O investigador Fernando Jorge Cardoso defende que, “a muito curto prazo”, os países africanos (no caso dos lusófonos o destaque vai para os dois que são governados pelos mesmos partidos desde a independência, Angola e Moçambique) que não se pronunciaram sobre a invasão da Ucrânia na ONU irão tomar posição contra a Rússia, porque “vão entrar em causa os interesses”.
“A muito curto prazo, vão ter de se definir posicionamentos em termos das organizações multilaterais, em particular nas Nações Unidas, e aí o número de abstenções vai ser menor porque aí vão entrar em causa os interesses. Agora foram mais as narrativas”, disse o especialista em temas africanos em declarações à Lusa.
A Rússia lançou na madrugada de 24 de Fevereiro uma ofensiva militar na Ucrânia, que já matou mais de 2.000 civis, incluindo crianças, e já provocou mais de um milhão de refugiados.
Poucos países africanos condenaram oficialmente a guerra, ao contrário do Ocidente, que reagiu com veemência, sanções, pedidos de investigações sobre crimes de guerra e ameaças de fazer parar a economia russa.
Apenas 28 dos 54 Estados do continente aprovaram, na quarta-feira, uma resolução da Assembleia-Geral da ONU que condena a invasão e exige a retirada imediata das tropas russas, enquanto a Eritreia votou contra, 16 abstiveram-se (Argélia, Angola, Burundi, República Centro-Africana, República do Congo, Madagáscar, Mali, Moçambique, Namíbia, Senegal, África do Sul, Sudão do Sul, Sudão, Uganda, Tanzânia e Zimbabué) e nove (Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Burkina Faso, Essuatíni, Etiópia, Guiné-Conacri, Marrocos, Camarões e Togo) não participaram na votação.
Para Fernando Jorge Cardoso, investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, estas votações mostram que África não é a Europa e a União Africana não é a União Europeia.
“Ou seja, o posicionamento dos Estados africanos é muito mais diverso e muito menos alinhado entre si” do que entre os Estados europeus e “os próprios Estados africanos vacilam um pouco sobre que posição devem tomar”.
Mostram também que “ainda está muito presente nas narrativas e nas próprias cabeças de muitas lideranças africanas o processo de descolonização”, em que a antiga União Soviética e os outros países que faziam parte do bloco apoiaram alguns dos movimentos de libertação nacional.
“Em muitas lideranças africanas existe esta ligação directa que é feita entre apoio à descolonização da África, a União Soviética e depois entre União Soviética e Rússia”, disse, ressalvando, no entanto, que o próprio Presidente Vladimir Putin já deixou clara a diferença entre Rússia e União Soviética, ao responsabilizar o líder soviético Lenine pela criação da República da Ucrânia em 1922.
Para o especialista em relações internacionais, a abstenção “não foi uma posição pró-russa, mas uma posição de abstenção”: “Não queremos hostilizar a União Europeia, que é o principal doador (…), mas em simultâneo, não queremos criar problemas com a Rússia”.
Ou seja, ao absterem-se de condenar o agressor, esses países condenam o agredido.
No entanto, Fernando Jorge Cardoso acredita que, com o agudizar da situação na Ucrânia, quando a Rússia ganhar a guerra e impuser um regime fantoche em Kiev, quando os Estados Unidos e a União Europeia não aceitarem e as tensões aumentarem, “cada uma das partes vai estar com muito mais atenção sobre o posicionamento de terceiras partes” e os dirigentes europeus irão forçar os Estados africanos a optar.
“Aí entram os interesses em jogo” e, para a maioria dos países africanos, defendeu o analista, os interesses “são muito fáceis de clarificar”.
“Não sobra a mínima dúvida de que aí haverá um posicionamento muito maior a favor da Europa, porque aquilo que os russos têm a oferecer a África é petróleo e armas. Ponto final, mais nada. Enquanto o conjunto das economias europeias tem a oferecer a África tudo aquilo de que África poderia necessitar”, sublinhou.
Fernando Jorge Cardoso excluiu desta equação “alguns países em que houve golpes de Estado, Estados que se abstiveram”, como o Mali, o Burkina Faso, o Sudão ou a República Centro-Africana, e que poderão continuar a não votar porque estão interessados no apoio do grupo de mercenários russos Wagner.
