Os crimes das forças beligerantes no conflito armado da independência de Angola

Se Portugal incorreu em crimes de lesa-humanidade, as forças insurgentes não lhe ficaram atrás. Uns e outros enganados por doses opressivas de propaganda e oxidados na violência e na xenofobia.

Por Carlos Pacheco
Historiador angolano (*)

Nos últimos tempos reganhou fôlego nos círculos da intelectualidade portuguesa o debate em torno do que é comum designar por guerra colonial. Fala-se muito da legitimidade da violência das organizações nacionalistas em armas contra o terror da hidra colonialista e das balas disparadas pelos portugueses contra populações inocentes nos teatros de guerra africanos. As guerrilhas independentistas, cada vez que se fala delas, ganham quase sempre cores especiais nesse debate, de louvor entusiástico, como se nelas fosse tudo excelso e heróico e as suas pelejas um sacrifício imortal nas gestas da “luta global da humanidade” para acabar com as injustiças e a exploração.

Claro que as lentes desta abordagem apenas retêm uma parcela ínfima do real. Para lá deste espelho desenha-se uma outra constelação de factos sobre os quais ninguém quer falar, tal a magnitude dos crimes execrandos então cometidos e que envolvem todos os protagonistas da guerra. Portugal, na condição de potência ocupante, jamais deixou de ser visto como um “Deus selvagem”, repressivo e destruidor da alma africana. Quanto aos patriotas armados, cedo as ilusões se dissiparam no espírito da massa do povo que desistiu de acreditar nos actos virtuosos dos combatentes. As agressões a civis ao longo dos tempos tornaram-se tão sinistras que por vezes, em resposta, os camponeses se viram obrigados a pegar em armas para se proteger das violências continuadas dos seus pretensos libertadores.

Ressalvando as diferenças de contexto histórico, em Angola repetiu-se aquele fenómeno que o historiador Simon Schaman conta no seu belíssimo estudo Travessias Difíceis relativamente à fuga de multidões de escravos negros para o lado dos insurgentes ingleses durante a Guerra Americana de Independência (1775-1783). Eles não confiavam nos rebeldes para obter a sua liberdade, preferiam antes lutar integrados nas unidades dos legalistas brancos e, no final, receberam terras na Nova Escócia em recompensa pelos seus leais serviços. Um deles escrevia ter sido levado de Inglaterra para Baltimore contra a sua vontade e ali vendido como escravo por quatro anos: “[…] sofri a maior barbaridade neste país rebelde”. Com o declínio do conflito ele só queria voltar “[…] para casa na Nova Inglaterra”[1]. Num ensaio publicado em 1784 sobre a escravidão dos negros na República libertada, Thomas Day, abolicionista inglês, descreve a hipocrisia dos patriotas da América Setentrional que “[…] com uma mão firmam resoluções de independência e com a outra sustêm o látego que descarregam sobre os seus atemorizados escravos”[2].

Em Angola as populações nativas rurais, de uma forma geral, também viveram problemas similares de desconfiança e temor às mãos dos revoltosos do MPLA, da UNITA e da FNLA. Em vez do azorrague, os nacionalistas intimidavam-nos com pistolas-metralhadoras e submetiam-nos a toda a sorte de provações, especialmente a trabalhos forçados. A pretexto de não produzirem alimentos em quantidade suficiente ou não cumprirem as quotas agrícolas impostas pela guerrilha, espancavam-se os aldeões até à morte. Estas tácticas brutais ocorreram nas margens do rio Kuvelai (5.ª Região) e repetiram-se um pouco por toda a parte, nas várias regiões político-militares, a uma escala difícil de quantificar.

Os assaltos aos vilarejos irrompiam assim como tempestades e igualavam a fúria dos guerreiros de Átila e dos seus cavalos, os quais por onde passavam a vegetação não crescia mais. Além de matarem e extorquirem roupas e alimentos aos agricultores, as “almas de terror” do MPLA e de outros movimentos capturavam homens e rapazes ainda impúberes para o converter em soldados. As mulheres eram reduzidas à condição de escravas sexuais.

Com efeito, o corpo das mulheres transformou-se num alvo recorrente das unidades de guerrilha nas suas incursões militares contra as nações não-beligerantes. Não faltaram, por outro lado, os ataques contra a educação. Destruíram-se escolas, missões de ensino e outros centros, sobretudo católicos, e raptaram-se alunos como forma de “fazer desaparecer tanto a carruagem como os cavalos”, na feliz expressão de um académico inglês ao referir-se à devastação de escolas no Paquistão por grupos islamitas radicais (os chamados yihadistas) que só aceitam o ensino do Corão e da Sharia em oposição às ciências e às disciplinas humanísticas[3].

