XEQUE (QUASE) MATE SUÍCO A ANGOLA

Os advogados de Carlos São Vicente, condenado a 9 anos de cadeia e a multa de 500 milhões de dólares, consideram “decisão histórica” em que o Supremo Tribunal suíço “reconhece dúvidas de julgamento justo em Angola”. Quem diria? Embora já tenha pouco peito para pôr medalhas, esta é mais uma para a qual João Lourenço terá de arranjar espaço.

Os advogados do empresário angolano Carlos São Vicente revelaram (obviamente sem consulta prévia e obrigatória aos donos de Angola, o MPLA) que um tribunal suíço decretou a suspensão da cooperação com as autoridades judiciais angolanas, devido à falta de imparcialidade no processo judicial contra o seu cliente.

“O Supremo Tribunal decidiu que as autoridades suíças não podiam cooperar com Angola antes de avaliarem a possibilidade e a eficácia da obtenção de várias garantias diplomáticas por parte deste país, em particular no que diz respeito à independência e imparcialidade dos tribunais e o cumprimento dos direitos processuais de Carlos São Vicente”, lê-se num comunicado divulgado pelos advogados do empresário.

No texto, os advogados de Carlos São Vicente, condenado em Luanda, em Março, a nove anos de cadeia e a uma multa de 500 milhões de dólares, sensivelmente o mesmo em euros, pelos crimes de peculato, branqueamento de capitais e fraude, escrevem ainda: “Esta é uma decisão histórica, já que o Supremo Tribunal da Suíça reconhece que há sérias dúvidas sobre o direito do sr. São Vicente a um julgamento justo em Angola“.

A decisão do tribunal suíço admite “parcialmente” o recurso colocado por Carlos São Vicente contra a sentença suíça, de 23 de Maio deste ano, mas rejeita o pedido de descongelamento das contas bancárias do empresário angolano.

São Vicente “espera que outros países sigam o caminho aberto pelo Supremo Tribunal suíço e se recusem a cooperar com os procedimentos irregulares seguidos pelas autoridades angolanas”, escrevem ainda os advogados, na nota que dá conta da decisão, datada de 30 de Agosto.

Preso preventivamente desde Setembro de 2020, os crimes imputados a Carlos São Vicente, segundo a acusação angolana, envolviam valores superiores a mil milhões de euros, embora na sentença agora conhecida os juízes suíços falem numa “estimativa de mais de 4 mil milhões de dólares” em fundos desviados devido às actividades comerciais do condenado.

O empresário, que durante quase duas décadas teve o monopólio dos seguros e resseguros da petrolífera estatal angolana Sonangol, terá montado um esquema triangular, com empresas em Angola, Londres e Bermudas, que gerou perdas para o tesouro angolano.

Com este esquema, e segundo o mesmo documento, Carlos São Vicente, dono de um dos maiores grupos empresariais privados de então em Angola, terá também conseguido não partilhar lucros do negócio dos seguros e resseguros com outras co-seguradoras, como a seguradora pública ENSA, prejudicando, deste modo, estas empresas, bem como a própria Sonangol.

Para a acusação, Carlos São Vicente criou a partir de determinada altura uma “espécie de negócio consigo próprio, dentro do grupo AAA (de que era proprietário), causando o desvio de fundos públicos”.

As acusações e o “excesso de prisão preventiva” foram reiteradas pela defesa, que prometeu em Março ir recorrer da sentença ditada na 3.ª Secção Criminal do Tribunal da Comarca de Luanda.

Alguns juristas angolanos admitem que a suspensão da cooperação com Angola decidida pela justiça suíça, no caso São Vicente, pode vir a ocorrer noutros países onde decorrem processos crime contra angolanos, no âmbito do combate à corrupção.

Mesmo assim, há quem defenda que decisões tomadas por órgãos de justiça estrangeiros, como os da Suíça, não afectam Angola como Estado. Ou seja, segundo o MPLA, esta estrondosa derrota é, afinal, uma vitória.

O advogado Salvador Freire diz que a medida resulta “da falta de credibilidade da justiça angolana”. “Alguma coisa terá de ser feita a nível interno para o país não cair no descrédito”, defende o causídico angolano, para quem, o risco de haver decisões do género ao nível de outros países “existe”.

A mesma opinião tem o advogado, Simão Afonso, que defende que o processo de suspensão espoletado na Suíça “pode abrir um precedente para actuações do género em processos futuros”.

“E faz todo o sentido, sim”, considera aquele jurista que acusa a justiça angolana do que qualificou de “falta de seriedade na aplicação dos princípios norteadores do Estado de Direito Democrático”.

“A REGRA DA NÃO-LEI”

Vejamos, na íntegra, a argumentação dos seus advogados, sob o título “O caso de Carlos São Vicente : A Regra da Não-Lei”, divulgado em Janeiro passado:

«Não há Estado Democrático de Direito sem respeito pelos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos; naufraga o Estado Democrático de Direito quando a primazia da Lei se curva perante interesses estranhos à realização da justiça; presenciamos o Estado de não-Direito quando as instituições jurisdicionais são subservientes ao poder político.

