O músico Bonga vai celebrar 50 anos de carreira com dois concertos, em Novembro, na Altice Arena, em Lisboa, e no Pavilhão Rosa Mota, no Porto, anunciou a promotora esta sexta-feira. Os concertos acontecem nos dias 19 e 20 de Novembro, em Lisboa e Porto, respectivamente.
“Para além das canções mais conhecidas do público, como Mariquinha, Olhos Molhados ou Homem do Saco, vão fazer parte do alinhamento destes concertos de celebração alguns temas de Kintal, o novo disco de inéditos do cantor que nos remetem para o percurso de vida do próprio”, pode ler-se no comunicado divulgado pelo Grupo Chiado.
Bonga é o nome artístico de José Adelino Barceló de Carvalho, nascido em Kipiri, na província angolana do Bengo, em 1942. Aquando do seu 75.º aniversário, em entrevista à Lusa, Bonga recordou “os tempos difíceis” que viveu, tendo chegado “a ser proibido de actuar, até em Angola”, e quando a música angolana, “de forma pejorativa, era chamada de folclore”.
“Houve um período de preconceito, em que chamavam [à música angolana] folclore, o que era um bocado pejorativo, e [houve] obstáculos que tive de enfrentar, porque era uma música diferente, que não era valorizada, menos ouvida, e hoje, mais que nunca, tenho a consciência de ter posto um tijolo nessa grande construção que é a divulgação, consequente, desta nossa música angolana/africana”, afirmou o músico, acrescentando que a música angolana, actualmente, “é mais reconhecida e conceituada do que há 20 anos”.
Referindo-se às fusões musicais como kizomba com kuduro, o músico considerou que “correm o risco de passar depressa”, ao contrário do género que sempre cantou, “o semba, que está definido, que é angolano, e é intemporal, aliás, mesmo os que fazem essas fusões acabam por vir bater ao semba”. Bonga referiu-se ao semba como uma música “que tem uma expressão própria e uma vivência muito forte em relação a todo um povo que fez disso a sua forma de vida”.
Comparando-se ao Vinho do Porto, afirmando que “quanto mais velho melhor”, daí “continuar hoje a ser cantado pelos mais novos”. Bonga estreou-se em 1972 com o álbum Angola 72, ao qual se sucederam outros 39, entre eles cinco colectâneas e dois gravados ao vivo. Em 2014, a França condecorou-o com a Ordem das Artes e Letras, Grau de Cavaleiro.
Condecoração de Bonga deu lucros ao MPLA
No dia 11 de Novembro de 2018 escrevemos aqui que até os que nunca quiseram saber quem era Bonga, estavam então rendidos. Isto a propósito da Medalha de Bravura e do Mérito Cívico e Social, 1.ª Classe, que lhe foi outorgada por João Lourenço.
Também escrevemos que com uma medalha (condecoração), João Lourenço “comprava” mais uma fidelidade, mais um apoio para a sua causa populista. Acrescentámos que Bonga (como outros) não percebeu que a condecoração era uma forma de cegueira. Ou seja, que a partir dessa altura ele deixaria de ver que Angola tinha 20 milhões de pobres, que é um dos países mais corruptos do mundo, que tem criminosos índices de mortalidade infantil.
No dia 26 de Novembro de 2018, em entrevista à Lusa, Bonga confirmou tudo o que escrevemos. Reconhecemos, contudo, que foi mais rápido do que estávamos a prever.
Bonga defendeu nesse dia que as mudanças que o Presidente de Angola estava a efectuar “estão a ser sentidas pelos angolanos”, que já vêem algo mais do que a “cepa torta” em que o país caiu.
Bonga recusou a ideia de ser propagandista – “não o fui no passado, não o sou agora” -, mas destacou que as acções de João Lourenço estavam a ter “grande impacto” quer interna quer externamente. É claro que isto não é propaganda. É apenas e só… propaganda.
“Se temos hoje o número um da política angolana, um novo presidente, que mudou, e está a fazer o que está a fazer, sentido pelos angolanos todos e pelo mundo, principalmente pelos países por onde já andou, as impressões que deixou tiveram um impacto tremendo”, explicou.
José Adelino Barceló de Carvalho destacou que o impacto “não é o falado”, mas sim o que “está a ser praticado em função daquilo que [João Lourenço] diz”, realçando que é “realista, não propagandista”, com base no que está a observar no país, fruto também das “dicas” de compatriotas que lhe vão dando conta das alterações.
“Dizem-me: ‘agora estamos a sentir, pá, o homem está aí a falar sério e a realizar, com algumas dificuldades, pois estávamos habituados àquela cepa torta, em que não íamos a lado nenhum e o país estava a degenerar’”, referiu.
Até agora Bonga não teve tempo de falar com alguns dos 20 milhões de pobres, com os familiares das vítimas da malária, da tuberculose, da sida, não necessitou de se “tratado” num hospital público, de procurar emprego etc. etc..