Ninguém esteve, portanto, a salvo desta sanha destrutiva. Todos indistintamente, homens, mulheres e crianças, foram incluídos no chamado mundo do inimigo. Bastava um chefe de aldeia apoiar a UNITA ou a FNLA e negar alimentos aos maquisards de Agostinho Neto para de imediato se abater sobre a comunidade um castigo diabólico. É certo que em 1969 o Comité Director do Movimento emitiu instruções a proibir ataques aos aldeamentos e maus-tratos aos lavradores, contudo não é menos certo que estas violências, longe de cessarem, prosseguiram com maior intensidade a uma escala nunca antes observada.

Várias chefias insurgentes tiveram o desassombro de deixar narradas estas violências nos seus cadernos de apontamentos e também nos seus diários pessoais. Motivo por que os factos aqui descritos não encerram nenhum artifício nem são o resultado de confissões arrancadas aos prisioneiros sob tortura ou por sugestão dos órgãos policiais portugueses depois de “[…] longas perguntas com as quais se compõe uma confissão detalhada”, conforme escreveu o médico Mário Moutinho de Pádua, desertor do Exército português em 1961[4]. Mesmo tratando-se, como se sabe, de uma questão sensível para alguns estudiosos que porfiam humanizar o rosto da guerrilha, não se pode deixar de levar em conta os acontecimentos terríveis que salpicaram a realidade e reconhecer que a ideologia da violência no MPLA (e noutros movimentos) contra civis, parafraseando o filósofo esloveno Slavoj Žižek, esteve sempre presente, agora mais do que nunca, na sua plena invisibilidade[5].

Do imenso rol de testemunhos de camponeses que colectei e analisei para encontrar neles relações de semelhança e marcas de verosimilhança, cito o depoimento de Saloxi Dumba, agricultor, que vivia em Sadikongue, sobado Chicunza (no distrito do Moxico, sector 3 da zona C da 3.ª Região), que confirmou a série ininterrupta de tormentos sofridos pelos habitantes das aldeias africanas. Segundo este aldeão, o MPLA intimidava o núcleo populacional a que ele pertencia e constrangia as pessoas a abandonar os respectivos kimbos (aldeias nativas com casas construídas de paus e cobertos de argila ou barro) e a refugiar-se no grotão das matas, na divisa dos rios Luela e Carilongue, este último afluente da margem direita do Quembo. Lá constrangia-se a população sob a ameaça das armas a cultivar mandioca e outros géneros alimentícios e a entregar uma boa parte da produção aos rebeldes. A esta injunção dá-se o nome de imposto sobre a colheita. Quem não obedecesse era morto. Foi o que sucedeu com o marido e os irmãos de Viemba Manhambe, natural de Capui (sobado Nhamia Boma, no Moxico) que não se dobraram à vontade dos guerrilheiros que lhes exigiam comida e os ameaçavam. Por conta desta coragem, a família foi toda despachada à bala para o outro mundo de forma impiedosa e sem um mínimo de consideração pela sua condição etno-social.

Ao invadir outras aldeias no posto administrativo de Gago Coutinho, o mesmo destacamento de insurrectos não se coibiu de desapossar os seus habitantes de todas as reservas alimentares acumuladas com tanto sacrifício; ao mesmo tempo que lhes cobravam dinheiro e abatiam a tiros de espingarda ou a golpes de faca os recalcitrantes na mira de intimidar os restantes moradores das sanzalas.

Realmente à luz de dezenas de casos-padrão expostos nos meus estudos, os grupos armados nem sempre souberam proteger os núcleos comunitários mais débeis. Antes de tudo, conduziam-se como uma organização militar assassina que sequestrava e espoliava os bens dos agricultores e matava os homens e a mulheres num exercício de orgia criminal tão gritante que, por vezes, é difícil ao historiador distinguir a realidade da ficção. As duas faces no decorrer das pesquisas confundem-se a todo o instante.

Ofensivas militares directas contra aldeamentos acompanhadas de roubos a civis converteram-se deste modo em demonstrações alarmantes e corriqueiras consumadas com um acinte de crueldade sem limites, sem excluir o rapto de pessoas para transporte de cargas, tal qual a prática dos tempos da escravidão.

