A proposta de revisão da Constituição, apresentada por João Lourenço, para além de ser uma forma de desviar a atenção de outros graves problemas (por exemplo do fracasso económico e social da governação do MPLA, bem como da emblemática luta contra a corrupção) é uma cortina de fumo para distrair os incautos internos e sossegar a comunidade internacional.
Desta vez, outras se seguirão, João Lourenço ou disse ou mandou dizer que a proposta acautela as questões de nacionalizações e confiscos, categorias já previstas na lei, impondo como limites para a sua aplicação, a existência de ponderosas razões. Neste caso, o porta-voz do Executivo (mais uma vez vestindo a farda de voz da porta do chefe de posto), foi o ministro da Justiça e Direitos Humanos, Francisco Queiroz.
As propostas de revisão da Constituição que Angola se prepara para supostamente debater foram hoje reveladas, em Luanda, pelo ministro de Estado e chefe da Casa Civil do Presidente da República, Adão de Almeida, numa apresentação partilhada com os ministros da Administração do Território, Marcy Lopes, e da Justiça e Direitos Humanos, Francisco Queiroz.
“A dinâmica económica e, sobretudo, o conflito entre a economia e a lei levou a que fossem tomadas medidas recentemente sobre bens que foram recuperados e faltou — e está a sentir-se essa falta – enquadrar a nacionalização de certos bens que comprovadamente foram adquiridos com recurso do Estado”, justificou.
Com a alteração, a lei passa a poder enquadrar de forma punitiva a reversão ou inclusão desses bens no património do Estado, indicou o ministro. Novamente, se Angola fosse um Estado de Direito Democrático e não tivesse o mesmo partido a governar há 45 anos, o MPLA seria despojado de todos os seus bens que deveriam pertencer ao país enão a um partido.
Francisco Queiroz salientou, no entanto, que a proposta impõe limites “pois só se aplica onde houver ponderosas razões de interesse nacional que vão estar definidas na lei ordinária”, e se estas não existirem não pode ser aplicada a nacionalização. Razões ponderosas que, certamente, salvaguardam a manutenção do património do MPLA.
Quanto ao confisco, só pode ser aplicado havendo ofensa grave da lei que protege os interesses económicos do Estado, acrescentou. Pois é. Mas, no caso de Angola Estado é sinónimo de MPLA e não, como deveria ser, Nação considerada como entidade que tem governo ou Governo político do povo constituído em nação.
A proposta de revisão constitucional introduz também a categoria de propriedade comunitária “que existe, de facto”, mas não tem, expressão legal nem constitucional.
“Estamos agora a propor que o conceito seja incluído na Constituição para enquadrar os bens de produção das comunidades rurais, tendo em vista os programas de desenvolvimento que estão definidos para essas áreas da economia e têm encontrado dificuldades para conferir titularidade dos bens de produção comunitários aos membros da comunidade”, justificou o governante.
Outra categoria proposta é a da economia não estruturada, incluindo a economia informal e tradicional, tendo em vista o seu tratamento para introdução paulatina na economia estruturada, adiantou Francisco Queiroz.
A revisão pontual da lei constitucional em vigor em Angola desde 2010 foi anunciada hoje pelo Presidente da República, João Lourenço, que já enviou a proposta para a Assembleia Nacional.
Poderes a mais? Não. A menos? Sim
Em Junho de 2019, João Lourenço negou deter poderes constitucionais excessivos, sublinhando que a revisão da Carta Magna não é um acto obrigatório, havendo órgãos com competência para avançar com o processo. E, afinal, quem avançou? Ele próprio. Provavelmente por ter poderes a menos…
Entrevistado conjuntamente pelo semanário Novo Jornal e pela Televisão Pública de Angola (TPA), João Lourenço admitiu que a revisão da Constituição pode acontecer a qualquer momento, desde que se saiba com que objectivo.
No seu entender, o próprio Presidente pode desencadear o processo de revisão, não sendo, porém, obrigado a fazê-lo por entender que não existem razões expressas.
João Lourenço salientou também que cabe ao Parlamento (onde o partido do qual é Presidente tem uma mais do que confortável maioria), através da Conta Geral do Estado (CGE), fiscalizar a sua acção enquanto Presidente da República.
