Senhor general João Lourenço, peça desculpa a bem da pacificação dos espíritos. A única porta de saída para todo este imbróglio [no caso das vítimas do 27 de Maio] é o senhor general reconhecer a hecatombe causada pela ditadura de Agostinho Neto.
Por Carlos Pacheco
Historiador angolano (*)
S enhor Presidente, Dirijo-me à vossa pessoa na qualidade de cidadão soberano e independente que não presta vassalagem a governos e a partidos políticos.
Fala-se por aí, nos círculos oficiais e nos pregões de uma certa imprensa que se agita em arroubos de satisfação, que o vosso governo se propõe expiar os crimes do 27 de Maio e emitir certidões de óbito, ao mesmo tempo que se predispõe a levantar um memorial às vítimas. Se uns poucos de cidadãos por acomodação e imoralidade política aceitam esta oferta fantasiosa, outros, no entanto, soltam um brado de repulsa. Falo da maioria das vítimas (dos sobreviventes e das famílias dos desaparecidos forçados) que rejeitam em bloco esta farsa monumental liderada pelo senhor. Ninguém em sã consciência, por decoro pessoal, aceita comungar deste teatro de embustes em troca apenas de certidões de óbito e em troca de uma bizarria chamada memorial.
Até os mortos, se tivessem voz, se indignariam com tamanha trapaça. É evidente o logro de tudo isto, fazer-se do memorial a chave principal da pacificação dos espíritos quando ainda nem sequer se aclararam outros requisitos bem mais importantes. Semelhante propósito não serve senão para anestesiar as pessoas e levá-las a acreditar nas proclamadas boas intenções do seu governo. Ao invés de ser o fim do começo, o monumento deve ser o começo do fim no tocante à reparação da culpa do Estado e do Partido dominante.
Ou seja, o seu governo insiste em tratar o problema da reparação das injustiças socorrendo-se de métodos indesejáveis. Invertem-se os termos da equação num puro jogo de ilusionismo político. Antes das certidões de óbito e do memorial é forçoso que o senhor, na qualidade de chefe do Estado, reconheça explicitamente a responsabilidade do seu Partido e do governo de Agostinho Neto nas barbaridades de 1977-1979 que empurraram Angola para um marco civilizatório dos mais sombrios e repugnantes. Que se apontem aos olhos do país e da comunidade internacional os nomes dos mandantes do Bureau Político e das cúpulas do Estado responsáveis pelas engrenagens de morte que devastaram o país de lés a lés.
Sem este primeiro passo é escusado falar do resto. É perda de tempo, é casuísmo destinado a confundir as consciências. Às vítimas assiste plena legitimidade, à luz do Direito Internacional, de impugnar a política de impunidade persistente no seu governo. O senhor segue o manual político do seu antecessor, distorce a verdade dos factos e dissimuladamente promove a ocultação dos assassinos do 27 de Maio. É um crime grave, o da impunidade, quando praticado sob o acicate do Estado. Até aos nossos dias os grandes e pequenos torcionários desse período de terror permanecem blindados por uma lei da amnistia. Mas não bastasse esta ofensa, o seu governo (pela voz do ministro da Justiça) promove campanhas de amnésia sobre as atrocidades do passado, tentando desta maneira substituir todo o crisol de horrores por paliativos de justiça.
Receba, pois, senhor general, um não rotundo das vítimas, elas rejeitam os malabarismos do seu governo. Rejeitam a bondade do seu projecto, tido por suspeito. Rejeitam as arengas sulfurosas do ministro da Justiça que nos fazem lembrar aquele bobo das histórias infantis que divertia as multidões com os seus requebros de dançarino. Quanto mais dançava, mais agradava aos tolos que se sentiam deslumbrados. Quando lhe perguntaram por que fazia aquilo respondeu: – “Não sei, mas vou dançando, os tolos apreciam”.