A estes horrores poder-se-ia chamar de novelas negras da luta armada. Em lugar de libertar, de “tomar o céu de assalto, como diria Karl Marx”[6], e apontar as armas contra os baluartes de dominação do Estado colonial, isto é, contra a sua máquina burocrático-militar, os insurrectos assaltavam o seu próprio povo, numa guerra infinita com inúmeros desdobramentos e frentes, sendo a guerra contra as comunidades rurais uma das que mais chama a atenção. Uma configuração do que chamo de quinta guerra, confundida com outras guerras, num total de sete. A título de curiosidade, cito as guerras intestinas em cada formação guerrilheira, incendiadas por conflitos de poder entre os seus mandões. Ou as guerras travadas pelas forças irregulares umas contra as outras (as mais constantes, por sinal), ou as guerras contra os meninos e as meninas sujeitos a processos de militarização e escravização sexual.

Com estes registos pretende-se demonstrar não terem sido nada conspícuos os exemplos das três facções independentistas. Uma boa parte da história destes movimentos pouco ou nenhuma relação teve com o carácter de uma epopeia genuinamente libertadora, como repetidas vezes se pretende fazer crer. Tais acções decorriam sob o impulso de indivíduos ambiciosos e sem escrúpulos, desprovidos de etiquetas políticas recomendáveis e tão-pouco sem nenhuma estatura moral e ética. Houve excepções, é verdade, na pessoa de comandantes de elevado perfil humano, moral e revolucionário. Todavia, no fim da guerra poucos sobreviveram. Quem não logrou escapar ao cutelo dizimador da repressão interna, tombou fuzilado às mãos de Neto, de Savimbi e Holden Roberto.

Com que direito aqueles combatentes, fantasiados de libertadores, se interpunham violentamente no caminho dos camponeses, roubando-lhes os haveres e a vida? A rebelião, como força oposta à presença colonial portuguesa, porventura conseguia justificar para si mesma aquela violência, aquele terror? Como explicar uma guerra levada a cabo contra o seu próprio povo? Por que se matavam civis, pessoas inocentes e, mesmo assim, se acreditava ser uma causa justa? Será que todo o mal praticado pelas guerrilhas se tornara legítimo diante do modus faciendi do inimigo? Estaria a insurgência a perder a decência? Eis aqui alguns tópicos aliciantes para futuras matérias de estudo.

O rastro de sujeira e de sangue que cobre os treze anos de luta armada no geral é, pois, assombroso e encerra uma história de assassinatos, perseguições e a destruição sistemática do ser humano. Paradoxalmente a maior vítima de violências foi a massa rural, a mesma que o colonialismo levou à degradação total, mas que os grupos insurgentes ajudaram a aviltar ainda mais.

Os portugueses indiscutivelmente também incorreram em comportamentos criminosos, de consequências danosas para a vida humana colectiva, visto terem cometido atrocidades sem-fim contra as populações civis. A sua máquina de guerra socorreu-se de armas e tácticas militares não permitidas pelo Direito Internacional dos Conflitos Armados. A aviação despejava bombas sobre alvos ilegítimos sem ter em conta a protecção de vítimas inocentes numa clara violação às normas que regem a condução das hostilidades estabelecidas nas Convenções de Haia de 1899 e 1907. Matavam-se crianças “como se fossem perdizes”; batiam-lhes com paus e despedaçavam-lhes o cérebro e logo a seguir tingiam as árvores com os seus pedaços.

Episódios bárbaros que, de resto, jamais foram reconhecidos ou certificados pelas autoridades lusas nem antes nem depois do 25 de Abril de 1974 com o golpe dos capitães. De todas as cenas conhecidas registe-se uma, quiçá a mais monstruosa, que foi protagonizada por uma unidade militar de ocupação no Lucusse ao abrir fogo sobre um casal de camponeses indígenas que fugia apavorado e deixou para trás uma filha de tenra idade que brincava com um instrumento de lavrar a terra. Demenciados “pela guerra delirante”, na feliz expressão do poeta espanhol Miguel Hernández[7], os soldados brancos precipitaram-se sobre a pobre menina e esfrangalharam-na a golpes de enxada. A seguir cobriram os restos do corpo com capim e, por último, transformaram o cadáver numa fogueira. Na Chitamba, aldeia do Moxico, a tropa lusitana não só submeteu os civis pela força das armas, como queimou dois homens vivos, uma mulher e uma criança de dois anos.

Estamos diante do absoluto da abjecção. Do pior desconcerto da alma humana. O mesmo se poderá dizer do acto cometido por uma força militar portuguesa no momento em que regressava ao seu aquartelamento em Cangamba (no Moxico) no dia 11 de Junho de 1967. Ao transpor uma aldeia apoiante dos rebeldes, os soldados dizimaram todos os seus habitantes. Nem os graduados se eximiram de participar do massacre.