Mas, excluindo essa “meia dúzia de países, o investigador concluiu que, “numa próxima votação”, se poderá “ver claramente o que é que significaram estas abstenções. Se foram abstenções de circunstância ou de convicção”.
“E eu acho que foram de circunstância”, rematou.
Rússia e a (re)conquista de África
Enquanto a Europa aposta na ajuda ao desenvolvimento de África, a Rússia baseia-se na venda de armas e envio de “conselheiros” ou mercenários, com Moscovo a competir com a Europa e a China para o papel de principal parceiro do continente africano.
De acordo com um artigo da agência France-Presse, o destaque da crescente presença da Rússia em África surgiu no dia 30 de Julho de 2018, com o assassinato de três jornalistas russos na República Centro-Africana, que investigavam a presença do grupo de mercenários russos Wagner no país.
Segundo o artigo, desde o início de 2018, a Rússia terá enviado vários oficiais militares e centenas de “instrutores” civis – que alguns especialistas acreditam ser mercenários do grupo Wagner -, entregado armas ao exército nacional após uma isenção ao embargo da Organização das Nações Unidas (ONU) e assegurado a segurança do Presidente centro-africano, Faustin-Archange Touadéra, cujo conselheiro de segurança é (claro!) de nacionalidade russa.
A entrega de armas aos Camarões para a luta contra o grupo ‘jihadista’ Boko Haram, as parcerias militares com a República Democrática do Congo (RD Congo), Burkina Faso, Uganda e Angola, as cooperações num programa de energia nuclear civil com o Sudão, na indústria mineira no Zimbabué ou no alumínio da Guiné, representam algumas das iniciativas de Moscovo nos últimos anos. Segundo a AFP, esta é uma tendência crescente.
A Rússia tem também diversificado as suas parcerias africanas, expandindo as relações para além das nações com quem tem ligações históricas – como Argélia, Marrocos, Egipto e África do Sul – e procurou aliados na África subsaariana, onde estava “virtualmente ausente”.
“África continua a ser uma das últimas prioridades na política externa da Rússia, mas a sua importância tem vindo a crescer”, de acordo com o historiador Dmitry Bondarenko, membro da Academia Russa de Ciências.
A URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) manteve, durante décadas, uma presença activa no continente. Agora, com outro nome, mantêm-se os objectivos: sacar o máximo e perder o mínimo. Parafraseando Vladimir Putin que no caso ucraniano fala de “desnazificação”, em África a Rússia pretende “desafricanizar” o Continente, fazendo um bom negócio, desde logo porque a carne para canhão é negra e as riquezas africanas são inesgotáveis.
A medida representava uma das armas na guerra ideológica contra o Ocidente, apoiando os movimentos de libertação africanos e, após a descolonização, enviava milhares de conselheiros e mercenários.
Com a desintegração da URSS, as dificuldades económicas e as lutas internas na Rússia durante os anos 1990, Moscovo abandonou as suas posições em África.
Face à falta de fundos, aumentou o número de embaixadas e consulados encerrados, diminuíram o número de programas e as relações atenuaram.
Foi apenas no novo milénio que o Kremlin começou a reavivar as suas antigas redes e regressou gradualmente a África, procurando novos parceiros à medida que a ideologia era substituída por contratos e pela venda de armas. E, também, à medida em que os “velhos” comunistas se rendiam às benesses do capitalismo, selvagem ou não.
Em 2006, o Presidente Vladimir Putin viajou até à Argélia, África do Sul e Marrocos para assinar contratos, algo que o seu sucessor, Dmitri Medvedev, estendeu a outros países – Egipto, Angola, Namíbia e Nigéria -, três anos mais tarde.
Em Março de 2018, o chefe da diplomacia russa, Serguei Lavrov, visitou cinco países africanos, enquanto representantes de várias nações do continente estiveram presentes no Fórum Económico de São Petersburgo.
Se a Rússia encontrar interesse económico, permite aos países africanos “ter mais um parceiro, o que significa outro canal de investimentos e desenvolvimento, e o apoio de um país poderoso no cenário internacional”, declarou o analista russo e antigo embaixador em vários países africanos, Evgeni Korendiassov, citado pela AFP.