Dois desses exemplos, emblemáticos para Bonga, foram as operações “Transparência” (de combate desumano e muitas vezes selvagem à imigração ilegal e à exploração selvagem de diamantes) e “Resgate” (para impor – custe o que custar – o autoritarismo despótico e não a autoridade do Estado em todo o país), que, apesar de terem sido organizadas pelo Governo, “é da responsabilidade de todos os angolanos”.
“Quem não quer uma casa limpa, os filhos assistidos com medicamentos e na escola? Quem não quer o fim da fome e da precariedade? Todos nós queremos isso. E isso está a ser feito, o que é muitíssimo importante”, assinalou Bonga, indicando que não interessa o tempo que vai demorar a mudar a mentalidade dos angolanos.
Trajando um “t-shirt” com a frase “Nunca desistas!”, Bonga assumiu que, durante o período em que foi considerado como “maldito” para o regime de 38 anos do antigo Presidente José Eduardo dos Santos, esquecendo que João Lourenço foi seu ministro e vice-presidente do MPLA, nunca desistiu, “mesmo em situações conturbadas”.
“Esta terra é nossa, dos angolanos, por conseguinte, a terra de origem nunca pode ser abandonada. Nem pensar”, frisou, lembrando que foi vítima de um regime à semelhança de milhares de outros.
É verdade. Foi vítima. Já sabemos que Bonga não se recorda de João Lourenço ter sido ministro e alto dirigente do regime, mas será que também não se lembra de outras vítimas? Claro que não. As “ordens superiores” a isso obrigam.
“Qualquer que seja o passante das ruas, verifica-se que tem mágoas muitos grandes, de crianças que desapareceram, de grandes homens, da política, da literatura, da música e de outras artes, para não falar do anonimato, enfim, fez com que tivéssemos a tal ‘lágrima no canto do olho’, condoídos com esse sofrimento, com a colaboração e conivência de muitos estrangeiros que venderam para aqui armamento bélico e não só”, afirmou.
Esses muitos estrangeiros, explicou, vieram porque Angola é uma terra “rica e apetecida” e “não porque gostavam dos angolanos, mas para fazerem o ‘business’ com lucros chorudos. Isso tem as suas consequências e é complicado quando está em causa um povo que lutou, teve a sua independência e viveu ainda com dificuldades. Isso é muito aborrecido e não há quem não sinta esta mágoa que trazemos no peito”, notou.
Sobre se tencionava regressar definitivamente a Angola, Bonga Kuenda disse tratar-se de uma questão “complexa”, mas admitiu que, se tudo continuar a evoluir no bom caminho, pode vir a pensar no assunto.
Pois é. Medalha ao peito… mas rumo à Europa. É assim mesmo Bonga! As árvores (e alguns, poucos, Homens) morrem de pé. Os outros, talvez pelo peso das condecorações (tachos e similares) são obrigados a estarem de joelhos.
“Se a situação continuar como está, vamos pensar nisso. Não depende só de mim. Tenho um grupo com quem trabalho, que vive no estrangeiro, a minha família, os meus filhos, que nasceram no estrangeiro. Muitos em Angola fazem-me essa pergunta. Mas não posso vir a correr para fazer outro tipo de trabalho. Vivo da música e sou um exemplo nisto tudo. Os 40 e muitos anos de carreira significam uma vida profissional empenhada, que tem cabeça, tronco e membros. E continua porque continuo a ser solicitado”, argumentou.
“Eu sou daqui, nascido aqui, nunca me esqueci daqui, nunca cortei o cordão do umbigo com a terra de origem. Por essa razão me gostam tanto, me gostam bué, me querem tanto”, realçou.
“Os mais inconvenientes na minha terra são os doutores, engenheiros, advogados, porque são imitadores da cultura do outro, e isso é triste. E são incapazes de ter uma conversa com a mãe que é lavadeira, com o pai que é analfabeto, têm vergonha porque são complexados, e estão sempre com a gravata”.
Quem disse isto? Quem teve coragem de afirmar tão lapidar análise da sociedade elitista de Angola, quase toda do MPLA? Pois é. Foi Bonga em entrevista ao português Diário de Notícias, em 29 de Agosto de 2018.
Nessa mesma entrevista, Bonga afirmou: “Quarenta graus à sombra e ele está com uma gravata quase a sufocar e um casaco que veio de Londres, e as falas idênticas a qualquer telejornal em Portugal. Que vergonha! Esse tipo de indivíduos é prejudicial à nossa coesão artística, social, psicológica. E são eles que são os professores, os generais, os ministros. Onde é que a gente vai parar?”
Foto. Bonga com o director do Folha 8, William Tonet, em Dezembro de 2016
Folha 8 com Lusa