COINCIDÊNCIAS NÃO ME CONVENCEM

O Presidente da República, João Lourenço, expressou pesar pela morte do General Abreu Muhengo Ukwachitembo ‘Kamorteiro’, lembrando que o seu nome fica “para sempre indelevelmente ligado ao fim definitivo do conflito militar em Angola”. Gostava de acreditar na sinceridade do “pesar”, mas não acredito.

Por Orlando Castro

O general “Kamorteiro” que desempenhava actualmente o cargo de Chefe do Estado Maior General Adjunto das Forças Armadas Angolanas, e tudo indicava seria o próximo Chefe do Estado Maior General, foi um dos signatários dos Acordos de Paz para Angola, a 4 de Abril de 2002, em nome da UNITA.

A partir dessa altura, foi enquadrado em cargos de chefia nas Forças Armadas Angolanas, desenvolveu uma acção meritória a favor da pacificação e desenvolvimento do país.

“Nesta hora de dor, desejo expressar à família enlutada as minhas profundas condolências, extensivas a todos seus amigos e companheiros de luta”, termina a mensagem de João Lourenço, partilhada na sua página oficial do Facebook.

Quando no dia 4 de Abril de 2002 o mundo viu Armando da Cruz Neto, das Forças Armadas Angolanas, e Abreu Muhengo “Kamorteiro”, das FALA (UNITA), assinarem, na Assembleia Nacional, o Memorando do Luena Complementar ao Protocolo de Lusaka, pensou-se que a Primavera chegara, finalmente, a Angola.

Vinte anos depois o mundo continua a olhar para o lado e a assobiar, bastando-lhe – por enquanto – que as armas se tenham calado. Do ponto de vista do tão sacrificado Povo angolano, resta a certeza de sentir o silêncio ensurdecedor de uma paz social que tarda em chegar.

Segundo o padre Benedito Kapiñala, “Angola só terá paz se todos os angolanos se sentirem realizados”. Tem razão. Mas essa é uma guerra que está longe, muito longe, de ser vencida. Esse deveria ter sido o desiderato primeiro do acordo de há 20 anos. Mas não foi. Os poucos que sempre tiveram milhões continuam, impávidos e serenos, a ter mais milhões, e os milhões que tinham pouco ou nada continuam a ter cada vez menos.

“Agora é preciso concretizar com maior rapidez possível tudo o que se prometeu ao povo”, afirmou há vários anos o padre católico Benedito Kapiñala, certamente com vontade de ir pregar para os bagres do rio Queve, já que os homens do regime não estavam, como continuam a não estar, receptivos a ouvir os gemidos da verdade.

E embora a Primavera tenha desertado para parte incerta, há cada vez mais gente a lutar para que ela regresse, mesmo sabendo que quem tal defende está a assinar o sua própria certidão de óbito.

Parafraseando Mahatma Gandhi, é certo que o regime bate, tortura e mata. Mas é igualmente certo que nem a dor, nem a morte, garantem aos seus executores a obediência dos escravos.

“Roubava-se indiscriminadamente, espoliando o erário público, remetendo a maior parte da população para uma miséria que se perpetua até os dias de hoje e que se reflecte nos mais variados tentáculos da nossa sociedade. Nas artes na cultura, na educação, na saúde, na habitação. Matávamos indiscriminadamente e o assassino era simplesmente Jonas Savimbi. Fosse o que fosse que acontecia, a culpa era sempre de Savimbi”, afirmo também há vários anos o artista Fridolim Kamolakamue, recordando que agora, apesar de já não existir o bode expiatório, “tudo continua na mesma… ou pior”.

Este poeta e compositor angolano disse igualmente que os governantes “perderam a vergonha de mentir indiscriminadamente, inescrupulosamente, perderam vergonha até de ter vergonha”, exemplificando que “o lixo em Angola começa exactamente no aeroporto internacional e nós perdemos vergonha de confundir o lixo com o luxo”. Isto, denuncia, numa altura em que “o governo de Angola investe milhões de dólares no branqueamento da sua imagem no ocidente”.