A Rússia, que não tem um passado colonial em África, espera apresentar-se como uma alternativa para os países africanos face aos europeus e à China.
A AFP considera a República Centro-Africana um “excelente exemplo”, dado que este país nunca esteve perto da URSS durante a Guerra Fria e agora volta-se para a Rússia para fortalecer as suas forças militares, com dificuldades em enfrentar os grupos armados.
“Desde 2014 e da anexação da Crimeia, a Rússia tem confrontado o Ocidente e declarado abertamente a sua vontade de se tornar novamente uma potência mundial. Não pode, portanto, ignorar uma região”, apontou Bondarenko. Segundo ele, Moscovo está interessado em África não por razões económicas ou humanitárias, mas para “um avanço político”.
“Anteriormente, os países com quem o Ocidente não queria cooperar, como o Sudão ou o Zimbabué, só podiam recorrer à China. A Rússia passou a ser uma alternativa tangível”, acentuou, antes de concluir que “este não era o caso antes, e isso pode mudar significativamente a ordem geopolítica do continente”.
Africanos… descartáveis
De uma forma geral e desde sempre os africanos foram (e continuam a ser) instrumentos descartáveis nas mãos das grandes potências, coloniais ou não. Ontem uns, hoje outros. Entre escravos, carne para canhão e voluntários devidamente amarrados, foram e são um pouco de tudo. Muitas vezes foram tudo ao mesmo tempo. Na I Guerra Mundial deram (pudera!) o corpo às balas, a alma ao Diabo e a dignidade às valas comuns.
Nesse conflito alheio, mais de um milhão estiveram na frente de combate, morreram mais de 100 mil. Alguém se recorda hoje deles, ou os recorda, com a dignidade histórica que merecem?
Se ser soldado desconhecido é só por si um drama, ser um soldado desconhecido… africano (preto, entenda-se) é obra desenganada. Infelizmente.
De uma forma geral, mais de 100 anos depois continua a ser verificado, os africanos são um povo (lato sensu) ingénuo que, mesmo depois de ter poder de decisão, acredita em milagres, sobretudo quando estes não são feitos por santos da casa. Não admira, por isso que muitos dos seus dirigentes da época (tal como os de hoje) “esperavam que a sua participação, em pé de igualdade com os seus companheiros de armas europeus e americanos, numa guerra que não lhes dizia respeito, mas que lhes foi imposta”, lhes trouxesse “melhorias constitucionais, económicas e sociais nos seus territórios de origem” (salienta Eugénio Costa Almeida no seu livro: “África Colonial no Centenário da Guerra de 1914/1918”).
Enganaram-se. O máximo que conseguiram como reconhecimento ao seu esforço e dedicação foi mudarem de donos. Ficou, contudo, a semente da rebelião que germinaria no deserto de injustiças que os europeus foram, do alto da sua suposta superioridade, regando a suposta superioridade que levou os europeus a pensarem que, regando essa semente, acabariam por a afogar. É claro que, mesmo no próprio continente africano, muita dessa rega foi feita com sangue e não com água. Denominador comum em todas as guerras em África entre africanos: a ambição das grandes potências (Europa, EUA e Rússia, China) em dominar as riquezas autóctones.
Em Angola (tal como noutras colónias), as consequências, o acerto de contas, surgiram meio século depois, contra as potências coloniais. Embora banidas pelo uso da razão da força conseguiram que a força da razão se mantivesse viva e, com a ajuda dos europeus africanos, gerasse um imparável nacionalismo.
A tudo isto acresce a megalómana tese de que a História só é válida quando são europeus, norte-americanos ou russos, a contá-la. Daí a tendência de, por regra, esquecer o contributo da participação de africanos. Até mesmo nos meios académicos, supostamente mais equidistantes de interesses rácicos, os africanos eram (ainda são) vistos como seres menores, auxiliares, sem direito a figurar como combatentes em pé de igualdade com os europeus juntos dos quais mataram e morrem por, corrobore-se, uma causa que não era sua.
Ao longo dos tempos, milhares de africanos morreram para ajudar os europeus. Quantos europeus morreram para ajudar os africanos? Pois. Essa é outra história da nossa História comum.
Folha 8 com Lusa
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