Fez como faziam outros colonos que por aqueles tempos antigos chegavam a uma terra, Angola, onde rareavam mulheres brancas em idade casadoira. “Amigou” com uma nativa, negra. Da vida em comum que viria a ser a sua nascem três filhas. O porvir de todas elas, mãe e filhas, é o que mais cuida de acautelar quando chega a hora de casar – um passo dado sem contar na sua primeira vinda à Metrópole, mais de vinte anos depois de ter partido. A honradez com que o fez António Gomes, o sujeito desta história, deve, porém, ter sido sui generis. A perenidade e a solidez dos laços que viriam a fundir num só o “lado mestiço” e o “lado branco” da família que constituiu, atestam isso.
Por Xavier de Figueiredo
A cidade do Huambo, à qual António Augusto Gomes chegou, em 1922, faz agora um século, ainda é uma pequena povoação. Não se podia esperar mais dos dez breves anos de existência que a urbe levava, desde que Norton de Matos a fundara, em 1912. Do nada. Ao mato e mais mato, que era o que que por ali havia antes, dera lugar uma espécie de mato arruado, aqui e ali pontilhado por umas dezenas de casas, quase todas de adobe ou pau-a-pique e muito dispersas entre si.
O “chamamento” que trouxe o recém-chegado até ali, é o mesmo (ou não é diferente) daquele que todos os anos, em vagas sucessivas, vai atirando milhares de portugueses “para fora”. Vão brigados a ir em busca de uma vida melhor do que aquela que a terra natal lhes oferece. Ter sido Angola o seu destino, numa altura em que o Brasil era o mais procurado, foi por influência de um primo, Francisco Correia, “estabelecido” no Cuma, perto do Huambo.
Os bons ares daquele Planalto, tão gabados nas cartas que o primo lhe escrevia, eram-no, na verdade. É a primeira boa impressão com que António Gomes fica ao chegar. Com o tempo, pouco tempo, também haveria de arranjar “colocação” – na CAPA (Companhia Agrícola e Pecuária de Angola). Trinta angolares, é o seu ordenado. E não tardará a ir arranjando amigos, seus companheiros “das cartas”. Aos poucos vai começando a sentir-se integrado.
O que fora vendo desde que chegara é que não conseguirá dar um outro passo que a moral e os costumes daquele tempo impõem a um homem da sua idade, que é o de “arranjar mulher” com quem partilhar a vida e constituir família. Entre a população local, na qual predominam os comerciantes, funcionários do Estado e empregados do CFB (Caminho de Ferro de Benguela) é notória a lacuna de “mulheres casadoiras”.
À falta de mulheres brancas, que a ciência, no estado de evolução que ainda é o seu, continuava a desaconselhar de rumar a África (mitos, crenças e superstições também concorriam para isso), António Gomes segue o caminho que naqueles tempos e naqueles lugares era corrente entre mancebos como ele: “amiga”, que era o mesmo que amancebar. No seu caso com uma nativa seis anos mais nova, de seu nome Ana Mateus.
“Amigar” não significava apenas viver em comunhão de mesa e habitação, mas também procriar. Maria Augusta, nascida em 1928, Dulce da Conceição (1933) e Cândida Leonor (1937), viriam a ser o fruto da união de António Gomes e Ana Mateus. Ao ensino primário, que todas concluíram na escola oficial de que era mestre o professor Magalhães, juntaram outras aptidões (os lavores femininos), destinadas a prepará-las para a vida. Usos e costumes do tempo.
Já haviam passado 24 anos sobre a data da sua chegada àquela terra, uma terra que cada vez mais fora sentindo como sua, até pelos “avanços” que a sua vida profissional sempre conhecera (era agora sócio-gerente de uma sociedade comercial com o seu próprio nome, António Augusto Gomes & Cia Lda), quando volta pela primeira vez à Metrópole. Traz por companhia a filha mais velha, Maria Augusta, de 16 anos.
Seu pai havia falecido por essa altura. A partilha com outros nove irmãos dos bens que o velhote deixara, por junto uma casinha e umas terras em Aguada de Baixo, sua terra natal, perto de Águeda, é a razão da inesperada viagem. De caminho aproveitaria para rever familiares e amigos de que estava afastado havia muito tempo.
Um casamento inesperado
Um desses amigos é Joaquim Mota, que nas vésperas da sua partida para a viagem de um mês rumo a Angola, o convidara a ir a sua casa para ver uma filha acabada de vir ao mundo. Maria Alice, nome da recém-nascida, tem agora 24 anos. “Mulher feita”, é como dela lhe fala outro amigo, Chico Ramalho, dono da tasca de Aguada de Baixo, que não se fica por aí: “É uma boa mulher para ti”, acrescenta.
