Li há pouco a notícia de que o Sedrick de Carvalho escolheu a cidade de Santarém, em Portugal, para recomeçar a vida sem nunca esquecer as lutas contra a injustiça social. Aliás, o Facebook do Folha 8 refere tal situação.
Por Carlos Pinho (*)
E o meu espírito vagueou praticamente meio século, mais precisamente para Outubro de 1974, quando por mor de voz altamente avisada resolvi abandonar a minha terra. Naquela altura martelaram-me os ouvidos com dizeres do tipo “Isto não é mais a tua terra”, “Esquece Angola, se não queres acabar na vala comum”, “A tua terra é aquela que escolheres para viveres a tua vida e seres feliz”.
Na altura fiquei com morte na alma e tinha prometido a mim mesmo que em acabando a faculdade iria retornar. Mas a evidência experimental falou mais forte e a sequência de eventos que culminarem na guerra civil antes da independência, e a continuaram após esta, mostraram-me a clarividência de quem em Outubro de 1974, de boa-fé, me massacrou os ouvidos e não descansou até que eu saísse de Angola.
E ao longo dos anos, melhor ainda, ao longo das décadas, fui sistematicamente compreendendo que quem governa Angola, assim como muitos dos seus opositores políticos interessados em guerras e guerrilhas civis, é gente sem autoridade moral, sem escrúpulos, sem idoneidade de qualquer tipo, para levar o país a bom caminho. Conseguiram enriquecer ao mesmo tempo que criaram uma nação de proscritos. Uns proscritos na sua própria terra, porque pobres e miseráveis, mantendo condições de vida, nuns casos iguais às que já tinha no tempo colonial e noutros ainda piores. E os outros, os proscritos enxotados da sua própria terra, quer por questões políticas, quer por questões mais prosaicas como a dificuldade de conseguirem o seu pão de cada dia.
E a saga continua, e ir-se-á prolongar por muitos anos. Houve os proscritos porque pretendiam a independência do seu país e lutavam contra um regime colonial, posteriormente foi porque no período pré-independência (1974-1975) eram colonos e filhos destes, ou então de movimentos políticos diferentes, na década imediatamente após a independência eram os que não mereciam que se perdesse tempo com julgamentos. Também foi por serem descendentes dos portugueses, e como tal filhos de pais estrangeiros, em suma, brancos. Mas há os por serem de Cabinda, ou por serem do Norte, ou por serem do Sul, ou por serem mestiços, ou por serem da Lunda, há sempre uma desculpa, qualquer argumento serve para os governantes se libertarem de gente incómoda. E sempre os proscritos do estômago, porque em Angola não conseguem o pão para a boca, esses desde tempos imemoriais têm metido os pés a caminho e foram por esse mundo afora.
Os tempos de hoje não se distinguem em nada dos coloniais, são quiçá piores. Os senhores continuam arrogantes e ignorantes, vivem fechados nos seus domínios, aliás, em muitos casos o distanciamento deles para com o povo é bem maior do que antigamente. Basta lembrar o que os “ninja ao quadrado” faziam a Luanda quando o José Eduardo dos Santos resolvia ir dar uma volta. Os senhores quando estão doentes, ala para o estrangeiro que os hospitais e clínicas do país são para indigentes. Para ir às compras os menos abonados vão até à Avenida da Liberdade, em Lisboa, ao passo que os mais abonados vão até aos Champs Élysées em Paris. Haja dólares e euros. E sempre que podem investem na antiga potência colonial, moradias de preferência na Linha Estoril-Cascais, propriedades no Alto-Douro Vinhateiro, etc., etc., tudo “bon chic, bon gendre”. Copiam alegremente o que de pior tinha o regime colonial.
Não se preocupam em construir, na sua terra, edifícios, mormente hospitais, como os do tempo colonial (houve pra aí um hospital modernaço que começou a ruir ao fim de quatro anos), ou estradas duradouras. Ou em instalar um sistema de cantoneiros que providenciem a manutenção e o bom estado das vias de comunicação. Não! Governar bem dá trabalho, um tipo tem de suar muito e depois fica a cheirar mal. É preferível sacar umas boas comissões, alinhar numas construções ou reabilitações bem rápidas para que as respectivas inaugurações aconteçam a breve trecho, e ala para a “Tuga” mandar banga e gastar os “dividendos”, ou dedicarem-se empenhadamente a esquemas de lavagem de dinheiro.
E gostam de parangonas jornalísticas do tipo “PR ordena «resolução imediata» da electrificação, água e saneamento” de Luanda. Boa! Fazer isto nos musseques de Luanda vai ser espectacular. Como é? Terão de abrir ruas, avenidas e largos, num universo cheio de casas (palhotas, abrigos??) feitas em condições deficientes, sem espaçamento entre elas, onde vivem pessoas que têm as condições mais miseráveis de Luanda, que têm uns buracos onde fazem as suas necessidades e umas ruelas para ondem deitam os lixos, resíduos e necessidades. E vão fazer o quê? Varrer aquele povo todo para meter as condutas de água e saneamento? Ou será que estas vão ser elevadas como as linhas de electricidade? Bom com a água é possível, os musseques de Luanda irão ficar com uma ramada de fios eléctricos e condutas ou tubagens de água. Com o saneamento será impossível, além de caricato.
Então vai ser preciso mandar embora todo aquele pessoal para reduzir a densidade populacional e daí instalar as tais infra-estruturas. E quais vão ver os critérios de selecção dos felizardos que não sejam expulsos? Serão baseados no cartão do MPLA? Vai ser bonito, irão apenas conseguir levar a cabo um levantamento popular.
Não seria mais fácil preparar uma política de repovoamento do interior de Angola, tendo em atenção que a grande maioria dos habitantes das zonas degradadas de Luanda são refugiados da guerra civil e seus descendentes? Não basta construir centralidades à toa sem parques industriais próximos, zonas comerciais e escolares, vias de comunicação adequadas.
Ora estas conjecturas, que vieram em catadupa à minha mente, são verdade verdadinha, da responsabilidade final do Sedrick de Carvalho. Foi ele que me despertou este desânimo. Aliás, deve ter sido por ter acontecido algo semelhante a uma mente esclarecida de algum qualquer governante bondoso e informado de Angola, e que ficou negativamente afectada por tais ideais revolucionários, que o Sedrick de Carvalho e seus colegas tiveram o tratamento “exemplar” que receberam.
É que os jovens e não tão jovens, caso dos malfadados revus, que ingenuamente acham que se pode mudar Angola, sem ser pela via do MPLA, e se reúnem em grupos para discutir políticas e estratégias visando o bem comum e a melhoria do país, são perigosos meliantes e como tal merecedores de tratamento exemplar. E sejamos realistas, o Sedrick de Carvalho deve estar agradecido ao governo angolano por este o ter deixado, assim como à sua família, sair de Angola e se instalar em Portugal, deixando os angolanos “esclarecidos” seguir a sua vida pacífica sob a orientação esclarecedora do MPLA e seus próceres.
Haja pachorra!
(*) Aposentado. Ex docente universitário.