Archer Mangueira, ex-ministro das Finanças angolano disse, em tribunal, que foi afastado da operação de transferência dos 500 milhões de dólares do Banco Nacional de Angola (BNA) para o estrangeiro e que não viu nenhum decreto presidencial a autorizá-la. Será a memória selectiva uma forma ética de sacudir as responsabilidades?
Archer Mangueira, que à altura dos factos era ministro das Finanças, respondeu como declarante na nona sessão de julgamento, que arrancou em 9 de Dezembro de 2019, em que são arguidos o antigo governador do BNA, Valter Filipe, o ex-presidente do Fundo Soberano de Angola, José Filomeno “Zenu” dos Santos, e outros dois co-arguidos.
No interrogatório, durante várias horas, Archer Mangueira disse que participou na primeira fase do processo, tendo depois sido afastado, para voltar a tomar parte na terceira fase, a de recuperação dos valores.
O antigo ministro declarou que tomou contacto com o processo através do ex-Presidente da República, José Eduardo dos Santos, que o indigitou para liderar as negociações com os promotores da iniciativa, que terminaria na criação de um fundo de investimento estratégico para projectos estruturantes, no valor de 30 mil milhões de dólares (27 mil milhões de euros).
O ex-governante contou que, logo na primeira reunião, em Junho de 2017, em Lisboa, com os promotores, nomeadamente o arguido Jorge Gaudens Sebastião (empresário e amigo de infância de “Zenu” dos Santos), o holandês Hugo Onderwater, Valter Filipe e José Filomeno dos Santos, as explicações dadas “fizeram espécie”.
Archer Mangueira afirmou que numa reunião exploratória, com vista a perceber como seria constituído o fundo estratégico, aperceberam-se de que não estavam perante um sindicato de bancos, como referia a carta do PNPB Paribas enviada ao ex-Presidente, mas apenas dos promotores da iniciativa.
Sobre a ausência dos representantes do sindicato bancário, os promotores explicaram que a sua presença seria apenas numa segunda fase.
O ex-governante sublinhou que a apresentação da iniciativa “não era clara, que Hugo Onderwater evocava sempre segredos comerciais, quando solicitado a esclarecer os meandros da operação, “o que fez espécie”, por estar perante um ministro das Finanças e um governador do banco central.
Para Archer Mangueira, “qualquer coisa não estava clara”, pelo que partilhou com Valter Filipe e o ex-Presidente o seu “cepticismo”, percepção que, na sua opinião, foi comum durante a primeira fase do processo.
O ex-ministro referiu que o seu parecer ao ex-Presidente foi de que antes de avançar para a assinatura de contratos, se devia estabelecer um memorando de entendimento, opinião baseada na experiência que tinha de processos semelhantes, nomeadamente as negociações com a China para o financiamento de mais de dois mil milhões de dólares (1,8 mil milhões de euros), que levaram longos meses.
A certa altura, Archer Mangueira “sentiu-se afastado” do processo, sem uma decisão formal, apercebendo-se, após o seu afastamento, que tinha sido feita a transferência dos 500 milhões de dólares (449 milhões de euros), apesar do secretismo da operação.
Questionado se teria feito tal transferência, Archer Mangueira respondeu peremptoriamente que não, por achar que “o sistema financeiro não funciona assim”, salientando que, desde o princípio, teve dúvidas em relação à operação.
Archer Mangueira disse que, na terceira fase, quando voltou a ter contacto com o processo, por indicação do actual Presidente, João Lourenço, o seu parecer, depois de uma reunião em Londres, foi de que, ao invés de uma reavaliação, devia ser feito o congelamento da operação.
Nessa reunião de Londres, relatou Archer Mangueira, sentiu a pressão dos promotores para validar a movimentação dos 500 milhões de dólares, quando ainda estavam num processo de reavaliação e tentativa de perceber como funcionaria o esquema financeiro.
Segundo os promotores, a emissão de uma declaração a validar a operação e a capitalização total do fundo pelo BNA, permitiria, uma semana depois, o investimento de 2,5 mil milhões de dólares (2,3 mil milhões de euros), o que para Archer Mangueira era, no mínimo, não respeitar a entidade que estava ali a negociar.
O ex-ministro de João Lourenço disse que esta operação manchou a reputação do sistema financeiro do país a nível internacional, porque Angola estava num processo de recuperação da sua imagem, conhecendo com isto um retrocesso.
