DEMOCRACIAS ALIMENTAM AS DITADURAS E DEPOIS SÃO… COMIDAS

Pela primeira vez em quase uma década, o número de países africanos classificados como autoritários no Relatório sobre o Estado Global da Democracia ultrapassa o número de democracias. Não é só em África, obviamente. Mas a verdade (os angolanos são testemunhas privilegiadas) é que a democracia está a perder a guerra, seja por incapacidade interna, causas externas (pandemia da Covid-19) e, ainda, pela letargia e conivência das mais válidas… democracias.

Um relatório do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA, na sigla em inglês) revela que o mundo está a tornar-se mais autoritário e que os governos democráticos estão a retroceder, recorrendo a práticas repressivas e enfraquecendo o Estado de Direito… quando ele existe.

O estudo mede o desempenho democrático de 158 países desde 1975 e classifica os regimes como democráticos, híbridos ou autoritários. O trabalho conta com um relatório regional sobre África, que revela um declínio gradual da qualidade da democracia no continente.

Os autores do relatório concluem que o declínio democrático, que ocorreu nos últimos anos, inverte uma tendência de melhoria da qualidade democrática que se verificava no continente há três décadas. Em 1985, exemplificam, havia apenas três democracias e 42 regimes autoritários em África, mas em 2015 já havia 22 regimes democráticos no continente.

Em 2020, ano a que se refere o relatório, a organização classifica 18 países como democracias, 19 como regimes autoritários e 13 como regimes híbridos.

Por sub-regiões, quase todas as democracias (excepto duas) estão nas regiões da África Austral e Ocidental, não há qualquer democracia entre os sete países da África Central e existe apenas um regime democrático no Norte de África e outro na África Oriental.

Apesar de a realização de eleições regulares continuar a ser norma no continente, a qualidade democrática das eleições está em queda, conclui o relatório, acrescentando que existem tentativas de remover limites de mandatos presidenciais, o que coloca um risco a democracia.

Além disso, recordam os autores, no ano de 2020 registaram-se quatro golpes militares que vingaram: no Chade, Guiné-Conacri, Mali e Sudão. O relatório revela também que a pandemia de Covid-19 aprofundou a tendência da deterioração democrática, concluindo que, a nível global, 64% dos países tomaram uma medida considerada desproporcional, desnecessária ou ilegal para conter pandemia até Agosto deste ano.

Recordando que, no final de 2020, África era a segunda região do mundo menos afectada pelo impacto da Covid-19 na saúde, os autores alertam que a pandemia exacerbou desafios socioeconómicos, securitários e políticos preexistentes, que contribuíram para o declínio da qualidade democrática que já tinha começado.

Segundo o relatório, o impacto da pandemia resultou sobretudo em declínios das liberdades civis, especialmente na liberdade de expressão, liberdade de associação e reunião e na emergência de novas formas de desigualdades sociais.

Pelo menos 29 países reduziram a liberdade de expressão ao criminalizarem a desinformação sobre a pandemia e ao adoptarem leis que restringiram a liberdade de Imprensa e na Internet.

Até hoje, 13 países tornaram a desinformação sobre a Covid-19 um crime punível com prisão, o que, segundo o relatório, forneceu por vezes a base para as autoridades reprimirem jornalistas e dissidentes, metendo (por conveniência autoritária) todos no mesmo saco.

Os governos usaram de força militar para aplicar as regras relacionadas com a Covid-19, alertam ainda os autores do relatório, acrescentando que em alguns casos isso prejudicou a liberdade, legitimidade e competitividade de eleições.

Em 21 países foi relatado o uso excessivo de força e em nove, incluindo Angola, Etiópia, África do Sul ou Sudão, o exército foi mobilizado para fazer cumprir medidas contra a pandemia ou contra aquilo a que dava jeito aos governos catalogar como pandemia. A pandemia teve ainda influência no aumento generalizado da violência contra as mulheres em todo o continente, devido aos confinamentos, diminuição de rendimentos e acumulação de stress social nos lares.

Os efeitos políticos mundiais da pandemia de Covid-19 ainda se vão fazer sentir nos próximos anos, à medida que a qualidade das democracias se degrada, defendeu Kevin Casas-Zamora, secretário-geral da IDEA.

Em declarações à Lusa, Kevin Casas-Zamora mostrou-se preocupado com os resultados do mais recente relatório que revela que o planeta está a tornar-se mais autoritário, com o número de países que seguiram uma trajectória autoritária em 2020 a superar o número daqueles que seguiram uma trajectória democrática.

A pandemia de Covid-19 agravou a estabilidade de vários regimes democráticos, mas a tendência de degradação das democracias no mundo já se fazia sentir há vários anos, explicou Casas-Zamora.

O secretário-geral da IDEA teme mesmo que os efeitos políticos da pandemia de Covid-19 ainda não se tenham feito sentir e que os próximos anos revelem dados ainda mais preocupantes sobre a qualidade das democracias.

“Eu não vejo qualquer sinal de inversão da tendência que se verifica há, pelo menos, cinco anos. Bem pelo contrário, as consequências políticas da pandemia podem ainda vir a reflectir-se negativamente no futuro próximo”, disse Casas-Zamora.

A versão deste ano do relatório sobre o estado das democracias mostra que o número de Estados democráticos onde se verificaram retrocessos nos parâmetros avaliados duplicou na última década, incluindo países como os Estados Unidos da América e alguns países da União Europeia, como Hungria, Polónia e Eslovénia.

“O facto de democracias populosas — como os Estados Unidos, a Índia e o Brasil — estarem a demonstrar sinais de fragilidade deve preocupar-nos, pelo efeito que pode ter sobre outras democracias”, explicou o secretário-geral da organização com sede em Estocolmo.

Casas-Zamora alertou ainda para o facto de o problema não residir apenas no avanço dos regimes autocráticos, mas também na fragilização dos regimes democráticos.

“Vários parâmetros analisados revelam que a qualidade geral das democracias, mesmo as estabilizadas, está a diminuir. E isso sente-se na forma como as pessoas participam na vida democrática ou na forma como os governos são monitorizados”, explicou o investigador.

Apesar deste diagnóstico pessimista, Casas-Zamora lembra alguns dados positivos revelados pelo relatório sobre o estado das democracias nesta era de pandemia.

“Apesar das condições particularmente difíceis, vários países mantiveram o seu calendário eleitoral e conseguiram realizar eleições de forma transparente e pacífica”, disse o secretário-geral, dando o exemplo da Coreia do Sul, que conseguiu evitar um adiamento das suas eleições, em plena pandemia.

“Por outro lado, o nosso relatório revela que o activismo cívico tem vindo a aumentar em várias regiões do mundo”, acrescentou Casas-Zamora, referindo a situação em Myanmar ou na Bielorrússia, onde movimentos pró-democracia têm feito ouvir a sua voz, apesar das ameaças autocráticas dos regimes.

Folha 8 com Lusa

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