O coordenador do Observatório Político e Social de Angola (OPSA), Sérgio Calundungo, assinalou hoje retrocessos nos quatro anos de mandato do Presidente angolano, João Lourenço, mas considerou injusto que se diga que a actual governação está pior que a anterior. “Em defesa de um Estado genuinamente democrático e de Direito” é o título de uma petição pública, dirigida à Presidência de Angola, Tribunal Constitucional, PGR, Nações Unidas, União Europeia, União Africana e cujo primeiro subscritor é padre Jacinto Pio Wacussanga.
Sérgio Calundungo fazia, em declarações à agência Lusa, o balanço dos quatro anos da eleição (não nominal) do chefe de Estado angolano, que hoje se assinala.
“Acho que nestes quatro anos, se dividirmos em várias etapas, João Lourenço tão logo subiu ao poder trouxe consigo uma grande réstia de esperança”, referiu, sublinhando que João Lourenço começou por reconhecer “que havia graves casos de corrupção, de nepotismo, de abuso de poder”.
De acordo com o coordenador da OPSA, além de ter reconhecido essas situações, foi importante o compromisso com toda a sociedade para combater estas questões.
“Isso levantou a esperança, porque era um dos males que o país enfrentava no passado e enfrenta agora, mas naquela altura, antes de João Lourenço subir ao poder, as pessoas ligadas ao MPLA (partido no Poder há quase 46 anos) e ao ex-Presidente da República, José Eduardo dos Santos, não reconheciam publicamente que isto estava a ocorrer no país. O desespero era maior, porque ninguém faz correcção de algo que não reconhece”, disse.
A demonstração de uma certa abertura para o diálogo, com empresários, sociedade civil, inclusive com os sectores mais críticos, com as forças políticas que estão na oposição e a promoção de uma certa abertura aos órgãos de comunicação social foram também conquistas iniciais de João Lourenço apontadas por Sérgio Calundungo, mas em que considera agora haver um retrocesso.
Do ponto de vista económico e social, o coordenador da OPSA lembrou que o país estava numa situação de crescimento negativo, com uma crise económica muito forte, agravada por todo o problema da Covid-19.
“Se, do ponto de vista dos direitos civis e políticos, no início o Presidente faz umas aberturas e o país vai no sentido positivo, aumenta a esperança, do ponto de vista económico e social, o país só foi regredindo. Muitos dos problemas são derivados dos pesados legados que ele herdou do anterior Presidente”, de quem foi ministro e que foi quem o escolheu e impôs, “de circunstâncias como o preço do barril de petróleo ou a crise da Covid. Mas há outros resultados do fracasso das decisões políticas que foi tomando”, disse.
Para Sérgio Calundungo, que é membro do Conselho Económico e Social do Presidente João Lourenço, “até hoje não soube lidar bem com alguns desafios”, como a definição de prioridades de investimento, considerando que, “em plena crise económica há gastos públicos que não se justificam”, como o metro de superfície ou o Bairro dos Ministérios, e que também “em medidas de natureza social o Presidente falhou”.
“Eu acho que ele não tem as melhores opções, nem as melhores equipas, nem tem tomado as melhores decisões para debelar ou enfrentar o difícil momento económico e social que o país atravessa”, acrescentou o economista.
“A situação económica e social não melhorou e aquilo que tinha melhorado, do combate a corrupção, ao nepotismo e à bajulação há sinais preocupantes de estagnação”, frisou.
Instado a comentar a razão de ser deste retrocesso da parte de João Lourenço, Sérgio Calundungo considerou que alguma pressão a nível do partido possa estar na base.
“Quando subiu ao poder fez uma coisa inovadora e inusitada, apanhando não só de surpresa os seus oponentes políticos e a sociedade, mas os seus pares. E a sensação que temos é que dentro do partido um grupo mais retrógrado, menos progressista, que tinha ficado minoritário, fruto da acção que o Presidente tinha implementado, começa a ganhar peso. Só assim é que eu posso entender esses sinais preocupantes de retrocesso”, disse.
O economista afastou a possibilidade de ser “apenas fruto de uma decisão pessoal”.