Algumas figuras de topo da hierarquia militar do MPLA, entretanto, tomadas de ódio incontrolável por estes festins de crueldade da tropa portuguesa, chegaram mesmo a predicar que a única resposta à altura seria abandonar a mística da luta guerrilheira, que se dizia ser democrática e popular, e enveredar por uma odiosa luta racial entre brancos e negros. “Olho por olho, dente por dente”, assim o pleiteavam algumas vozes mais delirantes.

Felizmente este perigoso tecido de ideias não se impôs dentro da organização de Agostinho Neto. Aconteceram, sem dúvida, alguns episódios lamentáveis, de um comandante da 3.ª Região em Outubro de 1968 que matou uma mulher negra, grávida, por esta viver maritalmente com um homem branco. Seja como for, foram poucos os casos desta natureza, nada comparáveis às barbaridades de cunho racial que viraram moeda corrente no seio das demais organizações insurgentes.

Reconheça-se, no entanto, que a maioria dos guerrilheiros e respectivas lideranças não conheciam a realidade global do mundo com as suas intrincadas nuances. Não conheciam sequer o que lhes estava mais próximo: a preciosa ajuda prestada por comerciantes e industriais portugueses na área do Buçaco (sul do Cassai), ou nas áreas do Luculo e Léua (e noutras áreas) que subministravam aos combatentes irregulares, de forma directa ou através de chefes africanos tradicionais, o necessário em géneros alimentícios e roupas. Ou ainda o papel, extremamente arriscado, de alguns administradores que se aventuravam a proteger as populações e a permitir que os camponeses refugiados nas matas continuassem a pagar o imposto por intermédio dos seus sobas. Os exemplos são incontáveis.

Por capricho ideológico exacerbado, os libertadores tendiam a ignorar a realidade destes factos, preferiam antes alimentar o preconceito de que o inimigo, ou seja, os “porcos e rafeiros”, tinham a cara do homem de epiderme clara, o português, e não o Estado ou a sociedade capitalista colonial com as suas superestruturas ideológica, política e militar. Uma cegueira e intolerância que os impedia de reconhecer o óbvio e aproveitar a conjuntura a seu favor. Uma dessas falhas, acaso a mais evidente, tinha por sinal o facto de não tentarem perceber “as complexidades da vida sob o regime colonial” e o facto de “a maioria da população branca não gostar das Forças Armadas” e ter horror à guerra. Quem o declarou sem disfarces, preto no branco, foi um antigo subsecretário de Estado do Exército português que em Angola cumpriu uma comissão de serviço (1966-1968) no posto de subchefe do Estado-Maior da Região Militar[8].

Efectivamente, as pessoas nascidas em Portugal, mas com larga vivência na colónia – comerciantes, industriais, artífices, agricultores, funcionários públicos e outras categorias sócio-profissionais –, jamais dissimularam, desde o início da guerra, a sua aversão pelos militares das chamadas “forças ultramarinas” enviados da Metrópole. “Não precisamos dos militares cá”, eis o tom de protesto derramado por esses cidadãos na exposição que endereçaram em Novembro de 1960 a António de Oliveira Salazar, presidente do Concelho de Ministros: “Para quê aumentar os vencimentos a uma classe inútil na vida da Província. […]?. Para quê, Excelência, esse aumento para umas figuras que levam uma boa vida, com casa, criados, etc., tudo de graça, quando se fala que a economia da Província está de rastos, e se pedem a todos os serviços máxima compressão […] nas despesas?”[9].

Dizendo-se arredios (por calculismo) a qualquer movimento ou força separatista, os signatários da exposição fizeram ainda saber a Salazar da sua discordância em relação à política até então seguida na colónia: “Não estamos satisfeitos, dizemos francamente a Vossa Excelência, com a política que se está a praticar em Angola, prejudicando fortemente a nossa economia! A nossa economia pública e particular. Numa altura em que a indústria de pesca morre em Benguela depois de um investimento de capitais da ordem de meio milhão de contos, levando atrás de si o comércio, vêm centenas de colonos daí para a Cela, para “iniciarem” a colonização, quando esse dinheiro podia muito bem ser empregue na salvação dessa indústria que se estende de Benguela até à Baía dos Tigres. Esse não é o caminho certo, Excelência. Vossa Excelência estará bem avisada se mandar suspender essa invasão de paraquedistas, invasão com a qual não concorda um dos nossos ilustres economistas, senhor doutor Maia Loureiro. […]. Não precisamos dos militares, não precisamos dos colonos”[10].

