Milhões de euros para combater a caça furtiva que é mantida por… generais

O Governo angolano apresentou hoje um projecto sobre o combate à caça furtiva, com orçamento inicial de mais de 4,1 milhões de dólares (3, 4 milhões de euros), visando travar o “preocupante fenómeno que persiste” no país. A prática da caça furtiva em Angola conta com “certa protecção especial dos órgãos que garantem a ordem e segurança pública” e é promovida por “comandantes provinciais, segundos comandantes, oficiais e generais”.

O “Projecto sobre o Combate ao Comércio Ilegal da Vida Selvagem e ao Conflito entre o Homem e o Animal em Angola” tem disponíveis inicialmente mais de 4,1 milhões de dólares para a sua implementação, financiados pelo Fundo Global para o Ambiente (GEF, na sigla inglesa).

As acções e metas do projecto, que será implementado durante seis anos em duas áreas de conservação do interior de Angola, foram apresentadas hoje, em Luanda, durante um workshop promovido pelo Ministério da Cultura, Turismo e Ambiente angolano.

Fortalecer a política, o quadro legal e institucional e da capacidade nacional de gestão da vida selvagem e abordar os crimes contra a vida selvagem constituem algumas das componentes do projecto.

Segundo o coordenador nacional, Aristófanes da Cunha, o projecto, com atraso de implementação de dois anos, motivados pela Covid-19 e questões administrativas, deverá atingir um orçamento global de 20 milhões de dólares (17 milhões de euros).

Além do financiamento do GEF, o projecto “deve contar com outros co-financiamentos como do Governo e outras organizações que não são considerados em ‘cash’ (dinheiro)”, disse, referindo que tudo somado pode chegar “a mais de 20 milhões de dólares”.

A Reserva Natural Integral do Luando, na província de Malanje, e o Parque Nacional de Maiombe, na província de Cabinda, são as áreas de conservação onde o projecto será implementado devendo envolver também as comunidades locais e o género.

O objectivo é “minimizar os impactos negativos sobre a nossa fauna e flora de Angola”, afirmou o responsável, em declarações aos jornalistas.

“Reduzir a perda da nossa biodiversidade, evitando que mais espécies vão para a lista de espécies em extinção”, são outras metas desta iniciativa, considerada pelas autoridades como “ambiciosa”.

Questionado sobre a actual realidade da caça furtiva em Angola, Aristófanes da Cunha deu conta que o quadro “continua preocupante”, sobretudo nas áreas de conservação, onde o “elefante tem sido a principal vítima” dos caçadores.

“O quadro não é muito bom, porque nós até hoje ainda vemos muitos problemas relacionados com a caca furtiva, vemos animais mortos ao longo das vias, vemos e recebemos relatórios de caça furtiva dentro das áreas de conservação”, explicou.

Para este responsável, a comunidade “é um factor muito importante no combate deste mal” e, frisou, “é importante que se aloque às comunidades outras fontes de geração de renda para que elas deixem de exercer essas práticas nocivas à biodiversidade”.

Sem quantificar os registos semanais ou mensais do número de animais que são abatidos pelo país, Aristófanes da Cunha falou apenas em “muitos animais, principalmente nas áreas de conservação”, defendendo a “conjugação de esforços de todos os sectores para se pôr termo ao fenómeno”.

O ministro da Cultura, Turismo e Ambiente angolano considerou o projecto como “mais um passo importante na protecção e conservação da vida selvagem”, admitindo que o mesmo vem “garantir a preservação e continuidade das ricas espécies angolanas para as gerações vindouras”.

“Este projecto vai contribuir, igualmente, para atingir inúmeros objectivos do desenvolvimento sustentável tais como o combate à fome e a pobreza, recomposição da igualdade do género, fortalecer o crescimento económico, combater desigualdades, entre outros”, disse Jomo Fortunato, na abertura do encontro.

Em Junho de 2017, as autoridades angolanas estimavam que a caça furtiva no país movimentara nos primeiros meses desse ano 220 milhões de euros e pretendiam – diziam – apertar o combate ao fenómeno com a nova legislação que proibia a venda de animais ao longo das estradas.

Na altura, o coordenador da Unidade de Crimes Ambientais de Angola, José Rodrigues, explicou que a nova legislação veio proibir a “venda pública de animais vivos ou abatidos em todo território nacional, nas estradas nacionais ou terciárias, em mercados privados ou públicos”, decorrendo ainda uma fase de promoção de educação jurídica nas comunidades.

De acordo com José Rodrigues, a medida que tinha respaldo num decreto executivo do Ministério do Ambiente e previa, numa primeira fase, multas aos infractores, além da apreensão dos animais.

O responsável precisou que estas acções faziam parte de um plano operacional de definição de políticas públicas em matéria de preservação e conservação da vida selvagem, que iriam ainda “distinguir a caça furtiva de cariz criminoso” daquela que é praticada para “sobrevivência das comunidades locais”.