“Noto que o partido, que demonstrava ter mais abertura, começa a dar sinais preocupantes de retrocesso. Figuras que eram muito ligadas ao ex-Presidente, a um radicalismo na forma de estar e de fazer política, começam a emergir novamente, então, entendo que provavelmente há vozes internas que dizem que a abertura e o progresso que ele estava a promover, iria eventualmente ser prejudicial ao MPLA nas próximas eleições”, referiu.
Para Sérgio Calundungo, “é injusto” dizer que a actual governação “está pior” que a anterior, porque “há coisas que melhoraram e há coisas que pioraram”.
“No tempo do Presidente João Lourenço nunca o país teve tantas manifestações públicas contra, inclusive as autoridades. E isto não é comparável ao tempo do Presidente José Eduardo dos Santos, em que os últimos tempos reagia muito mal a isso”, referiu, indicando ainda que em quatro anos várias figuras mediáticas ou muito próximas do poder foram responsabilizadas civil e criminalmente e outras politicamente, com exonerações, por más práticas.
“Obviamente que o que fica mal na fita são os retrocessos face aos direitos civis, (…) a pressão que está a ser feita sobre o seu mais directo oponente político, Adalberto da Costa Júnior [líder da UNITA] não era expectável para um Presidente que assinalou abertura”, concluiu.
Em defesa de um Estado genuinamente democrático e de Direito
Vejamos o esclarecedor texto de uma petição pública, dirigida à Presidência de Angola , Tribunal Constitucional, PGR, Nações Unidas, União Europeia, União Africana e cujo primeiro subscritor é padre Jacinto Pio Wacussanga:
«Nós, membros da sociedade civil, tendo constatado nos últimos tempos a maneira como as instituições do estado Angolano têm sido instrumentalizadas e banalizadas, colocando assim em perigo a paz ténue e retrocedendo o nobre desígnio de construção de um verdadeiro Estado democrático e direito, congregados num espírito do dever cívico e patriótico, vimos em uníssono manifestar a nossa firme moção de Protesto Público a fim de que se reponha a ordem, se defenda a autonomia e promova a estabilidade nas instituições.
1. O nosso país, Angola, tem sido, de forma persistente, o lugar onde a razão da força tem-se sobreposto a força da razão. No decurso do processo de formação do Estado Angolano a razão da força tem prosperado em disseminar a miséria humana, a dor e o luto.
2. Este processo histórico foi marcado e continua sendo influenciado por quatro vícios, inquestionavelmente brutais, destrutivos e hediondos, nomeadamente: a Colonização; as Guerras Fratricidas; a Ditadura Monopartidária e a Cleptocracia. Mas o que é que estes quatro vícios têm em comum?
3. Todos estes vícios violam o valor supremo vida e ferem dignidade dos cidadãos angolanos. As vidas, direitos, aspirações e as escolhas dos angolanos e angolanas têm estado à mercê de caprichos de outrem que se arroga estar acima de tudo e todos.
4. Graças ao empenho e sacrifícios incorridos por uma geração de bravos e valorosos compatriotas, lograram para todos a independência, a democracia, a paz e a constituição.
5. Entretanto, a nossa independência teve, desde o começo, que coabitar com a guerra contra a ditadura do partido único. Durante esta fase tenebrosa, muitas vidas foram ceifadas, sonhos destroçados, propriedades e infra-estruturas destruídas.
6. O sangue vertido por heróis e heroínas, reconhecidos e anónimos, conquistou-nos a paz e a democracia que passaram a ser realidades estruturantes da Constituição da República de Angola.
7. Neste contexto, a paz e a democracia são um património imaterial de todos os angolanos e angolanas, na medida em que sustentam a base e definem a estrutura do Estado Angolano.
8. Infelizmente, a nossa moldura constitucional tem reflectido a medida do poder personificante do Presidente da República.
9. O Presidente José Eduardo dos Santos, cujo consulado durou cerca de 38 anos ininterruptos, é recordado como o arquitecto da constituição atípica, na qual a insubordinação às leis e às normas gerou o exercício arbitrário do poder e a acumulação criminosa do erário público.