O caso remonta a 2017, altura em que Jorge Gaudens Pontes Sebastião apresentou a José Filomeno dos Santos, filho do ex-Presidente José Eduardo dos Santos, uma proposta para o financiamento de projectos estratégicos para o país, que este encaminhou para o executivo, por não fazer parte do pelouro do Fundo Soberano de Angola.
A proposta foi apresentada ao executivo angolano no sentido da constituição de um Fundo de Investimento Estratégico.
Recordando a ética (ou a epiléptica) de Mangueira
As contas públicas angolanas só deveriam sair do vermelho em 2020, com as receitas, sobretudo de impostos, a voltarem a ser superiores às despesas totais previstas seis anos depois, segundo a projecção do Governo feita em Julho de 2018.
A informação consta do Plano de Desenvolvimento Nacional (PDN) 2018-2022, aprovado pelo Governo de João Lourenço e publicado oficialmente a 29 de Junho de 2’18, contendo um conjunto de programas com a estratégia governamental para o (suposto) desenvolvimento nacional na actual legislatura.
Para 2018, o Governo previa uma receita total (excluindo endividamento) de 20,2% do Produto Interno Bruto (PIB), essencialmente – como sempre – de impostos com a exportação de petróleo (12,6%), enquanto as despesas totais deverão ascender a 22,7% do PIB, provocando um défice fiscal de 2,5%.
Para 2019, a projecção do PDN apontava para um défice de 1,5% do PIB, com o peso das receitas a caírem para 18,6% e o das despesas totais para 20,1%.
Após cinco anos de contas no vermelho, o Governo estima um resultado positivo em 2020, voltando as receitas a superar as despesas, equivalente a 0,4% do PIB, projecção que sobe para 0,5% em 2021 e para 0,7% em 2022.
O optimismo estava, portanto, em alta. Em matéria de previsões, de contas e de estatísticas o MPLA sempre foi imbatível. Tão imbatível que em 44 anos de independência e 18 de paz total e de submissão esclavagista dos partidos da Oposição, conseguiu fazer com que o país “apenas” tenha 20 milhões de pobres.
Angola registou excedentes orçamentais em 2010 (5% do PIB), em 2011 (10%) e 2012 (7%), com a recuperação do sector petrolífero após as quebras de 2008 e 2009, tendo ficado próximo do equilíbrio em 2013.
A partir de 2014, com nova quebra nas receitas com a exportação do único produto que mantém o país vivo, o petróleo, as contas anuais do Estado voltaram a apresentar consecutivamente défices, colmatados com a contracção de endividamento público e, claro, com a institucionalização da obrigatoriedade de quase todos os angolanos terem de aprender a viver sem comer e a morrer sem darem despesas ao Estado.
O Governo do MPLA (o único que os angolanos conhecem) estimava fechar 2018 com um endividamento público de 77.300 milhões de dólares (65.100 milhões de euros), equivalente a 70,8% do PIB do país para 2019, excluindo (é claro) a dívida da petrolífera estatal Sonangol.
O então ministro das Finanças (que transitou no cargo de José Eduardo dos Santos para João Lourenço), Archer Mangueira, considerou no dia 24 de Maio de 2018 ser urgente instituir uma ética de valor acrescentado entre os gestores das finanças públicas, para que os objectivos de boa governação sejam atingidos.
Para o então ministro, “há um longo caminho a percorrer em matéria de capacitação de quadros para gestão das finanças públicas”. E, é claro, só agora talvez seja possível iniciar esse “longo caminho” que há décadas deveria ter sido iniciado.
Archer Mangueira realçou ainda que “não cabe, à luz do princípio da eficiência, despender mais recursos dos que estritamente necessários para alcançar os objectivos estabelecidos e obter os resultados esperados”.
Segundo o ministro, o princípio da economia conduz a que os meios utilizados por cada instituição, no desempenho das suas responsabilidades devem estar disponíveis em tempo útil, nas quantidades e qualidades adequadas e ao melhor preço.
“Uma gestão assim exercida tem subjacente uma ética de valor acrescentado, mediante a qual não é apropriável o que é alheio, não é individual o que é comunitário”, disse Archer Mangueira, acrescentando que não é igualmente “aceitável o desperdício, porque isso, no limite, pode conduzir à estafa fiscal”.
Archer Mangueira disse que os investimentos públicos têm de passar a ter uma repercussão concreta na execução de novas indústrias, na criação de emprego e na melhoria das condições de vida dos angolanos.
