Francisco Pavão, especialista português em saúde pública, considerou que o estado de emergência em Angola teve um “impacto muito negativo” nos cuidados de saúde primários e no acompanhamento materno-infantil, admitindo maior mortalidade nas “doenças não-Covid-19”. Estranho. Como é possível haver um “impacto muito negativo” em algo que… não existe!
Francisco Pavão disse à Lusa que Angola, tal como outros países, se tem focado quase exclusivamente na prevenção e combate à Covid-19, pelo que neste momento se debate o risco de negligenciar outras doenças. Pois, mas estas outras doenças (malária, tuberculose, diabetes, fome etc.) já fazem parte do ADN do país e porque – regra geral – não afectam os donos do reino, não são uma preocupação.
“Não há nenhum país do mundo que não esteja a dar a devida importância à Covid-19 e se esteja a focar única e exclusivamente na doença e tem-se debatido a negligência perante outras doenças e patologias e até emergências em saúde”, assinalou o médico, lembrando que foi cancelada toda a actividade programada antes da pandemia e as doenças crónicas têm sido esquecidas.
Segundo o especialista em saúde pública, todo o acompanhamento de doenças crónicas e de doenças infecto-contagiosas como o VIH/sida ou a tuberculose, bem como doenças endémicas como a malária, foram totalmente negligenciadas porque os cuidados de saúde primários e hospitalares (aos quais, por exemplo, não têm acesso os nossos 20 milhões de pobres) focaram-se no combate à pandemia.
“Desde há 60 dias, quando foi decretado o estado de emergência, houve um impacto muito negativo nos cuidados de saúde primários em todo o território e menos capacidade dos doentes com HIV e tuberculose terem acesso à sua medicação, antirretrovirais, antibióticos, pessoas com sintomatologia de malária que não conseguiram fazer testes ou ter acesso a medicamentos e, por outro lado, ter acesso aos cuidados materno-infantis”, notou Francisco Pavão.
O também secretário permanente da Comunidade Médica de Língua Portuguesa apontou a falta de acompanhamento de mulheres grávidas e de crianças recém-nascidas e em desenvolvimento.
“Isto traz problemas enormes e de futuro”, salienta o médico, admitindo que, neste momento, existam cerca de 600 mil mulheres grávidas em Angola que, dentro de três meses, irão ter um parto e não tiveram nos últimos 60 dias cuidados de saúde nem acesso a uma consulta pré-natal.
O especialista afirmou que, normalmente, são mulheres que iriam “procurar as suas enfermeiras e os seus médicos nos postos de saúde”, mas actualmente “tudo isso foi anulado”.
“É interessante que até já se usa a expressão doenças não-covid-19”, destacou o médico, sublinhando que doenças como malária, dengue ou febre amarela continuam a ser prevalentes em África.
“Estas doenças continuam a existir, não acabaram e provocam a maior carga de doenças nesta população e vão ter um peso muito maior em dois ou três meses do que a Covid-19”, diz, acrescentando que Angola e outros países deverão assistir ao aumento de mortalidade de doenças não covid-19 como malária, HIV/sida, tuberculose, doenças gastrointestinais ou doenças respiratórias por dificuldades de acesso a terapêutica ou às instituições de saúde, médicos e outros profissionais de saúde.
Quanto à mortalidade por Covid-19, admite que os números sejam superiores aos oficiais por não estarem diagnosticadas as causas da morte.
“Talvez, porque não temos capacidade de testagem total, a doença pode circular pela população de uma forma de que ainda não é conhecida, é algo que terá de ser detalhadamente estudado”, adiantou.
Mesmo assim, salienta que as medidas adoptadas pelas autoridades angolanas foram “importantes e as necessárias”, apesar do grande impacto e da “onda de devastação” causada não só pela doença, mas pelas suas consequências, sanitárias, sociais e económicas, bem como as “preocupações” com a saúde mental.
Francisco Pavão avisou que “a normalidade de antes pode demorar muito tempo ou nunca mais voltar” e todos terão de viver com estas regras, o que traz “imenso caos” e dúvidas, até por causa da comunicação muitas vezes contraditória das autoridades.
“Vamos ter de saber conviver com a doença e ser todos responsáveis porque todos contam para a prevenção da doença”, sublinhou, realçando a importância de saber conviver com os surtos que, presumivelmente, vão surgir.
Nesses casos, será indispensável o acesso rápido a testes, para que seja possível testar, isolar as pessoas e rastrear os seus contactos.
Angola segue os passos de outros países, e adoptou novas regras para serviços públicos e privados, decorrentes do estado de calamidade pública, enquanto prepara o regresso à normalidade, que não será igual ao período pré-pandemia: “É diferente, as pessoas vão ao restaurante, vão às compras, às instituições publicas e têm medição de temperatura à entrada, higienização das mãos e estão de máscaras porque estão num espaço confinado”.
Para Francisco Pavão, é altura de seguir “os passos do tal desconfinamento” que já estão a ser dados na Europa e em vários países africanos.
“As pessoas já perceberam que não podemos é atingir um estado de pressão sobre o sistema [de saúde] e que conseguimos controlar a doença se tivermos regras de distanciamento, etiqueta respiratória, lavagem das mãos, etc.”, resumiu.
Folha 8 com Lusa