O caso em que é arguido Carlos São Vicente, é o epítome do aviltamento das garantias constitucionais dos arguidos.

Carlos São Vicente é inocente; criou riqueza com o exercício de uma actividade que exerceu legalmente; todas as aquisições, proveitos, custos e resultados estão comprovados nas Contas Auditadas por auditores idóneos ao longo de 20 anos; está documentalmente comprovado; o seu caso é a crónica kafkiana de uma condenação anunciada.

Ilustram-se aqui somente algumas das irregularidades legais que no processo contra Carlos São Vicente vêm ocorrendo.

O despacho de indiciação, que determinou a prisão preventiva de Carlos São Vicente em 22 de Setembro de 2020, não busca fundamento em factos concretos, como a lei exige, mas em abstracções e enganosas conclusões.

Não menos importante é que a prisão preventiva foi decretada pela PGR, a mesma entidade que cerca de mês e meio antes, no final de intensiva investigação, concluiu e comunicou às autoridades suíças que Carlos São Vicente não havia cometido qualquer crime. Entre essa investigação e o decretamento da prisão preventiva, não houve nenhuma nova investigação.

Carlos São Vicente tem mais de 60 anos de idade e é portador de várias doenças crónicas que requerem especiais cuidados e o coloca-a em alto risco de Covid-19. Desde o início da sua prisão preventiva teve várias crises hipertensivas (tensão arterial superior a 180/110) com elevado risco de morte ou de AVC. Nunca foi medicamente assistido durante essas crises. Nunca recebeu assistência médica adequada durante essas crises.

O respeito pela saúde e pela vida sobrepõe-se à conveniência da prisão preventiva de um qualquer arguido. Mesmo assim, os tribunais, nas diferentes instâncias, sempre se mostraram indiferentes ao seu grave estado de saúde.

No dia 6 de Outubro de 2020, ou seja, duas semanas após a sua prisão, Carlos São Vicente recebeu a inesperada visita, na cadeia, de dois procuradores do Serviço Nacional de Recuperação de Activos. Os seus advogados não tinham sido notificados e por isso não podiam estar presentes. É absolutamente proibido, e é extremamente grave, que sejam praticados actos desta natureza sem que o arguido tenha a possibilidade de estar acompanhado pelo seu advogado.

Nessa visita Carlos São Vicente recusou entregar os seus bens ao Serviços Nacional de Recuperação de Activos. Essa será certamente a razão de ainda estar preso e de tantas ilegalidades contra ele terem sido cometidas.

O prazo legal de prisão preventiva até ao julgamento é de 12 meses; pode ser prorrogado por mais 2 meses, quando se trate de processo de excepcional complexidade. E foi, de facto, prorrogado por esses dois meses, não obstante a investigação ter sido rudimentar e não justificar a prorrogação. Contados esses 14 meses, o prazo de prisão preventiva terminou em 22 de Novembro de 2021. Nos termos da lei, a sua libertação imediata era absolutamente imperativa, mas não ocorreu, mesmo tendo havido vários requerimentos nesse sentido apresentados logo no dia 23 de Novembro.

Além disso, os tribunais de jurisdição comum que estavam obrigados a pronunciar-se sobre esses pedidos, simplesmente os ignoraram, em clara denegação e obstrução da justiça.

Pelo menos até final do ano, decorridas cerca de seis semanas de excesso de prisão preventiva, permanece o silêncio daqueles tribunais.

No dia 22 de Setembro de 2020, o despacho de prisão preventiva foi dado a conhecer pela PGR a órgãos de comunicação social, que a divulgaram imediatamente, ainda antes de notificado a Carlos São Vicente e aos seus advogados (os advogados tomaram conhecimento através dessas notícias).

Nas semanas e meses seguintes o seu caso foi objecto de intensa propaganda nos órgãos de comunicação social de capitais públicos; o processo contra Carlos São Vicente entrou no grupo de crimes praticados pelos denominados “marimbondos”; um canal da televisão pública dedicou-lhe um programa em que pretensamente apresentava prova dos seus crimes. O único jornal público com tiragem diária publicou uma lista de bens “recuperados” pelo Estado, incluindo os bens que se encontravam apreendidos neste processo.

Vários procuradores e o próprio Procurador-Geral da República, fizeram declarações públicas no sentido da atribuição ao arguido dos crimes de que estava indiciado.

Como é do conhecimento público, muitos imóveis de Carlos São Vicente ou de sociedades suas foram apreendidos; pouco depois começaram a ser distribuídos, a título definitivo, mediante instruções da PGR, por vários Ministérios e outros órgãos do Estado. Esta distribuição pressupõe uma condenação prévia. Como ainda não se realizou o julgamento, essa distribuição significa que já foi tomada a decisão de condenação. Está em causa o princípio da presunção da inocência dos arguidos, garantia com assento constitucional e nos tratados internacionais, chocantemente violado.

O mesmo se passou com acções de uma sociedade pertencentes a Carlos São Vicente: após a sua apreensão, o depositário nomeado apressou-se a tornar público o destino definitivo dessas acções, assumindo que já pertenciam ao Estado.

