A corrupção em Angola está (o Jornal de Angola diz “estava”) instalada nos órgãos da Administração Central do Estado, no aparelho judicial, governos provinciais, administrações locais e órgãos de defesa e segurança, tendo, ao longo do tempo, criado ramificações e estrutura própria, com hierarquia e voz de comando.
A constatação está expressa num relatório que serviu de base ao debate, deste mês, no Parlamento, de iniciativa do grupo parlamentar do MPLA e cujo tema foi “O combate à impunidade como factor para a boa governação”. A título complementar, recorde-se que o Poder absoluto está há 45 anos nas mãos do MPLA.
“A corrupção que se tornou endémica passou a fazer parte da agenda de procedimento do funcionamento público”, refere o relatório da Assembleia Nacional, apresentado pelo deputado Paulo de Carvalho (do MPLA), para quem é impossível haver boa governação no país com uma função pública que não cumpre as normas éticas e a deontologia profissional.
Paulo de Carvalho, que no Parlamento substituiu Tchizé dos Santos, lembrou que a Constituição da República prevê uma série de princípios relacionados com a boa governação, direitos de cidadania e combate à corrupção. O parlamentar recordou, também, que Angola esteve sempre no grupo de países mais corruptos do mundo, referindo que, em 2019, foram registadas “melhorias consideráveis” em termos de combate à corrupção e impunidade, segundo dados elaborados pela Transparência Internacional. É claro que tudo isto nasceu, cresceu, medrou e tornou-se imparável porque o país sempre foi governado pelo MPLA, partido que tem o recorde de maior número de corruptos por metro quadrado.
Dados da Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal e do Serviço Nacional de Recuperação de Activos da Procuradoria-Geral da República referidos no documento apontam que, desde Janeiro de 2019, foram registados 45 processos com pedidos de devolução de perto de 730 mil milhões de kwanzas e de 4,1 mil milhões de dólares, ilicitamente retirados dos cofres do Estado. Em processos cíveis foram recuperados 15,6 mil milhões de kwanzas, 313,1 milhões de dólares e 9,6 milhões de euros.
Em relação às infracções cometidas em todo país, ligadas ao branqueamento de capitais, o documento refere que, de 2018 a 2019, o número de processos-crime instruídos aumentou em 1.253 por cento, os remetidos em juízo em 1.208 por cento, e condenados em 517 por cento. Foram, ainda, neste quadro, apreendidos 10,5 mil milhões de kwanzas e 13.101 dólares, além de três viaturas, um gerador e cabos eléctricos (e, quiçá, alguns cangulos). Nos primeiros meses do ano passado, há o registo da apreensão de 107,8 milhões de kwanzas. O número de processos de inquérito diminuiu em 79 por cento, de 2018 a 2019, mas aumentou em 926 por cento de 2019 para os primeiros cinco meses de 2020, refere o relatório, lembrando que o combate à corrupção e impunidade direccionados para todas as franjas sociais e instituições deve contar com o envolvimento de toda a sociedade, se calhar até com o exemplo daqueles que reconhecem que viram roubar, que ajudaram a roubar, que beneficiaram dos roubos mas que – é claro – não são ladrões.
Antes do início do debate, a vice-presidente do MPLA, Luísa Damião, teve uma palavra de apreço e reconhecimento aos jornalistas e sociedade civil, pela contribuição na investigação de denúncias. Jornalistas que, relembre-se, até fizeram denúncias nos tempos em que Luísa Damião andava de joelhos a bajular o seu então patrão, José Eduardo dos Santos.
A vice do MPLA destacou, igualmente, o empenho dos órgãos da administração da Justiça no combate à impunidade e à corrupção no país, mostrando que para ela ter a porta aberta ou ter a Berta à porta é a mesma coisa.
“O combate à corrupção e impunidade é hoje uma realidade insofismável”, afirmou a dirigente do MPLA (tal como afirmou reverencialmente nos tempos de Eduardo dos Santos), que disse que o partido conta com apoio de toda a sociedade e da comunidade internacional, sobretudo das instituições financeiras e de protecção dos direitos humanos no combate daqueles fenómenos que emperram o funcionamento das instituições e o crescimento sustentável do país.
Luísa Damião saudou o grupo parlamentar do seu partido por trazer a debate um tema que considerou “pertinente e actual”, apelando à justiça e imparcialidade. A dirigente do MPLA referiu-se às reformas políticas e económicas desencadeadas pelo MPLA, informando que “já foram dados passos para que o combate à impunidade e à corrupção saiam da retórica para a prática”.
Luísa Damião disse que, no plano da luta contra a impunidade, registaram-se 1.522 processos relacionados com a criminalidade económica e financeira e patrimonial. No balanço apresentado no final do ano pelo PGR, acrescentou, surgem dados animadores, com a apreensão e arresto de bens móveis e imóveis, avaliados em 4,2 mil milhões de dólares. Até 31 de Dezembro, revelou, o Serviço Nacional de Recuperação de Activos solicitou às congéneres de vários países a apreensão ou arresto de bens e dinheiro no valor de mais de 5,4 mil milhões de dólares.