10. O consulado do Presidente José Eduardo dos Santos é igualmente memorável por ter inaugurado o reino dos insectos e crustáceos. De facto, as vespas, marimbondos e caranguejos tornaram-se nos verdadeiros detentores do poder. Do povo espera-se apenas a legitimação do poder dos insectos e crustáceos por via de processos eleitorais inquinados.
11. A ascensão do Presidente João Manuel Lourenço inaugurou a promessa do combate aos marimbondos e caranguejos. Entretanto, o tempo tem revelado a dura realidade do carácter teatral e selectivo do combate: “os marimbondos e caranguejos existem no meu reino. Mas eles são meus marimbondos e meus caranguejos!”
12. Estranhamente o tempo tem revelado que a Constituição existe da mesma forma que o espelho existe para o rosto do estilista. É vital que o Presidente da República veja a sua efígie projectada na Constituição – Digutus mei est hic! Isto é, aqui estão as minhas impressões digitais. É um acto de soberbamente narcisístico que melhor caracteriza o espírito do constitucionalismo atípico.
13. Com tantas prioridades e urgências na agenda governativa como – a reforma do Estado, a criação de 500.000 empregos, comunicação social ao serviço da verdade, modernização dos órgãos de Defesa e Segurança, o combate contra a corrupção, a impunidade e ao nepotismo – eis que o Presidente João Lourenço lança a sua Lei de Revisão Constitucional, a “primeira revisão da Constituição da República de Angola, promulgada a 05 de Fevereiro de 2010”, nos dizeres do Acórdão No. 688/202 do Tribunal Constitucional.
14. Se o Dedo de Deus é sempre Sagrado e Bondoso, o dedo dos estadistas africanos, nas suas constituições, muitas vezes têm provado ser um dedo mais tirano, sinistro e destrutivo, do que um dedo de liderança ao serviço do interesse nacional e pela promoção do bem-estar colectivo.
15. As duas declarações de voto vencido, do Juiz Conselheiro Carlos Teixeira e do demissionário Juiz Conselheiro Presidente Manuel da Costa Aragão, lançaram o alerta vermelho, sobretudo quando assevera que a Lei de Revisão Constitucional “trata-se de uma norma manifestamente inconstitucional, por colidir com os princípios estruturantes da Constituição de Angola”.
16. Destarte, Manuel da Costa Aragão alertou ainda para factos que podem “constituir um suicídio ao Estado democrático de direito, na medida em que a efectivação da existência de hierarquia (seja funcional ou protocolar) entre Tribunal Constitucional e Supremo “pode criar danos à certeza e segurança jurídica, quanto ao cumprimento das suas decisões”.
17. Quando o reino dos insectos e crustáceos ameaçam tomar de assalto o Estado de todos nós, convertendo-o à imagem dos seus devaneios e caprichos, nós negamo-nos a ser tidos perpetuamente como se fossemos os cordeirinhos silenciosos, vendo em procissão rumo ao suicídio o nosso Estado Democrático de Direito.
18. Somos por um estado genuinamente democrático e de direito para o nosso País, porque:
18.1. Nenhum Partido Político, MPLA hoje, ou outro partido amanhã, se aproprie do Estado;
18.2. Manipule os meios de comunicação pública – TPA, JA, RNA, ANGOP – como veículo de propaganda para sua versão de verdade deturpada dos factos e inquisição mediática dos opositores políticos, com o mero intuito de garantir que a propaganda e desinformação venham a ser tidas como garantia da ganhos eleitorais;
18.3. Subverta os Órgãos de Defesa e Segurança como instrumentos ancilares do seu projecto de manutenção no poder absoluto;
18.4. Privatize as riquezas de todos os angolanos eangolanas como se de um feudo se tratasse;
18.5. Instrumentalize os órgãos de Justiça para perseguir e derrubar opositores políticos, sem a menor consideração pelo capital social e político, herança histórica, diversidade cultural, e a riqueza linguística que representam, fundamentalmente, uma nova visão e um novo rumo que os mesmos defendem para Angola.»
Folha 8 com Lusa