No início de 2019, os dois maiores partidos da oposição em Angola defenderam a revisão da Constituição do país, considerando que a versão actual atribui “excessivos poderes ao Presidente da República” e que “não está adequada para servir o interesse dos cidadãos”.
Segundo o presidente do grupo parlamentar da UNITA, maior partido da oposição que o MPLA ainda permite que exista, o “excesso de poderes” do Presidente angolano, emanado da Constituição de 2010, concorre para constantes solicitações de autorizações legislativas ao Parlamento, situação que deve merecer “alguma ponderação”.
“É preciso acautelar para que não se esteja a caminhar para o excesso de poderes concentrados. A leitura que temos é que devíamos já estar na altura de podermos aceder a uma revisão do excesso de poderes. Angola faz hoje uma transição de um Presidente da República [João Lourenço] que está a vestir um casaco que foi feito à medida do anterior Presidente da República [José Eduardo dos Santos]”, disse – na altura deputado – Adalberto da Costa Júnior.
“É preciso assumir que o país, formatado como se encontra, não está adequado a servir o interesse dos cidadãos. Temos necessidade de uma revisão da Constituição, da lei eleitoral (…) e, quanto mais se retardar estas matérias, mais se tem o país impreparado para servir o interesse comum”, sustentou.
André Mendes de Carvalho, então presidente do grupo parlamentar da CASA-CE, também defendeu a revisão da Constituição.
De acordo com o deputado, “há vários aspectos” na Constituição que “carecem de alguma revisão”, desde logo o “modelo de eleição” do Presidente da República, que, no seu entender, “é impróprio” para um regime presidencialista.
“Quando queremos um indivíduo com os poderes todos que o Presidente tem, ele [chefe de Estado] tem de ser eleito de uma maneira mais direita, porque não pode estar no meio dos deputados como cabeça-de-lista e ‘virar’ Presidente”, realçou.
Brincadeiras de mau gosto e criminosas
Em 2014, com o intuito propagandístico típico dos regimes autocráticos, o Ministério dos Assuntos Parlamentares promoveu simultaneamente em Luanda e no Huambo debates sobre a Constituição, integrados, de acordo com a versão oficial, nas comemorações do quarto aniversário da promulgação daquela que, apesar de feita à medida e por medida de sua majestade o rei de então, José Eduardo dos Santos, deveria ser a lei fundamental do país.
Rosa Micolo, ministra dos Assuntos Parlamentares afirmou na altura ao órgão oficial do regime, o Jornal de Angola, que um dos grandes objectivos das jornadas, que decorreram sob o lema “Vamos fazer da Constituição um instrumento de trabalho”, “era reforçar o sentimento patriótico, o respeito pelos símbolos nacionais e incutir nos angolanos a consciência da importância do primado da Constituição”.
“Trata-se da lei de todas as leis e por isso as outras devem subordinar-se-lhe”, disse Rosa Micolo, que sublinhou o interesse de se “divulgar a importância da Constituição” e de a tornar “numa espécie de livro de bolso”.
Das duas, uma. Ou a ministra não sabia o que dizia ou não dizia o que sabia. Rosa Micolo sabia bem (como melhor ainda sabe hoje João Lourenço) que, para além do seu Ministério pouco mais ser do que uma figura de estilo, uma formalidade, a Constituição só é “a lei de todas as leis” quando isso interessa ao regime. Quando não interessa, outros valores prevalecem. Basta ver que quando a Oposição chama à colação o articulado da Constituição logo aparecem, sob o manto da segurança do Estado, arautos a dizer que quem tem sempre razão são os donos do poder.
A então ministra referiu também ser importante que os angolanos, independentemente de onde estejam, “dominem os princípios e valores constitucionais para fazerem prevalecer direitos e liberdades fundamentais e vincarem a cidadania”. Bem que Rosa Micolo poderia, como lhe mandam, fazer a apologia da Constituição sem ter, ao mesmo tempo, de gozar forte e feio com a chipala dos angolanos. É que essa de dizer que os cidadãos devem “fazer prevalecer direitos e liberdades fundamentais e vincarem a cidadania” não lembraria nem aos jacarés de ontem nem aos de hoje que se alimentam dos corpos daqueles que tentaram usar a Constituição como “uma espécie de livro de bolso”.