Ora, a diferença, no caso das vítimas do 27 de Maio, é que elas não apreciam estas coreografias de hipocrisia, elas não são tolas. Por isso, é impossível haver cedências perante coisas tão graves que correspondem a um período tenebroso da história de Angola. Ou seja, um período de grandes crimes, no decurso do qual se institucionalizaram as práticas mais abjectas e cruéis: terrorismo de Estado, torturas e matanças em série que despojaram as vítimas do direito à defesa. Não raro se trucidavam as pessoas em orgias de prazer alucinante. Até do alto da Serra da Leba (no Lubango) se precipitaram no vazio prisioneiros ainda vivos. Despejavam-nos no abismo directamente dos camiões militares que os transportavam. Ante um caudal de crimes desta envergadura, basta de ofender a memória das vítimas com promessas ilusórias; basta de as ofender depois de tantos diques de silêncio e depois de tantas ameaças e vilezas produzidas pelo vosso Partido nas últimas décadas.
O seu regime, senhor general, permanece enquistado num modelo político autoritário emanado da herança deixada por Agostinho Neto. Todavia, o senhor e o seu governo ainda estão a tempo de fazer a catarse e a redenção sobre esse passado medonho. Em vez de agir igual a um chefe partidário ou igual a um caudilho, o senhor no mais alto posto da governação do país tem a obrigação de optar por outra linhagem. A linhagem da democracia. Vista uma nova roupagem de pensamento e adopte na prática uma nova maneira de proceder. Utilize as instituições e a racionalidade política para, no dizer de um jurisconsulto, “catalisar o desejo da população em prol da vida da colectividade”. Não em prol da vida do MPLA e da sua militância, pois Angola não é o MPLA, não obstante o seu partido ter feito do país um seu enclave.
O senhor e o seu governo ainda estão a tempo de fazer a catarse e a redenção sobre esse passado medonho. Em vez de agir igual a um chefe partidário ou igual a um caudilho, o senhor no mais alto posto da governação do país tem a obrigação de optar por outra linhagem. A linhagem da democracia
O senhor e todos os seus pares, em resumo, devem tomar consciência que num Estado Constitucional de Direito as decisões políticas dos governantes se fundam no respeito pelos direitos de liberdade e no respeito pelos direitos sociais, os quais jamais podem ser postos em causa ou feridos. O mesmo se pode dizer de outros valores, igualmente sagrados: o direito à vida, o direito à integridade física e o respeito pela saúde dos cidadãos.
Eis-nos chegados, enfim, ao ponto nevrálgico desta matéria. O ditatorialismo de Agostinho Neto espoliou a sociedade angolana daqueles valores, arrasou-os de forma brutal numa acção dantesca só vista em regimes políticos sanguinários. Oprimido por esta ciranda de abusos e sofrimentos, o país permanece até à data petrificado em traumas difíceis de sarar. Entretanto, a sua administração, senhor general, apareceu a propor (ou, melhor, a impor) uma agenda de reconciliação nacional para expurgar da sociedade aqueles males. É caso para perguntar: como, com que métodos?
As respostas do senhor ministro da Justiça, no mínimo, têm-se revelado ambíguas e totalmente despidas de respeito pelo sofrimento de quem perdeu a vida ou sobreviveu por anos a todos os estigmas de violência e humilhação. Não se encaixa na equação política de um governo sério o que os senhores do MPLA pretendem com o “aclaramento” da questão do 27 de Maio. Os artifícios frívolos do senhor ministro são notórios e repetidos e não afiançam nada de bom. No ar pairam muitas mentiras, por isso já se percebeu onde o governo quer chegar: exonerar Neto de qualquer responsabilidade no tocante aos crimes de lesa-humanidade e conservar embalsamada outra verdade: a vontade perversa de Neto no dia 27 de Maio de liquidar a oposição interna do MPLA e exercer um domínio absoluto, férreo, sobre o partido e a sociedade.
Assim sendo, a única porta de saída para todo este imbróglio em torno da reconciliação criado pelo seu governo (que misturou o 27 de Maio com conflitos armados, formando com isso um cocktail disparatadíssimo) é o senhor general pedir perdão e reconhecer a hecatombe causada pela ditadura de Agostinho Neto. Reconhecer que o império do crime esteve no comando do país durante todo aquele período. As figuras dos criminosos têm um valor arquetípico de tal importância histórica que as gerações do presente e do futuro precisam de as conhecer de molde a evitar-se que as tragédias de ontem se repitam. Por conseguinte, senhor general, não lhe resta outra atitude senão pedir perdão, se for realmente preocupação sua sair engrandecido desta história e colher a admiração indistinta de todos os cidadãos.
