O Cedesa, que analisa assuntos políticos e económicos de Angola, considera não ser possível nem oportuno um acordo entre o Estado angolano e a empresária Isabel dos Santos, considerando que “seria o óbito” da política anticorrupção do Presidente. E o que será melhor, negociar e recuperar (eventualmente com juros) o capital para ajudar a economia a sair do estado de coma, ou perder o dinheiro e ficar com o exemplo da condenação?
“A conclusão a que chegamos, analisando os factos, a lei e o contexto político como estão neste preciso momento, (…) é que não é possível nem oportuno realizar qualquer acordo entre o Estado e Isabel dos Santos”, afirma o grupo de académicos do Cedesa.
Em primeiro lugar, porque em Angola não existe nenhuma norma jurídica de aplicação geral que permita que o Estado e uma pessoa alvo de investigação judicial cheguem a um acordo. “Mesmo que essa pessoa devolva os eventuais bens de que se tenha apoderado ilegitimamente”, referem os analistas.
E depois, “porque o acordo seria o óbito da política de combate à corrupção encetada por João Lourenço [Presidente da República. Presidente do MPLA e Titular do Poder Executivo], consequentemente, eliminando o principal objectivo do mandato presidencial”, afirma o Cedesa no documento.
Assim, “se o enquadramento legal impossibilita qualquer acordo, a estrutura da política contra a corrupção é definitiva nessa impossibilidade”, defende o grupo de académicos.
Para o Cedesa, a política contra a corrupção tem “como último fundamento a credibilidade”, pois além da punição dos eventuais prevaricadores, pretende diminuir drasticamente as práticas corruptas em Angola.
Assim, a população e os eventuais corruptos têm de acreditar que a política é séria, consistente e que existe, que não é “uma mera bandeira propagandística”. Embora também o seja.
“Sem credibilidade não há política contra a corrupção. Sem a existência de processos que têm princípio, meio e fim e a que todos assistam, não existe combate à corrupção. Portanto, credibilidade e consistência são as ideias chave deste combate. Isabel dos Santos é obviamente o símbolo central desta luta”, sublinham.
Por saber fica como é que se conjuga credibilidade com um presidente que diz ter assistido aos roubos, ter ajudado a roubar, ter beneficiado dos roubos mas não ser ladrão.
O Cedesa lembra que Isabel dos Santos não é a única a estar abrangida pela luta contra a corrupção, “nem de longe, nem de perto”.
“Desde vários altos funcionários nas províncias ao genro e filha do primeiro Presidente da República Agostinho Neto, passando por Manuel Vicente [antigo vice-presidente], que já viu vários bens apreendidos no decurso de inquéritos em curso na Procuradoria-Geral da República de Angola, são muitos os sujeitos a apreensões de bens, inquéritos e processos judiciais no âmbito da denominada luta contra a corrupção”, refere o documento.
Mas concluem que “é evidente” que a empresária, pelo seu destaque público e pelos montantes envolvidos, “ocupa um lugar proeminente no desenrolar dessa política” anticorrupção. Corrupção que, em muitos casos, esteve estribada em decisões do governo do seu pai, no qual o actual presidente teve papel preponderante, não havendo registo de alguma vez se ter manifestado contra.
“E devido à sua posição central na gramática do combate à corrupção, e à impossibilidade legal de haver um acordo entre Isabel dos Santos e o Estado, que consideramos, que na perspectiva da República esse acordo também não é politicamente aceitável”, reforçam.
Pelo sim e pelo não, o Cedesa escreve que “analisa apenas a problemática legal e política em causa. Não toma, nem tem de tomar, qualquer posição sobre os factos eventualmente criminais referidos, adoptando as regras da Presunção de Inocência claramente estabelecidas na Declaração Universal dos Direitos do Homem e nas Constituições Angolana e Portuguesa”.
Para o grupo de académicos, a haver um acordo seria sempre realizado à margem da lei, porque não existe legislação que permita um acordo global, “logo, sem transparência”, e, desse modo, um dos pilares centrais do combate à corrupção deixaria de estar dentro das preocupações judiciárias.