Julgo pertinente esclarecer que esta lacuna ou intolerância nos patriotas do MPLA e nas restantes facções angolanas para entender o que se passava nos interstícios do universo colonial não foi exclusiva dessas forças. Conta o escritor Kamel Daoud que, no contexto da guerra de libertação da Argélia, a FLN [Frente de Libertação Nacional] também se couraçou com esta visão unívoca da realidade existente. Superestimou a épica dos seus “infalíveis” muŷāhidīn [combatentes muçulmanos] que lutavam contra os “malvados colonizadores franceses” e desprezou uma outra evidência: de que nos subúrbios das cidades não viviam só árabes pobres, esses espaços eram igualmente partilhados por franceses de condição social humilde. Além disso, no período de maior combustão da guerra houve párocos que desafiaram todos os perigos e ampararam inúmeras famílias árabes necessitadas; assim como houve “[…] soldados franceses que preferiram desertar a ter que torturar e matar”[11].

Leszek Kolakowski, filósofo e historiador polaco, tinha razão. O ódio étnico, individual ou colectivo nestes casos vestia “[…] uma roupagem ideológica que adquiria aparências de legitimidade”[12]. Uma legitimidade por vezes fomentada, quando não consentida por todas as partes beligerantes.

Uma tragédia humana, assim se pode resumir esse longo período de conflito armado. Se Portugal incorreu em crimes de lesa-humanidade, as forças insurgentes não lhe ficaram atrás. Parafraseando o escritor húngaro Sándor Márai, os independentistas e os militares portugueses acobertavam dentro de si um inimigo real composto por “hipócritas mesquinhos, disfarçados de nacionalistas”[13]. Em vez de serem um espelho de bons exemplos, uns e outros enganados por doses opressivas de propaganda transformaram-se em trincheiras trituradoras da humanidade, oxidados na violência e na xenofobia.

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[1] Simon Schama. Travessias Difíceis: Grã-Bretanha, os Escravos e a Revolução Americana, São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p. 16.
[2] Thomas Day. Fragment of on Original Letter on the Slavery of the Negroes, Written in the Year 1776, London, Printed For John Stockdale, Boston, Re-Printed by Garrison and Knapp, 1831, p. 10.
[3] O académico em apreço é David Gosling, antigo director da Universidade Edwardes College, em Peshawar, no Paquistão (apud Robert Fisk. “Advertencia a Turquía”, La Jornada [México], año 32, n.º 11.305, Jueves 21 de Enero de 2016).
[4] Mário Moutinho de Pádua. Guerra em Angola: Diário de Um Médico em Campanha [prefácio de Miguel Urbano Rodrigues], Rio de Janeiro, Editora Brasiliense, 1963, p. 87.
[5] Slavoj Žižek. “Boinas Verdes Con Rostro Humano”, El País [Madrid], sección “Tribuna: La Cuarta Pagina”, miércoles, 24 de Marzo de 2010.
[6] “Carta de Marx a Ludwig Kugelmann [em Hannover], Londres, 12 Abril 1871”, in Marx & Engels. Obras Escolhidas, tomo II, Lisboa, Edições “Avante”, Moscovo, Edições Progresso, 1983, p. 457.
[7] “1.º de Mayo de 1937”, por Miguel Hernández, in Obras Completas [prólogo de María de Gracia Ifach], Buenos Aires, Editorial Losada, 1960, p. 299.
[8] Coronel Viana de Lemos. Duas Crises: 1961 e 1974. Um Olhar de um Oficial do Exército Português, Lisboa, Edições Cosmos, 2.ª edição revista e aumentada, Junho de 2009, p. 55.
[9] “Exposição de portugueses em Angola a Sua Excelência o Presidente do Concelho, Senhor Doutor António de Oliveira Salazar, Lisboa, Novembro de 1960”, fls. 98-99 (AN/TT. AOS/CO/UL-32 A2, pasta 14).
[10] Idem, fl. 101.
[11] Adam Shatz. “Un Escritor Argelino y su País”, Letras Libres [México], n.º 38, Septiembre 2015, pp. 42-43.
[12] Leszek Kolakowski. “Sobre la Envidia”, Letras Libres [México], n.º 33, Septiembre de 2001, p. 52.
[13] Sándor Márai. Diarios, 1984-1989, Barcelona, Salamandra, 2008, p. 43 [1984, 29 de Maio].

(*) Artigo publicado no jornal português Público em 13.07.2021

Foto da responsabilidade do Folha 8

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