Para Fridolim, se essas somas de dinheiro fossem investidos na resolução dos necessidades básicas da população, Angola estaria numa outra posição. Critica, por isso, a concentração da riqueza em apenas algumas famílias, em detrimento da esmagadora maioria do povo, a quem se promete apenas o futuro.

”Não podemos ir a uma bomba de combustível da Sonangol pedir combustível, dando como garantia o futuro. Não podemos chegar ao hospital e pedir uma injecção de penicilina, dizendo que não temos dinheiro, só temos futuro”, dizia Fridolim Kamolakamue.

Por isso, afirmava o poeta, a paz que interessa ao povo é aquela que se traduza na melhoria das condições sociais dos cidadãos, com boas escolas, melhor assistência médica e medicamentosa, boas estradas.

“Arrumei toda a paz, meti numa pasta para devolvê-la ao senhor presidente. Não quero mais a sua paz pobre, eu preciso é de pão, eu preciso de escola, de saúde, energia, verdadeiras estradas, água potável”, acrescentava.

Também a oposição se juntava ao coro de protestos, à tal pregação para os bagres do Queve. Alberto Ngalanela, então secretário da UNITA em Benguela, entendia que a real condição social e económica dos angolanos contrasta com o propalado desenvolvimento defendido pelo poder em Luanda, onde uma minoria instalada acumulou nos últimos onze anos riqueza, instituiu a corrupção, subverteu a democracia e se transformou numa grande burguesia.

“Acumularam riqueza dentro e fora do país e vivem como autênticos príncipes, enquanto a esmagadora maioria vive em condições lamentáveis, regredindo de pobres para miseráveis”, constatava Alberto Ngalanela.

O politico acusava ainda os membros do executivo de terem instalado a imoralidade e o esquema desonesto de cabritismo, que se vão transformando numa cultura, onde as pessoas começam a ter medo de mudanças, sob pena de perderem facilidades de roubos, desvios e açambarcamento.

Segundo Alberto Ngalanela, a maioria da população que vivia (e vive) fora desses esquemas sobrevive reduzida apenas a uma refeição por dia, se conseguir vender alguma mercadoria ou a sua força de trabalho.

“São essas diferenças sociais abismais que dividem os angolanos na forma de sentir na pele e na alma os benefícios da paz”, conclui Alberto Ngalanela.

O general “Kamorteiro” sempre que falava do processo de paz destacava o facto de terem sido somente os angolanos a discutirem e a definirem qual seria o rumo a seguir.

Recordo-me de, numa numa palestra em Luanda sobre o 4 de Abril de 2002, “Kamorteiro” considerar que o fim da guerra em Angola foi uma “obra acabada sem interferência externa” e que devia servir de modelo de inspiração para outros países em situação de conflito.

Perante um auditório constituído por oficiais superiores e subalternos, agentes, cadetes e trabalhadores civis da Polícia Nacional, o general “Kamorteiro” lembrou que desde 15 de Março, dia em que começaram as conversações entre as delegações do Governo e da UNITA, até à data da assinatura do acordo de paz, foi observado um “estrito rigor” quanto à inadmissibilidade de qualquer interferência externa. “Fomos apenas nós, desejosos de acabar com aquilo, sem humilhações e sem vencedores nem vencidos. Quem venceu foi Angola e os angolanos. Isso foi determinante para o desfecho do processo”, assinalou.

Tal como dispunha o Protocolo de Lusaka, que o Memorando do Luena veio complementar, o aquartelamento e incorporação nas FAA dos ex-militares da UNITA seriam acompanhados por países observadores, mas as questões políticas que “constituíam a essência das contradições antagónicas entre os angolanos durante décadas”, foram tratadas de “forma cautelosa, sigilosa e exclusivamente por patriotas angolanos”, frisou o general “Kamorteiro”.

“Temos muito orgulho em fazer parte de um processo de paz verdadeiramente genuíno, e que é referenciado no mundo inteiro. É um caso sui generis e devia constituir um modelo a seguir em situações de conflito quer em África quer em outras partes do mundo”, afirmava “Kamorteiro”.

Legenda: Dois dos mais ilustres militares angolanos. Os generais “Kamorteiro” e Numa.

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