“Esta distinção vai-nos permitir poder legislar por um lado, e por outro apresentar um pacote que permita acautelar não só o interesse do Estado, que se consubstancia na preservação das espécies em vias de extinção, mas também acautelar aqui a sobrevivência das comunidades locais”, explicou.

Em Angola, segundo o coordenador da Unidade de Crimes Ambiente, o negócio da caça furtiva, incluindo com o tráfico de espécies em vias de extinção, já teria movimentado 248 milhões de dólares (220 milhões de euros), acções que se consubstanciam “num crime organizado e com implicações no sistema financeiro angolano”.

“Porque esses recursos obtidos por via do tráfico regressam ao nosso território por via do nosso sistema financeiro e há aqui a necessidade da Unidade de Inteligência Financeira do Estado angolano poder, por via da legislação do branqueamento de capitais, adoptar todas as medidas para combatermos essas práticas”, observou.

A venda de animais vivos ou abatidos – fora do circuito comercial instituído – seria punida com multas aos incumpridores, mas já na lei sobre crimes ambientais “estará tipificada não somente como uma transgressão ambiental, mas também como sendo um crime ambiental e que estará associada a ele uma moldura penal”.

“Ali, onde nós verificarmos que há a presença de animais abatidos, as pessoas e os animais serão recolhidas e nesta primeira etapa será aplicada a respectiva multa, conforme dispõe o decreto. Mas tão logo a lei seja aprovada, vamos fazer o respectivo enquadramento criminal”, adiantou.

José Rodrigues referiu ainda que as medidas surgiram não só para tirar Angola da lista de países considerados como sendo a “rota do tráfico” de produtos oriundo da flora e fauna selvagem, mas também para “conformar a legislação angolana” aos instrumentos jurídicos regionais e internacionais.

“Porque o que se assiste é uma desconformidade legislativa a nível da região por um lado e por outro ter verificado que o nome da República de Angola fica conotado no plano internacional”, concluiu.

No dia 28 de Janeiro de 2021, o director da Unidade de Crimes Ambientais afirmou que a prática da caça furtiva em Angola conta com “certa protecção especial dos órgãos que garantem a ordem e segurança pública”.

José Rodrigues, que participou num debate sobre “Crimes Ambientais: Desmatamento, Caça Furtiva e Queimadas”, realizado pela rádio pública angolana, referiu que a prática é promovida no país por “comandantes provinciais, segundos comandantes, oficiais e generais”.

Segundo José Rodrigues, esta caça é ilegal e é feita com recurso a utilização de armas de fogo, muitas de reserva especial do Estado, devido ao seu calibre.

O responsável frisou que do ponto de vista administrativo, a caça que não seja para fins de sobrevivência das comunidades é proibida, mas o que acontece na realidade é que se trata de “uma prática de rotina diária, com isenção de responsabilidade criminal, inclusive com uma espécie de uma certa protecção especial dos órgãos que garantem a ordem segurança pública”.

“Há um decreto do Ministério do Ambiente, que proíbe o comércio de espécies abatidas ou vivas em mercados e estradas nacionais, mas se nos deslocarmos a nível de todo o território nacional encontramos variadíssimos mercados onde vendem espécies abatidas, muitas delas em vias de extinção, e se vê que ao nível da cidade de Luanda há um turismo virado para o consumo de carne proveniente da vida selvagem”, afirmou o responsável.

José Rodrigues referiu que na 20ª conferência Angola/Namíbia do Comité de Defesa e Segurança, Angola voltou a ser citado pela prática da caça furtiva, tendo ficado “demonstrado de forma clara e objectiva que a caça furtiva em Angola é promovida, sustentada, alimentada por altos funcionários públicos”.

“Que em consequência da impunidade, que se transformou numa cultura em Angola, estas mesmas pessoas estão isentas de responsabilidade penal, civil e outro tipo de consequência, dedicando a sua vida aos fins-de-semana à caça furtiva”, frisou.

Em 2017, indicou ainda José Rodrigues, a Unidade de Crimes Ambientais apresentou provas ao Ministério Público, remeteu relatórios à Presidência da República, mas “a verdade é que nunca” obteve resposta.

O director da Unidade de Crimes Ambientais, criada no âmbito de um decreto presidencial, que, em 2015, criou a Comissão Multissectorial contra os Crimes Ambientais Relacionados com a Fauna e Flora Selvagem, salientou que a Procuradoria-Geral da República (PGR) é que tem a tutela da defesa do ambiente e dos interesses difusos, “mas há mais de 20 anos que não existe um pronunciamento formal” perante factos relevantes de denúncias públicas sobre desmatamentos, caça furtiva, abate de espécies emblemáticas do país.

A Unidade de Crimes Ambientais tem como finalidade recolher e classificar informação, e partilhar com os órgãos vocacionados para administração da justiça, no caso a PGR, o Serviço de Investigação Criminal e outros órgãos afins, bem como apresentar projectos de lei e propostas de programas de políticas.

Folha 8 com Lusa

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