Membros da sociedade civil angolana alertaram hoje os organismos internacionais para o “cuidado na escolha de membros” para observação eleitoral em Angola, prevista para 2022, considerando que nas eleições anteriores houve “observadores questionáveis e com reputação duvidosa”.
A posição surge numa carta dirigida a alguns organismos internacionais, apresentada hoje em conferência de imprensa, na qual pedem observadores eleitorais “credíveis, com experiência e reputação internacional”.
“É necessário a presença de observadores porque em todas as eleições anteriores, elas não foram livres, justas e nem transparentes. Por isso, os resultados são sempre questionados pelos cidadãos e pelos partidos na oposição”, afirmou Olívio Nkilumbu, um dos signatários da carta.
O documento, que conta com 36 subscritores, entre activistas, jornalistas, sacerdotes e outros, foi remetido em finais de Setembro ao secretariado da União Africana, da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), à delegação da União Europeia em Angola e ao Carter Center.
Para os signatários, todas as condições prévias para eleições livres e transparente “não estão criadas” em Angola e o Governo e o MPLA (no poder há 46 anos) “têm controlo total sobre a gestão do processo”.
“A lei viabiliza que o processo esteja sob tutela do partido no poder, a imprensa está sob controlo do governo, as forças de defesa e segurança intimidam os eleitores e em caso de contencioso eleitoral, o judiciário está composto por juízes do partido no poder e ao seu serviço”, lê-se na carta apresentada à imprensa.
Segundo os subscritores, se as referidas organizações internacionais acolherem o seu pedido “deve haver cuidado na escolha dos membros que farão parte da equipa de observadores, porque em eleições anteriores houve equipas de observadores questionáveis”.
“Portanto, pedimos observadores cuja reputação não seja sujeita de desconfiança”, defende a sociedade civil angolana.
Questionado pelos jornalistas sobre as motivações das “constantes suspeições” das eleições em Angola, Olívio Nkilumbu sublinhou que apenas a “integridade, justiça e verdade eleitoral” devem garantir credibilidade ao processo eleitoral angolano.
“Para que o nosso processo seja liso é necessário o comprometimento de quem governa e é a capacidade de quem governa em respeitar os princípios democráticos como a transparência, a lisura, a liberdade do processo”, afirmou o também politólogo.
Por um lado, referiu, a imprensa “tem que estar ao serviço do processo e dos participantes do processo, porque quando não se tem acesso à imprensa, algum dos concorrentes está em vantagem”.
“Ou seja, quando o acesso à imprensa não é equitativo, não é possível termos um processo eleitoral transparente”, notou.
“Se as próximas eleições forem ganhas pelo MPLA e for na base da integridade, justiça e verdade eleitoral que ganhe o MPLA, se for a UNITA na base da integridade, justiça e verdade eleitoral que ganhe a UNITA, será legítima e terá legitimidade de governar”, apontou.
Mas, sustentou, “quando o processo tem suspeições à partida, durante e depois, este que ganha não tem legitimidade, por isso é que vemos que depois de processos eleitorais há greves, há manifestações”.
“Como é que alguém que ganha com grandes margens um ano depois há greves, há manifestações?”, questionou igualmente Olívio Nkilumbu.
As próximas eleições gerais em Angola estão previstas para 2022. Neste momento decorre o registo eleitoral oficioso nas 18 províncias do país e o mesmo processo deve começar em Janeiro de 2022 em missões diplomáticas e consulares de Angola no exterior.
O exemplo claríssimo de 2017
No dia 2 e Maio de 2017, a União Europeia (UE), que não percebe nada da poda, julgava que mandar observadores, regra geral surdos, mudos e cegos para “monitorar o processo eleitoral em Angola” iria servir para alguma coisa útil. Isto porque queria enviá-los antes do arranque da campanha eleitoral, segundo informou na altura a porta-voz da Comissão Nacional Eleitoral (CNE) de Angola.
Júlia Ferreira avançou esta informação no final da reunião que a Delegação da Missão Exploratória da União Europeia manteve com o então presidente da CNE, André da Silva Neto.
A pretensão da UE, segundo a porta-voz da CNE, seria analisada pelo plenário da CNE, tendo em conta que nos termos da lei eleitoral angolana “a observação eleitoral só se inicia com o arranque da campanha eleitoral e termina com a publicação dos resultados definitivos”.
“Tendo em conta o que está estabelecido na lei, foi dito que nós devíamos, em plenário, verificar se há ou não alguma possibilidade de se satisfazer esse interesse da UE”, disse.
O simulacro eleições gerais em Angola de 2017, tal como as anteriores, tal como as de 2022, será – como é tradição divina no reino, ganha pelo MPLA.
As entidades competentes para convidar os observadores eleitorais nacionais e estrangeiros foram igualmente referidas pela porta-voz da CNE, lembrando que os prazos da observação eleitoral “estão estabelecidos por lei”.
“Nos termos da lei, é permitido que a CNE, o Presidente da República, a Assembleia Nacional, e o Tribunal Constitucional indiquem convidados internacionais para participarem no processo de observação eleitoral, mas tudo isso obedece aos prazos que estão estabelecidos na lei”, explicou.
Vejamos com alguma atenção quem são as entidades competentes para convidar (supostos) observadores. CNE (leia-se MPLA), Presidente da República (não nominalmente eleito e Presidente do MPLA), Assembleia Nacional (feudo esmagadoramente dominado pelo MPLA) e Tribunal Constitucional (areópago domado e dominado pelo MPLA).
Assim sendo, o melhor era (como continua a ser) a União Europeia delegar a sua observação em quem sabe. Ou seja, no MPLA. Fica tudo em família e não será preciso maquilhar a submissa rendição com ténues cores de independência.
