O ministro da Justiça e dos Direitos Humanos angolano, Francisco Queiroz, considerou hoje que o conflito de 1992 em Luanda “foi um erro político que redundou em violência e gerou muitas vítimas”, apelando ao fim da “irresponsabilidade política”. Pois. E os erros ditos políticos do MPLA já davam para uma candidatura vencedora ao Guinness World Records.
Francisco Queiroz, que falava na qualidade de coordenador da Comissão para a Implementação do Plano de Reconciliação das Vítimas de Conflitos (CIVICOP), na cerimónia que marcou hoje a entrega aos familiares dos restos mortais de Alicerces Mango e Salupeto Pena, mortos nos conflitos de 1992, em Luanda.
“É hora de reparar esse erro, de perdoar e de nos reconciliarmos, sem perguntarmos quem provocou o erro, de quem foi a culpa”, realçou o ministro. Errado, Senhor Ministro. A reconciliação só é possível sabendo-se a verdade, assumindo-a, e dizendo quem foram, ou são, os responsáveis.
Nas eleições presidenciais realizadas em Setembro de 1992, as primeiras na história do país, nem o candidato do MPLA, o então Presidente José Eduardo dos Santos, nem o seu adversário, Jonas Savimbi, da UNITA, conseguiram maioria absoluta nas presidenciais, mas a segunda volta nunca se realizou.
No final de Outubro, com o fracasso do processo eleitoral, Luanda (mas não só) foi palco de violentos confrontos entre as forças militares da UNITA e governamentais, que levaram ao reinício da guerra civil em Angola, depois de um período de paz.
O governante angolano considerou ainda que este é o momento de se perdoar, “sem pré-condições, os envolvidos nos acontecimentos trágicos que levaram à perda de muitas vidas humanas”.
Errado, Senhor Ministro. O (eventual) perdão só é possível sabendo-se a verdade, assumindo-a, e dizendo quem foram, ou são, os responsáveis.
“O momento é de homenagear a memória dos que pereceram, sem olhar para o lado do conflito em que se encontravam quando perderam a vida. O momento também é de mudança de comportamentos e atitudes. Chega de erros políticos trágicos”, referiu.
O coordenador da CIVICOP pediu também o fim dos “actos de irresponsabilidade política, que podem redundar em violência e provocar sofrimento ao povo”. Francisco Queiroz tem razão. Continuar a considerar Agostinho Neto, o responsável máximo dos massacres de milhares e milhares de angolanos em 27 de Maio de 1977, como o único herói nacional pode “redundar em violência e provocar sofrimento ao povo”. Pode mesmo.
“Chega de ver as diferenças como males a combater e a abater. Chega de desrespeitar os que querem viver em paz e cumprir as suas obrigações cívicas e patrióticas com liberdade. Chega de desrespeitar a memória dos que perderam a vida vitimados pela insensatez dos erros políticos”, frisou o ministro.
Chega desde que todos assumam as suas responsabilidades com verdade. É preciso que todos saibam quem foram, ou são, os autores. Sabemos que verdade dói. Dói muito mesmo. Mas só ela cura, só ela poderá estar na base da reconciliação e da verdade. Desde logo porque a verdade não prescreve.
Francisco Queiroz desejou que as pessoas que morreram vítimas de conflitos políticos, conhecidos e não conhecidos, identificados e anónimos, não tenham sido perdidas em vão, considerando que o momento é “de aprender com os erros”, ainda em tempo de os reparar.
“A nossa memória deve registar os erros políticos trágicos e lembrar-se deles. Esses erros não podem ser esquecidos, porque constituirão um alerta permanente para impedir que se repitam. Devemos recordar os erros políticos como marcos da nossa história que não queremos vivenciar jamais”, disse.
O ministro informou que oportunamente será feita a entrega das ossadas de Jeremias Chitunda e de Eliseu Chimbili, dirigentes da UNITA, bem como de vítimas resultantes dos massacres de 27 de Maio, data conhecida na história do país como a suposta tentativa de um golpe de Estado liderada pelo dirigente do MPLA Nito Alves, em 1977.
De acordo com Francisco Queiroz, esta acção tem sido possível “graças aos fortes investimentos realizados em especialistas nacionais e estrangeiros, tecnologia, condições de trabalho e de logística”.
“Gostaríamos de apelar às famílias que se apresentem à CIVICOP para a recolha de material genético para exames de ADN”, exortou.
“Trata-se de um processo que se reveste de grande significado humano e é um gesto de inequívoco comprometimento com a reconciliação e o perdão”, acrescentou.
A CIVICOP foi criada em 2019 pelo Presidente João Lourenço, com objectivo de dar dignidade a todas as vítimas dos conflitos políticos registados em Angola entre 1975, ano da independência, e 2002, fim da guerra civil no país, e se alcançar o perdão e a reconciliação nacional.