A ministra considerou, segundo relata o órgão oficial, que o desconhecimento do real significado da Constituição leva a que seja mal interpretada e a atitudes erradas.
“Há pessoas que nem sequer sabem que a liberdade de escolha decorre da própria Constituição, que consagra e garante direitos políticos, sociais e culturais a todos”, explicou a ministra, acrescentando que “os nossos direitos e liberdades económicos, políticos e culturais estão previstos e plasmados na Constituição e apenas conhecendo-a é que se percebe que ninguém está excluído, que é de todos e para todos”.
Por outras palavras, a ministra dos Assuntos Parlamentares disse que o Presidente da República, o Governo, os deputados do MPLA e restantes órgãos se soberania não conhecem a Constituição, tal a violação sistemática que dela fazem. Se conhecessem saberiam, de acordo com a ministra, que a lei das leis consagra “os nossos direitos e liberdades, que ninguém está excluído, que é de todos para todos”.
Esta iniciativa de debater o assunto, de acordo com Rosa Micolo, destinava-se “a desmistificar a ideia de Constituição” tida como “um mito ou um bicho-de-sete-cabeças”. De facto, e de jure também, para os milhões de angolanos que são gerados com fome, nascem com fome e morrem pouco depois com fome, é mesmo um mítico bicho-de-sete-cabeças. Para os que tentam cortar a cabeça a essa hidra, o resultado tem sido desastroso. Por cada cabeça cortada nascem mais duas.
A ministra recordou ao JA que o analfabetismo impede que se consigam “resultados mais imediatos”, mas referiu estar “animada porque os órgãos do Estado e as organizações da sociedade civil têm trabalhado de forma exemplar para os cidadãos, sabendo ler e escrever, tenham melhores condições de defender os direitos reconhecidos na Constituição”.
A ministra não só gozou com os desgraçados como, teimando em dizer que a Constituição é igual para todos, pareceu estar num qualquer transe hipnótico ou, quem sabe, num sádico orgasmo alimentado pela desgraça dos escravos.
“Em muitos países os cidadãos evocam normas e princípios constitucionais em defesa de situações do dia-a-dia”, afirmou a ministra, dizendo mesmo que estão “a trabalhar para que entre nós suceda o mesmo, pois queremos que os cidadãos tenham uma convivência sã na sociedade, conheçam e exerçam os seus direitos, mas também respeitam os dos outros”.
Rosa Micolo não explicou porque é que, sempre que procuram “exercer os seus direitos” à luz da Constituição, os cidadãos são ameaçados, detidos, torturados e assassinados. Talvez devesse explicar que, com esta lei das leis, o Presidente da República não é eleito de forma nominal e que, apesar disso, é ele que escolhe o Vice-Presidente, todos os juízes do Tribunal Constitucional, todos os juízes do Supremo Tribunal, todos os juízes do Tribunal de Contas, o Procurador-Geral da Republica, o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas e os Chefes do Estado-Maior dos diversos ramos militares.
Rosa Micolo rejeitou, com a liberdade que tem para – de acordo com a Constituição – pensar da mesma forma que os seus superiores, a tese da “partidarização da Constituição”, que “é soberana e não tem partido”.
Mais tento na língua e bom senso não ficaria mal à então ministra, como hoje não ficará mal a João Lourenço. Afirmar que esta Constituição “é soberana e não tem partido” é como dizer que os rios nascem no mar ou, melhor, como obrigar a UNICEF a entrar na cadeia alimentar dos jacarés porque diz que Angola é dos países com maior índice de mortalidade infantil.
Sobre a suposta separação de poderes, a ministra dizia que “em Angola estão bem definidos”, que “há o legislativo, que é do Parlamento, o exercido pelo Presidente da República enquanto titular do poder executivo, e o judicial, o dos tribunais”.
Que boa novidade nos deu Rosa Micolo. Todos sabemos que, em teoria, os poderes estão separados. Na prática todos sabem que quem manda no Parlamento é o MPLA e quem manda no MPLA era José Eduardo dos Santos e hoje é João Lourenço. Todos sabem que o Governo executa o que o seu líder manda. Todos sabem que o poder judicial, os tribunais, a PGR existem e que quem neles manda – por força da Constituição – é João Lourenço.