De acordo com a responsável do MPLA (CNE, se preferirem), só estará devidamente habilitado a observar as eleições em Angola, as entidades ou individualidades “legalmente credenciadas”.
Júlia Ferreira referiu ainda que a Delegação da Missão Exploratória da União Europeia estava em Angola também para estabelecer vários contactos com as autoridades governamentais, com partidos políticos e coligações de partidos e com a sociedade civil.
“Para os auscultar e ouvir de viva voz qual o seu entendimento sobre a existência de condições para que eles venham participar no pleito eleitoral de 2017”, sublinhou.
Em relação a 2022, o ideal seria a União Europeia optar pela estratégia da União Africana e da CPLP e fazer já o relatório sobre as eleições e mandá-lo, a tempo e horas, para ser aprovado pelo MPLA.
É que as verdades em Angola têm prazo de validade e, se ultrapassado, constituem crime contra a segurança do Estado e até mesmo tentativa de golpe de Estado.
Recordam-se, por exemplo, que o então presidente da Comissão Nacional Eleitoral (CNE), Caetano de Sousa, considerou que as observações feitas pela União Europeia em relação às eleições de 2008 eram extemporâneas? E eram extemporâneas apenas porque, segundo ele, não foram divulgadas logo após o pleito de 5 de Setembro. Não esteve mal e foi um precedente útil, ou um aviso, para quem ousar meter-se com um regime que está no poder desde 1975.
Na altura, em declarações à Voz da América, Caetano de Sousa considerou que as posições expressas no relatório final da Missão de Observação da União Europeia não deviam sequer ser feitas nesta altura. Portanto… toca a fazer o relatório para prévia aprovação.
A isso acresce que fica mal, muito mal, à UE mandar observadores ao mais democrático e transparente Estado de Direito do mundo, Angola. Estarão, por acaso, os europeus a pensar que o reino do MPLA é a Coreia do Norte ou a Guiné Equatorial? Francamente.
É que para fazerem figuras de urso ou de palhaço, os observadores europeus bem poderiam continuar a actuar em exclusivo nos seus circos de conforto. Este ano não será diferente.
O relatório então apresentado em Luanda pela chefe da Missão de Observação da União Europeia, Luísa Morgantini, denunciou um manancial de coisas que, como se sabe, nunca existiram nem existirão. Falar de falhas, irregularidades, fraudes e quejandos no desempenho da CNE no que toca à imparcialidade na tomada de decisões, assim como na garantia de transparência durante o acto eleitoral é o mesmo que dizer que o regime angolano é dos mais corruptos do mundo. E isso – embora verdade – não é admissível nem aceitável…
“Para nós não nos oferece comentários se não os que já foram feitos anteriormente. O relatório já está fora de prazo, isto devia ser apresentado logo a seguir à finalização e apresentação do escrutínio. Os comentários posteriores a isto já não os comentamos, porquanto achamos ultrapassados”, explicou Caetano de Sousa, certamente num improviso decorado a partir da ordem do soba maior. Em 2017 foi outro o protagonista da CNE mas (nada como ser coerente) o resultado final será sempre o mesmo. É assim há 46 anos.
O puxão de orelhas à Missão de Observação da União Europeia foi muito bem feito. Ousaram, embora timidamente, “cuspir” no prato em que o MPLA lhes deu comida e por isso foram tratados como não se tratam os vira-latas.
Recorde-se que o relatório referia-se a um leque de anomalias registadas durante a votação, desde a notória falta de acesso dos representantes dos partidos políticos ao centro de apuramento central, à não acreditação de um número significativo de observadores domésticos.
Interessante foi ver que, mesmo obrigados a comer e a calar, os observadores europeus não deixarem de verificar que, por exemplo, uma província “apresentou uma participação eleitoral de 108%” e que “não foram utilizados os cadernos eleitorais para a verificação dos eleitores no dia das eleições e como tal, não houve mais salvaguarda contra os votos múltiplos além da tinta indelével, e nenhum meio para confirmar as inesperadamente elevadas taxas de participação eleitoral”.
Mas como só o disseram dias depois… são umas verdades que não contam porque passou o prazo de validade.
Os observadores disseram ainda que “houve falta de transparência no apuramento dos resultados eleitorais”, “que não foi autorizada a presença de representantes dos partidos políticos nem de observadores para testemunhar a introdução dos resultados no sistema informático nacional e não foi realizado um apuramento manual em separado”, para além de “não terem sido publicados os resultados desagregados por mesa de voto e como tal não foi possível a verificação dos resultados”.
Também Ana Gomes, eurodeputada socialista portuguesa que então integrou a missão da União europeia, disse que eram “legítimas as dúvidas que foram levantadas por partidos políticos e organizações da sociedade civil sobre a votação em Luanda”, ou que “posso apenas dizer que a desorganização foi bem organizada”.
Mas Ana Gomes foi mais longe: “À última da hora, foram credenciados 500 observadores por organizações que se sabe serem muito próximas do MPLA e parece que alguém não quis que as eleições fossem observadas por pessoas independentes”.
Ou, “as eleições em Luanda decorreram sem a presença de cadernos eleitorais nas assembleias de voto e isso não pode ser apenas desorganização…”
Enfim. Como são verdades que não contam, o melhor é – repita-se – fazer já um relatório sobre as eleições de 2022 e mandá-lo, a tempo e horas, para ser aprovado pelo MPLA. Só assim o regime angolano poderá continuar a dizer que no país há separação de poderes e, ainda, que Angola é uma democracia estável e um Estado de Direito de elevado potencial…
Folha 8 com Lusa