No ano passado, João Lourenço pediu publicamente perdão, em nome do Estado angolano, pelas “execuções sumárias” registadas naquele período, tendo ficado registado para a história a primeira vez, em 44 anos passados, uma homenagem pública às vítimas do 27 de Maio de 1977.
Mais um massacre, desta vez à verdade e à nossa memória
Do alto da sua torre de divina sabedoria, o Presidente João Lourenço ordenou a criação de uma comissão para elaborar um plano geral de homenagem às vítimas dos conflitos políticos que ocorreram em Angola entre 11 de Novembro de 1975 a 4 de Abril de 2002. Para mostrar a equidade, a equidistância e a imparcialidade da iniciativa, integraram a comissão elementos da sua confiança, todos do MPLA.
Segundo uma nota da Casa Civil do Presidente da República de Angola, recorde-se, João Lourenço inclui entre os conflitos a “intentona golpista do ’27 de Maio’ [de 1977] ou eventuais crimes cometidos por movimentos ou partidos políticos no quadro do conflito armado”.
Para quem não sabe, como parece ser o casso dos escribas que redigiram a nota, ou até mesmo do próprio Presidente do MPLA, intentona significa: “Intento ou empresa insensata, conluio de motim ou revolta”.
João Lourenço justificou a decisão como um “imperativo político e cívico do Estado” para “prestar condigna homenagem à memória de todos os cidadãos que tenham sido vítimas de actos de violência, resultantes dos conflitos políticos”. Um “imperativo político e cívico do Estado” que o MPLA/Estado leva a efeito sem ouvir, muito menos integrar, representantes de outros partidos ou da própria sociedade. Tudo normal, portanto.
“Convém instituir um mecanismo para a promoção da auscultação e de um diálogo convergente, no sentido de se assegurar a paz espiritual da sociedade, face a episódios do passado na convivência nacional que possam perturbar a unidade e o sentimento de fraternidade entre os angolanos”, salientou o chefe de Estado (não nominalmente eleito), Presidente do MPLA (o único partido que governou Angola desde a independência) e Titular do Poder Executivo.
A Comissão para a Elaboração de um Plano de Acção para Homenagear as Vítimas dos Conflitos Políticos, segundo João Lourenço, seria (é) coordenada pelo ministro da Justiça e dos Direitos Humanos e ex-ministro da Geologia e Minas, cargo para o qual foi nomeado aos 28 de Outubro de 2012 por José Eduardo dos Santos, Francisco Queiroz, e integrou vários outros departamentos ministeriais e – porque não se brinca em serviço – o Serviço de Informações e Segurança do Estado (SISE).
A comissão, prosseguia o decreto de João Lourenço, devia preparar e submeter à aprovação do Presidente da República um programa que contenha um conjunto de acções para que se preste “homenagem condigna à memória dos cidadãos que faleceram como resultado dos conflitos que ocorreram no país no período referenciado”.
“Tal tem a finalidade de se curar as feridas psicológicas das famílias e de regenerar o espírito de fraternidade entre os angolanos através do perdão e da reconciliação nacional”, argumentava o chefe de Estado de Angola. Só faltou mesmo acrescentar: Viva Agostinho Neto.
Como símbolo paradigmático da benemerência de João Lourenço pode apontar-se o que se passou recentemente no Cuíto Cuanavale. No dia 23 de Março de 2019, de uma forma que não gera dúvidas, João Lourenço assumiu que só é Presidente dos angolanos do MPLA. Na cerimónia de branqueamento da batalha do Cuíto Cuanavale, condecorou meia centena de antigos combatentes, nenhum deles esteve ligado às Forças Armadas da Libertação de Angola (FALA) – exército da UNITA, mas apenas às Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA), do MPLA, do seu MPLA.
Nesse sentido, a comissão teria de propor “mecanismos apropriados” para identificar e comunicar-se com as famílias e as entidades colectivas ou singulares com interesse no assunto “e obter a cooperação que delas se espera”.
“Deve também apresentar sugestões sobre o modo como o Estado angolano deve prestar uma homenagem condigna aos cidadãos vítimas dos conflitos políticos e trabalhar com as instituições apropriadas para elaborar os projectos e orçamentos da construção do monumento e os actos de homenagem”, lê-se no decreto.
A provar que o MPLA não mudou, nunca mudará, basta recordar que João Lourenço é alérgico à verdade, sobretudo quando dita por angolanos. Alguém já o ouviu falar do Acordo de Alto Kauango, realizado em 19 de Maio de 1991 entre as forças então beligerantes das FALA e das FAPLA, mediado por William Tonet e que veio a ser a base para o Acordo de Bicesse?
Folha 8 com Lusa