Velório significa “vigília feita a um defunto”. Não havendo defunto, mas apenas uma fotografia dele, não há velório. Existe, apenas, uma cerimónia fúnebre. Foi isso que hoje aconteceu em relação a José Eduardo dos Santos, ex-presidente angolano, que morreu na sexta-feira em Barcelona, e que decorreu em Luanda num ambiente contido, na presença de centenas de militantes do MPLA, fiéis de igrejas e alguns anónimos.
Depois da cerimónia institucional de hoje de manhã, em que o Presidente da República, João Lourenço, prestou homenagem ao seu antecessor, as portas do Memorial ao único herói nacional permitido pelo MPLA, o assassino António Agostinho Neto, local escolhido para a cerimónia pública abriram-se a todos os cidadãos que quisessem despedir-se do antigo chefe de Estado que governou Angola durante 38 anos.
Com as negociações sobre a trasladação do corpo a arrastarem-se ainda em Barcelona, Espanha, e sem a presença física do corpo, a cerimónia decorreu sem grande intensidade emocional, com vários cidadãos a defender a entrega dos restos mortais a Angola.
Acorreram ao local sobretudo pessoas de organizações ligadas ao MPLA, como a Organização da Mulher Angolana (OMA), e grupos religiosos como os Tocoístas, igreja africana fundada por Simão Toco, a quem as autoridades coloniais portuguesas impuseram um exílio forçado nos Açores nos anos de 1960.
As filas junto à parede exterior do complexo monumental onde repousam os restos mortais do primeiro presidente de Angola avançaram de forma ordeira e sem grandes constrangimentos, sendo a todos fornecida uma máscara contra a Covid-19, e com passagem prévia num túnel de desinfecção antes de aceder à tenda da homenagem.
Na ausência do corpo para velar, a memória de José Eduardo dos Santos fez-se presente através de uma enorme fotografia junto à qual iam sendo depositadas flores e perante a qual ajoelharam alguns cidadãos.
Entre os muitos cidadãos anónimos, destacou-se a figura frágil da viúva de Agostinho Neto, Eugénia Neto que, no livro de condolências, desejou paz ao “Camarada José Eduardo dos Santos”, a quem o povo (do MPLA) recordará “para sempre com saudade”.
Eugénia Neto admitiu quem “nem tudo tenha sido bom”, mas sublinhou que neste momento de despedida o povo “deseja-lhe que esteja em paz e será recordado para sempre com gratidão”.
“Todos nós sentimos tristeza, ele foi chefe de Estado estes anos todos, teve um papel difícil ao substituir Agostinho Neto, temos o dever de o recordar com carinho e saudade”, afirmou a esposa do maior genocida da História de Angola que, em Maio de 1977, mandou assassinar muitos milhares de angolanos.
Questionada sobre as divergências entre o regime angolano e alguns dos filhos do ex-presidente quanto ao funeral, considerou que a família “tem o seu papel”, mas defendeu que o governo, em particular o Presidente, tem o dever de ajudar Eduardo dos Santos a regressar à sua pátria, apesar de o ter “apunhalado” pelas costas ao dizer, entre outros epítetos, que era um marimbondo que deixou os cofres do país vazios.
“Vamos ver as negociações, esperemos que tudo corra bem. Não sei quais são as razões das filhas, ou da Tchizé [uma das filhas que acusa João Lourenço de ser autor moral da morte do pai], não sei se é alucinação o que está a dizer, se tem algo que a leve a proceder assim ou se tem algo que a perturbou, mas acho que ele deve repousar em paz aqui, na sua pátria”, defendeu a viúva do primeiro presidente de Angola.
Para o cidadão Carlos Gunza, o ex-chefe de Estado foi “um líder” que soube acabar com as hostilidades e chegar à paz depois de um longo período de guerra civil que durou quase 30 anos, sendo desejável que voltasse para o país.
“Sendo Presidente de uma República, temos de pensar que não é só a família que está a ressentir-se da perda, nós, como angolanos, sentimos que este homem deve ser honrado e que deve ter as exéquias no seu próprio país”, declarou à Lusa.
O cidadão salientou que a “nação vai se sentir triste se as exéquias não passarem por aqui, na terra onde deu todo o seu máximo, desde a guerra até à independência”.
Por isso, deseja que o funeral aconteça em Angola: “Esperemos que os filhos sintam que nós também sentimos a perda do seu pai, sentimos a perda de um pai da nação”.
Apesar das desavenças públicas entre o Governo e as filhas – Isabel, que enfrenta vários processos judiciais, e Tchizé, que perdeu o mandato de deputada do MPLA, dizem-se vítimas de perseguição política e há vários anos que não entram em Angola – considera que as questões devem ser tratadas noutra altura.
“Eles [os filhos] têm de vir. Quando nós temos um problema, tratamos esse problema e o outro problema fica para outra oportunidade. Segundo os nossos ancestrais era assim que se tratava o assunto. Primeiro, vamos tratar daquele assunto mais candente, depois, eu conheço a casa onde moras, eu posso ir lá ter contigo, então depois vamos resolver aquele assunto antigo que já temos. Na minha maneira de pensar, aquilo que aprendemos com os nossos mais velhos é assim”, opinou.
Maria do Rosário Silva, residente em Portugal, aproveitou as férias em Luanda para se despedir do “que será sempre presidente, José Eduardo dos Santos”, que recorda como “um grande estadista”.
“Os feitos que fez pelo país, podem não ter sido todos os melhores, mas que foi um grande estadista, um grande presidente, foi”, vincou.
Olha para as disputas entre o Governo e as filhas mais velhas “com muita pena e muita mágoa”, dizendo que o antigo presidente deveria ser homenageado com o caixão em Luanda, para que “viesse descansar na terra dele, que tanto amou”.
“Espero que ainda seja feito, espero que haja bom senso e que seja feito o funeral aqui em Angola. Para o povo angolano é importante que seja sepultado em Angola, já cá temos o primeiro presidente e é aqui que é a terra dele, o país que governou tantos anos, não faz sentido que seja enterrado noutro país”, considerou Maria do Rosário Silva.
O Governo angolano declarou que pretende fazer um funeral de Estado em Luanda, decisão a que se opõe uma das filhas mais velhas, Tchizé dos Santos, afirmando que essa não era a vontade do pai, e que José Eduardo dos Santos não queria ser sepultado em Angola enquanto João Lourenço estiver no poder.
Angola vai observar luto nacional por sete dias o que significa que nas instituições públicas as bandeiras estão colocadas a meia haste.
Estão igualmente proibidos eventos políticos, desportivos e culturais, o que obrigou já ao cancelamento dos comícios que os principais partidos angolanos tinham agendado para sábado, bem como adiamento de festivais, espectáculos musicais e encontros que estavam previstos para esta semana.
Folha 8 com Lusa