocesso do Estado de Direito nos últimos 12 meses, “com repressões dos direitos constitucionais dos angolanos, nomeadamente, o direito à vida, à integridade física, à habitação, à manifestação e à liberdade de expressão”.
Neste aspecto refira-se a existência de um conflito estrutural sobre quem é, não tanto de facto mas sobretudo de jure, considerado Angolano. E como todos sabemos, para ser angolano de pleno direito é preciso ter nascido no… MPLA, escrevemos nós.
Sobre a aprovação dos dois diplomas relacionados com o Tribunal Constitucional, lamentou a degradação da imagem dos tribunais superiores, particularmente do Tribunal Supremo e do Tribunal Constitucional “por causa dos interesses particulares dos juízes conselheiros na Comissão Nacional Eleitoral, ao ponto de o presidente do Tribunal Supremo ter prestado falsas declarações a este Parlamento, para permitir a tomada de posse do Dr. Manuel Pereira da Silva” (“Manico”), que a UNITA sempre rejeitou.
“Os angolanos não podem permitir que se use o Estado partidário sem limites na competição política por intermédio do poder judicial e do sistema bancário e por via deste comportamento não termos a garantia de eleições livres, justas, transparentes e credíveis”, criticou a deputada da UNITA.
Para Mihaela Webba, os jovens encaram a classe política com desconfiança “porque não existe no país uma agenda de consenso que permita uma reforma verdadeira do Estado e das instituições”, que não promovem a justiça e a reconciliação nacional, considerou.
“Essa Angola de direitos, liberdades e garantias e direitos económicos, sociais e culturais para todos os seus filhos, que é vontade da larga maioria dos cidadãos angolanos, só será possível se as instituições da justiça, forem justas; se a Comissão Nacional Eleitoral e o Tribunal Constitucional enquanto órgãos organizadores das eleições cumprirem com o que está estabelecido na Constituição e na lei, e não subvertam a Justiça e o Direito”, reivindicou.
Folha 8 com Lusa