O seu gesto, porém, não pode simplesmente basear-se no reconhecimento da culpa, tendo em conta que foi o seu partido o autor das barbaridades do 27 de Maio e das infindáveis valas de morte disseminadas por todo o espaço nacional. O país mergulhou nas trevas do obscurantismo, da intolerância e de um patriotismo tosco e perigoso donde não saiu até aos nossos dias. O pedido de perdão deve, portanto, começar pela sua pessoa por ser o presidente da República. Deve estender-se ao MPLA e abranger todos quanto participaram em ritos macabros de tortura e massacres. Para ser genuíno e sincero, o gesto tem de estar impregnado de vergonha. Um gesto inequívoco de grande peso simbólico que mostre o senhor e outros altos responsáveis realmente chocados e enojados com o indefinível repertório de chacinas executadas a sangue-frio contra milhares de vidas humanas por bandidos armados, agentes do Estado, que cumpriam ordens das esferas superiores do Partido.
Estes gestos têm naturalmente um preço de ordem moral e em política, sobretudo, o preço é sempre elevado. Derrube os muros do dogmatismo e da presunção arrogante em matéria de consciência histórica e enobreça-se, senhor general, saiba ser um governante generoso para com os mortos e os vivos e devolva-lhes a dignidade sequestrada. Tome por referência o gesto grandioso do antigo chanceler alemão Willy Brandt a 7 de Dezembro de 1970 na sua viagem à Polónia. Constrangido pela mancha de vergonha que cobria a história do seu país que um dia se consumiu nas fornalhas do monstruoso regime político de Adolf Hitler, o dirigente social-democrata germânico ajoelhou-se nas escadarias do Memorial aos Heróis do Gueto de Varsóvia e ali mesmo (num gesto de grande humildade) rendeu homenagem à memória de meio milhão de judeus que haviam sido encurralados em Abril de 1943 no referido gueto pelas tropas nazis que os exterminaram à bala, de modo selvático. Poucos sobreviveram. O gesto de Willy Brandt, foi, de facto, notável, fala por si. Além de emblemático, revelou a estatura de um político de grandeza ímpar. A imprensa na época sinalizou o gesto e o pedido de perdão como um símbolo de arrependimento e um desejo de a Alemanha se reconciliar com o mundo.
Pois bem, admita-se que o senhor assuma de verdade (sem tergiversações) o que se poderá designar de consciência crítica da história e rompa com as teses negacionistas sobre o terror e as chacinas netistas; admita-se que venha a declarar-se envergonhado com os cadáveres que jazem debaixo do seu trono e peça perdão em nome das altas instituições que representa. Se o fizer, as vítimas irrecusavelmente saberão tributar-lhe a devida homenagem pela sua coragem moral. Uma decisão que terá o efeito de uma luz que perfura a escuridão. Do contrário, parece-nos não haver mais nada a conversar. Fecha-se em definitivo a porta a esta efabulação chamada reconciliação que nos querem impingir. As vítimas estão cansadas da política-espectáculo do MPLA onde nunca se dialoga e somente impera o hegemonismo a uma só voz do Partido-Estado.
A ser assim, qualquer acção que o seu governo empreenda no futuro fora dos marcos da ética e da observância das regras universais de respeito aos direitos humanos, se reduzirá a pó. Terá um valor nulo. Fragorosamente cairão por terra todas as respostas sustentadas pela ideologia e pelas narrativas adulterantes do seu Partido. Como já o declarei noutros escritos, tais expedientes não passam de uma pantomima e de uma burla aos direitos universais consagrados na Carta das Nações Unidas.
Título original: Carta Aberta ao Presidente de Angola: peça desculpa a bem da pacificação dos espíritos
(*) Público