António Gomes considera-se “bem amigado” com Ana Mateus. Mas à luz da cultura e dos costumes da época, amigar esgota-se nisso; não implica casar. Do propósito da sua vinda à Metrópole não fizera parte casar, mas em surgindo-lhe uma oportunidade, porque não a aproveitar? O normal na vida de um homem é casar! Depois, não lhe fora indiferente o entusiasmo com que Joaquim Mota havia encarado a possibilidade de lhe dar a mão da filha em casamento não podia ter sido maior.
Quando regressa a Angola já não leva por companhia apenas a filha, Maria Augusta. Vai também Maria Alice, tornada sua esposa em união matrimonial abençoada pela Santa Madre Igreja. Encorajada pelo pai a tomar “o africanista” por esposo, pressionada pela mãe, Emília Tavares, a não o fazer, Maria Alice acabaria por tomar o partido do pai. Em consequência disso a mãe não marca presença, nem na igreja, nem na boda.
O argumento mestre em que a mãe se apoia, o de que o pretendente é “um velho” de 46 anos e ela uma menina de 24, não a convencera. Como também não a demovera o facto de o noivo ter “vida constituída” com uma nativa de que tinha três filhas – as quais pretendia continuar a ter a seu cargo, como de pronto lhe fizera saber. Ele saberia como resolver esse passado da sua vida, honrando o juramento de fidelidade que lhe fizera. A amizade que fora fazendo com Ana Mateus é um bom prenúncio.
É em José de Almeida, seu sócio na António Augusto Gomes & Cia Lda, mas sobretudo seu amigo, que António Gomes pensa para resolver o problema que o seu casamento com Maria Alice iria criar a Ana Mateus. Pede-lhe que tome conta dela mas fazendo-lhe saber, numa carta que lhe escreve antes do embarque, que “as miúdas ficam comigo”. A alcunha “Sacalumbo” que José de Almeida tem entre os autóctones, quer dizer mal apresentado. Na falta de vinco das calças que veste ou no amarrotado das camisas, toda a gente vê “falta de mulher”.
Ao todo seis, iguais entre si
Às suas três filhas com Ana Mateus, António Gomes junta outros três filhos nos anos a seguir ao seu regresso ao Huambo, agora já ostentando o nome Nova Lisboa, conferido pelo Alto-Comissário, Vicente Ferreira. Na educação dos três filhos brancos de António e Alice, que toda a gente trata pelas alcunhas de Tony, Quinho e Pitorra, nunca pelos nomes próprios, que são Joaquim António, Francisco António e Emília Maria, o papel das suas três irmãs mestiças haveria de vir a revelar-se inestimável. Substituem a mãe natural, muito envolvida na vida do marido. Vêm daí os laços fraternais a que os seis ficaram ligados.
A boa estrela que vai iluminando os negócios de António Gomes, fazendo dele um homem próspero, é, no fundo, a razão de ser da presença de Maria Alice ao seu lado, repartindo com ele obrigações e responsabilidades. O auge dessa vida atingem-no eles quando em 1954, ao cabo de oito anos passados na Gandavira, a 50 Kms de Nova Lisboa, adquirem à firma “A. Lara & Irmãos” a casa em que estava instalada na parte baixa da cidade. É ali que vêm a inaugurar uma das casas melhor situada na cidade.
O negócio que monta com o seu amigo José de Almeida, pouco tempos depois da sua chegada ali, é o do abastecimento das chamadas “lojas do mato” – os antigos aviados, já eles quase todos “amigados” com mulheres negras a que se dedicavam (as amásias) e cujos filhos educavam tanto quanto as condições o permitiam. Ao volante do camião International K-11, adquirido para dar vazão ao negócio, vão de povoação em povoação (Cavinda, Sacachoco, Gandavira, Biangulo, Chimbenje, Calueio, Samboto, etc) ao encontro da clientela.
Se tivesse chegado aos tempos de hoje António Gomes haveria de lamentar-se de uma “falha” cometida por esses tempos. A de ter deixado caducar, por falta de pagamento ao Estado, uma licença de exploração de minérios na região do Samboto (Hungulo), que em nome da sua sociedade obtivera. Um alemão que se dizia descendente da velha aristocracia prussiana (ao seu nome Stromberg juntava o título de conde), afiançara-lhe, invocando a sua dupla condição de conhecedor da região e bom catador de minérios, no fundo um “nez”, que havia ali um filão de ouro.