“Estamos a tomar medidas para reforçar o combate aos erros propositados, às práticas ilícitas, aos actos fraudulentos de gestão, entre outras práticas não recomendáveis”, referiu.
Para monitorar a execução do Orçamento Geral do Estado, o então titular da pasta das Finanças avançou que foi instituído o sistema de controlo orçamental, apoiado na figura do controlador orçamental, que vai igualmente garantir a aplicação rigorosa das regras.
De acordo com o ministro, foi já recrutado o primeiro grupo de controladores, que beneficiaram em várias áreas das finanças públicas e estão já aptos para exercerem o controlo do ciclo orçamental da despesa, apoiados por um manual de procedimentos e uma plataforma informática.
Todos falam de ética… quando convém
A teoria da ética não é nova no MPLA. Recordemos, por exemplo, que a ética empresarial foi considerada em 13 de Dezembro de 2014, na cidade do Huambo, como fundamental para depositar confiança, atrair retorno de investimentos e a sustentabilidade dos negócios, por ser um comportamento baseado em valores educacionais.
Em tese é isso mesmo. Mas quais são esses valores educacionais no nosso país? Os ensinados no tempo do partido único, ou nos tempos de vários partidos num país que funciona como tendo um só partido? Ou os assimilados na educação patriótica de culto canino ao chefe?
A tese da ética empresarial foi então defendida pelo director nacional do Centro de Ética, António Muhungo, durante um seminário sobre “ Ética no local de trabalho e ética empresarial”, promovido pela associação das mulheres empresárias da província do Huambo.
António Muhungo realçou que para se obter sucesso nos negócios, nesta época da globalização, além de oferecer serviços é necessário dar uma atenção especial na forma de interagir com os diversos grupos sociais que procuram ou se interessam pelos serviços prestados.
Será que a metodologia de dar uma atenção especial na forma de interagir com os diversos grupos sociais se aplica à política, aos negócios do Estado, ao exemplo do Governo?
António Muhungo dizia ser necessário haver esforços conjugados, para se obter a ética desejada nas diversas instituições do país. É verdade. O problema está que, no paradigma do regime, conjugar esforços significa uns mandarem e outros obedecerem, uns serem donos da verdade e outros obedientes cidadãos, uns serem de uma casta superior e outros meros plebeus.
Quanto ao estado da ética em Angola, António Muhungo caracterizou-o como razoável, estando a atravessar a fase de sobrevivência para o reactivo, onde os empresários se preocupam com os riscos que correm os negócios na ausência deste valor.
Pois é. Num país que lidera os principais rankings mundiais de corrupção, será intelectualmente honesto e sério falar-se de uma ética razoável? António Muhungo sebe que não. Mas, ao não dizer o que pensava, estava só por isso a mostrar que o melhor é dar uma no cravo e outra na ferradura.
A epiléptica ética de Archer em 2017
Estávamos em Janeiro de 2017. Finalmente o já ministro das Finanças, Archer Mangueira, descobria a pólvora (ou terá sido a pedra filosofal?) para pôr o país no rumo certo e na velocidade ideal, ainda sem o impulso ético de João Lourenço. Ou seja, defendia o desenvolvimento sustentável do sector económico. E ainda ninguém se tinha lembrado disso…
Archer Mangueira defendeu a necessidade de se potenciar a receita fiscal e melhorar a qualidade da despesa pública para contribuir para o desenvolvimento sustentável da economia e da sociedade.
Como se vê o ministro não dormia em serviço. Essa de potenciar a receita fiscal e melhorar a qualidade da despesa pública é algo que, reconheça-se, nunca tinha passado pela cabeça dos seus antecessores, nem mesmo pela do então incontestado perito dos peritos, sua majestade o rei general José Eduardo dos Santos.
O governante discursava na abertura do 8º Conselho Consultivo, que decorreu na cidade do Lobito, sob o lema “Maximizando a Receita e Melhorando a Qualidade da Despesa Pública pelo Desenvolvimento Sustentado”.
Archer Mangueira sublinhou que, apesar de ser um tempo de escassez, “asseguramos que o Estado terá os recursos necessários para preservar a estabilidade social”. Digamos que, apesar de ser uma área que escapa às Finanças, embora dela dependa, fica bem cumprir “ordens superiores” e não se esquecer de decalcar as teses oficiais do regime, repetidas até à exaustão de modo a que os nossos 20 milhões de pobres não façam ondas.