Benedito Daniel, do PRS, defendeu o conhecimento das causas concretas dos fenómenos da impunidade e corrupção no país, para que se possam indicar medidas preventivas para o seu combate. O deputado considerou que não houve justiça independente e imparcial capaz de promover a igualdade de todos perante a lei, o que levou os governantes a aproveitarem-se do contexto para extraírem benefícios à custa dos governados. Ou o MPLA não fosse Angola e Angola não fosse (d)o MPLA.
Lucas Ngonda, da FNLA, referiu tratar-se de um tema que encerra toda a problemática do disfuncionamento do sistema social e financeiro, causa de muitas situações que redundaram em crimes de todo o tipo, cujos “actores permaneceram impunes e intocáveis por ocuparem cargos no aparelho do Estado”. O parlamentar defendeu “o correcto funcionamento das instituições de justiça no país, sobretudo para beneficiar os muitos cidadãos que sofrem devido à condição social e não têm onde pedir socorro judicial”.
O ex-secretário-geral do MPLA, Álvaro de Boavida Neto, reconheceu que, no passado (desde 1975), houve mortes, saques e destruição do património público, mas referiu que nesta altura “não interessa quem o fez e quais foram as motivações. O importante, disse o deputado, é que tudo isso está registado na memória colectiva dos angolanos. Todos juntos fizemos muito mal às nossas populações. Só a generalidade heróica do povo angolano pode ser a solução para o bem da nossa Mãe Pátria”, afirmou.
O político sublinhou que, “em determinada etapa da História do país, o anormal passou a ser normal e o imoral era uma pandemia, mas uma minoria com força no poder político dizia às populações que tudo era normal e moral”.
“Clamemos por misericórdia ao nosso povo por não termos sido justos para com ele. Não usemos a fragilidade e entusiasmo juvenil para semear e alimentar o ódio que fará germinar sangue e muito mais mortes”, disse. Boavida Neto afirmou que “o país precisa de difundir a misericórdia para receber o perdão, mas com humildade”. Agostinho Neto está perdoado, Eduardo dos Santos também, João Lourenço igualmente? Assim seja. Afinal o crime compensa…
Alcides Sakala, do grupo parlamentar da UNITA, considerou oportuno o debate, salientando que o mesmo pode contribuir para se perceber, não só as implicações, mas, também, as causas mais profundas da impunidade no país, um factor gerador de desigualdades e injustiças sociais. O deputado considerou a impunidade no país como sistémica, salientando que radica nos fundamentos do sistema de partido único implantado em Angola logo depois da proclamação da Independência Nacional, em Novembro de 1975. Hoje, diga-se, Angola já não vive tempos de partido único, tendo evoluído para tempos de único partido.
“A impunidade floresceu no seio da superstrutura do sistema monopartidário, enriqueceu de forma ilícita uma minoria de angolanos e criou, durante décadas, forte tentáculos no exterior e cumplicidades internas na base de interesses pessoais”, referiu. Para Alcides Sakala, a recusa da criação de comissões parlamentares de inquérito para auditar as contas da Sonangol (a galinha dos ovos de ouro do MPLA), bem como a necessidade de os deputados fiscalizarem os actos de governação, constituem os exemplos mais palpáveis da falta de vontade política de quem governa (o MPLA) para acabar com a impunidade e corrupção no país.
O deputado Justino Pinto de Andrade, da CASA-CE, considerou que o estado actual do país é sobretudo consequência das criminosas políticas económicas e sociais implementadas pelo MPLA, fruto das opções ideológicas que conduziram ao empobrecimento quase absoluto dos angolanos.
“Não é justo dizer-se que tudo isso decorreu no contexto da guerra e do conflito interno, mas sim o resultado de uma opção ideológica que transformou o capital privado nacional em inimigo do povo”, afirmou. Ainda assim, o político defendeu mais respeito e solidariedade ao ex-Chefe de Estado por parte dos seus companheiros de percurso, sobretudo dos dirigentes que estavam muito próximo dele e que enriqueceram à custa dele. “Quem tirou bom proveito da política que José Eduardo dos Santos implementou foram, precisamente, os dirigentes do seu partido”, sustentou. Sendo que o exemplo mais emblemático é o do general e ex-ministro… João Lourenço.
A acumulação primitiva de capital foi legitimada pelo MPLA, insistiu o também presidente do Bloco Democrático, acrescentando que, por isso, “deve assumir a total responsabilidade dos descalabros económicos e financeiros do país”. Justino Pinto de Andrade disse que se o MPLA quiser, realmente, “virar, mais uma vez, a página” deve assumir o seu passado – onde até pode valorizar os seus feitos positivos – e, com coragem, reconhecer os erros cometidos. “Criminalizem-se apenas as práticas que violaram a lei e não busquem vítimas de uma forma selectiva e discriminatória”, exortou.
Folha 8 com Jornal de Angola