Assim, a acontecer “faria perder toda a credibilidade ao processo anticorrupção” e a população entenderia isso como uma paragem, um recuo no combate. Além de que “os eventuais futuros corruptos compreenderiam que no futuro lhes bastaria entregar alguns dos seus proventos para saírem imunes”, alertam.
“Consequentemente, teriam de desviar ainda mais dinheiro para fazer face a esses eventuais prejuízos futuros”, acrescentam.
Por isso, o Cedesa defende que um “eventual acordo com Isabel dos Santos é politicamente prejudicial ao combate à corrupção, porque lhe retira credibilidade e incentiva uma maior e ainda mais alargada corrupção no futuro”.
O grupo de analistas recorda ainda que além dos processos angolanos existem oito investigações a correr em Portugal contra a empresária Isabel dos Santos, filha do antigo presidente angolano José Eduardo dos Santos.
“Portanto, um acordo teria de envolver também as autoridades judiciárias portuguesas”, destacam. Ora, “a lei criminal portuguesa tem uma margem maior de possibilidade de acordo”.
“A gama de crimes em que a restituição termina o processo em determinadas condições é maior e abrange a burla, o crime financeiro típico, além de ter sido anunciada uma reforma legislativa no sentido de introduzir a colaboração premiada no sistema judicial português”, consideram.
Assim, por um lado até poderia “ser mais fácil” chegar a um acordo com referência aos processos em curso em Portugal. Mas, por outro lado, há “mais uma jurisdição com autonomia e vontade própria a ter em consideração”, lembram.
“Para fazer face aos desafios legais dificilmente Isabel dos Santos terá capacidade para liquidar as responsabilidades que lhe são exigidas. Sublinhe-se que além destas eventuais responsabilidades que lhe são pedidas, existem ainda as responsabilidades comerciais face à banca, fornecedores, etc.”, defendem na análise.
O Cedesa é uma entidade dedicada ao estudo e investigação de temas políticos e económicos da África Austral, em especial de Angola, que nasceu de uma iniciativa de vários académicos e peritos que se encontraram na ARN (Angola Research Network).
O Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação divulgou em 19 de Janeiro mais de 715 mil ficheiros, sob o nome de ‘Luanda Leaks’, que detalham alegados esquemas financeiros de Isabel dos Santos e do marido que lhes terão permitido retirar dinheiro do erário público angolano através de paraísos fiscais.
Em Junho deste ano, sob o título “A necessidade de um novo enquadramento legal para o combate à corrupção”, o Cedesa escreveu que “foi em Fevereiro de 2018, que o então Presidente do Conselho de Administração da Sonangol, Carlos Saturnino, apresentou numa conferência de imprensa pública, factos que reputou de muito graves e diziam respeito à gestão de Isabel dos Santos nessa empresa”.
“Em Maio de 2020, depois de várias notícias sobre esses e outros factos, por exemplo os Luanda Leaks, eventualmente imputáveis a Isabel dos Santos, o facto é que, aparentemente, esta ainda não foi notificada para prestar declarações no processo-crime que então lhe foi aberto em Angola”, afirmou o Cedesa no referido artigo, acrescentando que “a realidade é que existe o risco de um acentuado prolongamento neste processo, nem se condenando, nem se absolvendo, deixando um rasto de injustiça sobre toda a matéria”.
Segundo o Cedesa “o episódio cómico sobre o passaporte com a assinatura de Bruce Lee que estaria num dos processos de Isabel dos Santos é um primeiro sintoma ténue da hipótese de falhanço deste processo-símbolo do combate à corrupção em Angola”.
“Também, em Maio de 2020, foram tornadas públicas suspeitas muito recentes sobre actos de corrupção na Comissão Interministerial de Combate à Pandemia do Coronavírus, designadamente, o fretamento injustificado de aviões da Ethiopian Airlines e a compra de mercadorias a entidades privadas, todas elas com volumosas dívidas fiscais em Angola. Empresas que foram apressadamente ressuscitadas para competirem com o programa governamental de fornecimento de material de biossegurança”, escreveu o Cedesa.
“É neste contexto que se torna fundamental proceder a uma modificação estrutural na orgânica e legislação fundamental relativamente ao combate à corrupção”, dizia o Cedesa.