As instruções para esse fim foram dadas pela PGR, mesmo quando o processo se encontrava já sob a alçada de um tribunal, ou seja, sem competência para esse efeito. Entretanto, o tribunal competente decidiu ignorar as ilegalidades que vêm sendo cometidas relativamente ao património de Carlos São Vicente apreendido, deixando de exercer as suas próprias competências. Afinal, como poderia o tribunal justificar a apropriação desses bens pelo Estado, sem desfeitear o próprio Estado?

O fiel depositário dos imóveis apreendidos tinha (e tem) como único dever e responsabilidade zelar pela sua conservação. O que nunca fez, tendo-os deixado abandonados durante meses. Entretanto, preocupou-se, nos termos de instruções recebidas da PGR, em distribuir esse património.

A maior rede hoteleira do país com unidades em todas as províncias, constituída pelos hotéis IU e IKA, na qual Carlos de São Vicente, através de uma das suas sociedades, fez um colossal investimento, começou a definhar. Os fornecedores deixaram de ser pagos, as unidades hoteleiras deixaram de prestar os serviços normais, levando a que muitas delas tivessem encerrado e outras continuado a trabalhar somente em serviços mínimos, com avultadas perdas de exploração.

Muitos das centenas de trabalhadores dessa rede hoteleira já não eram pagos e perderam o emprego, deixando muitas famílias na miséria.

A voracidade do Estado esteve concentrada somente na ocupação de imóveis pelo próprio Estado.

Uma simples leitura da acusação contra Carlos São Vicente permite constatar que ela se baseia fortemente num alegado relatório que tece considerações e conclusões, falsas e inconsistentes, desfavoráveis a Carlos São Vicente. Pois bem, esse relatório não tem data, não tem nome do autor nem qualquer assinatura. É um documento anónimo. Como tal, estatui a lei que o seu uso é proibido; nunca deveria sequer constar no processo e, se passou a constar, deveria ter sido removido.

Sucede que sem esse documento anónimo tão pouco haveria acusação uma vez que ele é a única fonte de muitas inverdades e falsidades relatadas nessa peça.

Em diferentes instâncias os tribunais reconheceram que o documento é anónimo (não haveria como não o reconhecer…) mas, pasme-se, continuam a admiti-lo como prova, esperançados em que alguém venha ainda a assumir a sua autoria (ou, talvez, seja designado para tal…). Qualquer eventual autoria desse documento que possa vir a ser alegada seria uma manobra de branqueamento de prova ilegal.

A verdade é que foi ilegalmente feito uso desse documento anónimo e sem esse uso, não haveria acusação nem julgamento. E Carlos São Vicente não estaria preso.

O advogado principal da defesa de Carlos São Vicente foi impedido pelo tribunal de o representar no processo. Razão para isso?

Antes de mais, quaisquer que fossem as razões, o tribunal não tem competência para limitar a escolha do arguido. Em segundo lugar, os factos invocados pelo tribunal constituem actos próprios de advocacia praticados (há quase 20 anos!!) pelo advogado em questão, conforme já reconheceu o Conselho Provincial de Luanda da Ordem dos Advogados de Angola.

O recurso interposto dessa decisão não foi apreciado imediatamente, tendo o tribunal de recurso remetido essa decisão para o final do processo. Ou seja, todo o processo decorrerá sem o advogado escolhido em primeira linha por Carlos São Vicente, viciando todo o seu decurso e impedindo-o de se defender pela forma que pretende.

Num Estado Democrático de Direito não se recusam aos arguidos os meios próprios necessários para fazerem face às necessidades pessoais e do seu agregado familiar, como sejam despesas domésticas (alimentação, energia, água) e de saúde (no caso presente houve já necessidade de custear despesas de internamento do arguido e de uma pessoa do seu agregado familiar). Por outro lado, deve ser assegurado ao arguido o uso dos recursos próprios na medida do necessário para custear a sua própria defesa, designadamente os honorários de advogados e outros custos associados. O arguido teve já que recorrer a empréstimos para suprir algumas dessas necessidades.

Recusar o acesso a fundos próprios para custear gastos da natureza dos descritos significa não só recusar o direito à dignidade e sobrevivência do arguido, como implica privá-lo de se defender pela forma que considera melhor para si.

A esta lista de violações flagrantes da lei e da Constituição da República de Angola poder-se-ia juntar muitas outras: a acusação por crimes prescritos e por crimes amnistiados, a aplicação retroactiva de leis, a falta de fundamentação de despachos e até mesmo a falta de despacho sobre vários requerimentos, entre outras.

Nunca, na história de Angola, foi a lei tão vilipendiada num processo judicial; não por acaso, acontece numa época de grave crise social e económica, em que o poder está fragilizado pela contestação da sociedade civil; não por acaso, acontece quando se avizinham eleições em que o governo estará sujeito ao escrutínio público e necessita de “troféus” para aumentar a sua popularidade junto dos martirizados cidadãos.

A condenação de Carlos São Vicente foi anunciada ao serviços de que interesses?

Cui bono?»

Folha 8 com Agências e VoA

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