Archer Mangueira lembrava então que o dinheiro público provém principalmente de dinheiro privado arrecadado pelo Estado, por via de impostos e taxas, e que cabe ao Estado fazer uma justa redistribuição dos recursos arrecadados.
É verdade. A redistribuição implica, segundo a prática do regime, uma listagem decrescente dos que mais devem beneficiar e que, logicamente, tinha (como agora continua a ter) no primeiro lugar o Presidente da República e o seu clã familiar, no segundo lugar o Titular do Poder Executivo e o seu clã familiar e amigos próximos, e em terceiro o Presidente do MPLA e o seu clã familiar, amigos e dirigentes.
“Esta é uma noção que temos de ter presente em permanência, seja do lado da receita fiscal, seja do lado da despesa pública. Especialmente no quadro deste “novo normal” em que passámos a viver, que se caracteriza por uma fiscalidade crescentemente não-petrolífera”, disse Archer Mangueira.
De acordo com o então ministro, quando se fala de dinheiro privado gasto colectivamente, torna-se ainda mais necessário medir o efeito da aplicação do dinheiro público na satisfação das necessidades das famílias e das empresas. É uma afirmação, ou conceito, aplicável em qualquer parte do mundo civilizado. Em teoria, em teoria.
Archer Mangueira acrescentou que essa é uma exigência em nome da qualidade da despesa que requer dos quadros elevada preparação ética e técnica. E então a imprescindível preparação patriótica, canina, bajuladora?
Antes, no dia 17 de Novembro de 2016, o mesmo ministro das Finanças afirmou que a proposta de Orçamento Geral do Estado (OGE) para 2017 envolvia “impostos que não sacrificam as pessoas e as empresas” e que mantém a dívida pública num nível “perfeitamente sustentável”. Como? Nem o ministro sabia.
Archer Mangueira discursava, neste caso, na Assembleia Nacional, em Luanda, na apresentação para votação na generalidade, pelos deputados, da proposta do OGE para 2017.
Por definição, os impostos são uma contribuição pecuniária que o Estado impõe a pessoas singulares e colectivas. No entanto, segundo Archer Mangueira, em Angola os impostos não sacrificam as pessoas e as empresas. Teria o ministro descoberto esse segredo que a alquimia intentava descobrir para fazer ouro?
“Baseia-se em impostos que não sacrificam as pessoas e as empresas, estabelece um défice que podemos financiar e prevê uma dívida que, em face do potencial da nossa economia, é perfeitamente sustentável”, enfatizou Archer Mangueira.
Perante os deputados, o ministro afirmou que o Orçamento de 2017 seria “o justo equilíbrio de uma responsabilidade partilhada entre o executivo, que fez as suas propostas, e a Assembleia Nacional, que tem a última palavra”.
“Esta é uma tarefa particularmente exigente, porque vivemos um tempo de escassez”, admitiu, classificando a proposta do OGE como uma “carta de navegação”.
“Que, por mais adversos que possam ser os ventos e as marés, nos levará ao destino desejado – estabilidade social, equilíbrios das contas públicas, previsibilidade fiscal, crescimento e emprego”, disse.
Archer Mangueira recordou que as dificuldades actuais, decorrentes da crise provocada com a quebra das receitas provenientes da exportação de petróleo, “não são estranhas” a Angola e que ao longo de quase 43 anos de independência o Estado “não dispôs sempre de recursos abundantes”.
“Aliás, vivemos durante a maior parte do tempo com grande sobriedade de meios – e é essa cultura de temperança que agora temos todos de resgatar: fazer mais e melhor para o País e para o povo com os recursos disponíveis. Vigiar e combater o desperdício”, enfatizou Mangueira.
“O objectivo da política macroeconómica é assegurar a criação de um contexto de estabilidade, para que a economia nacional possa engendrar um crescimento não inflacionista, com criação líquida de emprego, sem défices e dívida excessivos, contando com uma participação crescentemente activa do sistema financeiro”, sublinhou o ministro das Finanças na intervenção no Parlamento.
Archer Mangueira precisou que tudo faria (quem diria?) com esforço, dedicação, empenho, abnegação e competência para retribuir a confiança que lhe foi (pois claro!) depositada pelo Presidente da República, José Eduardo dos Santos. Confiança que voltou a ser nele depositada por João Lourenço.
Folha 8 com Lusa