O Samboto é, nestes tempos do presente, uma zona de intensa exploração de ouro. Os garimpeiros, na sua maioria oriundos de diferentes partes de África, desde malianos e congoleses, e também eles ali chegados em demanda de vida melhor, seguramente já teriam desmontado a tenda se o seu esforço não tivesse sido compensador. Eles e os chineses que com parceiros angolanos ali também foram parar. Estava certo o conde Stromberg – um dos muitos alemães do antigo Sudoeste Africano (a Namíbia actual) que depois da primeira guerra mundial passaram a Angola.
Um caminho antigo
O ano de 1970 é o da morte de António Gomes. Sucumbe a um acidente vascular cerebral. No mesmo dia do passamento, 4 de Março, “Sacalumbo”, o seu amigo e antigo sócio está internado na Casa de Saúde da Companhia Mineira do Lobito, em Nova Lisboa. Em Serpa Pinto, onde fazia já alguns anos passara a viver com a sua companheira, Ana Mateus, tinham-no aconselhado a procurar remédio para uns males de saúde que o atormentavam. Quando lhe levam a notícia do falecimento do amigo a sua reacção foi premonitória: “Se o Gomes morreu hoje, eu morro já a seguir”. Não falhou.
Ficaram ambos sepultados quase lado a lado (apenas uma campa a separar as suas) no cemitério de S. Pedro, em Nova Lisboa. À sua sociedade nos negócios, à partilha de uma mesma companheira, cada um no seu devido tempo, e ao muito que na vida de ambos houvera em comum, faltava juntar a coincidência temporal da morte e a vizinhança em que os seus cadáveres ficaram.
Em 1969, talvez pressentindo que não iria durar muito mais, “Sacalumbo” fez testamento no Cartório Notarial de Sá da Bandeira. À falta de descendentes naturais (da sua ligação a Ana Mateus não houvera descendência), deixa como únicas e universais herdeiras do seu património as duas filhas mais novas de António Gomes e da sua agora companheira – Dulce da Conceição e Cândia Leonor, que com ambos haviam passado a viver, a ele tratando-o por “padrinho”. Maria Augusta, a terceira, essa tinha seguido outro caminho: casara com o comerciante Manuel Costa, da Cateua.
Com a turbulenta descolonização em que Angola entrou por via da revolução do 25 de Abril, Maria Alice, a viúva de António Gomes regressa à Metrópole. A casa em que vive com os três filhos do finado marido, é entregue a Ana Mateus, entretanto regressada de Serpa Pinto. Em 1980, abatida pelas desventuras que vai vendo abater-se sobre Angola, incluindo uma impiedosa guerra civil, Ana Mateus toma o caminho de Portugal, onde já estão as filhas, Cândida e Dulce, com as quais vive alternadamente. Volta não volta Maria Alice vai visitá-la.
Tinha 109 anos quando faleceu no Lar de S. João do Estoril, em 2015. Entre os que lhe velam o corpo só não estão Maria Alice, falecida em 1996, em Aguada de Baixo, e um dos três filhos brancos do seu primeiro companheiro, Toni, que vive no Brasil, onde se refugiara nos conturbados anos de 1975. Ali, presentes, choram-na as suas filhas naturais, Augusta, Dulce e Cândida, mais os seus “afilhados”, como lhes chamava, Quinho e Pitorra.
Os laços que a vida forjara entre todos, juntando-os uns aos outros, nas suas diferentes origens e nos seus diferentes percursos, perduram até hoje. Maria Augusta, falecida em Coimbra, há dois anos, já deixou de fazer parte dos sobrevivos. Mas Dulce, nos seus 88 anos (vive no Alcoitão) e Cândida (83, Porto Salvo), Quinho (73; Coimbra) e Pitorra (67, Mafra) falam-se amiúde, assim como também não passa muito tempo que não se vejam. Assim continuando a fazer um caminho antigo.
Legendas:
Foto 1 – António Augusto Gomes, em 1951, com os seus seis filhos – três mestiços e três brancos. Presente, também, sua esposa, Maria Alice.
Foto 2 – Perspectiva da recém-criada cidade do Huambo à data da chegada ali, há cem anos, de António Augusto Gomes. A casa comercial, à esquerda, viria a ser adquirida por ele em resultado da prosperidade que a sua vida conheceu.
Fotos 3 e 4 – Ana Mateus, ainda jovem. Ao tempo em que foi a companheira de António Augusto Gomes (relação da qual nasceram três filhas) e, em 2011, já no final da sua vida, num lar em Cascais.