O Governo manifestou boas intenções com o Estado de Emergência, mas o Ministério do Interior (Minint) envenena a luta contra a pandemia da Covid-19 ao optar pela repressão, em especial nas províncias. As detenções e espancamentos deixam as populações em desespero. Código de honra e de valores precisa-se.
Por José Marcos Mavungo (*)
Adeclaração do Estado de Emergência é uma decisão responsável na actual luta titânica contra a pandemia da Covid-19. Sobre a intenção do Presidente da República, João Lourenço, no decreto presidencial nº 82/20, de 26 de Março, que entrou em vigor a 27 de Março de 2020, não é meter em causa a democracia e o Estado de Direito, mas prever e combater a pandemia.
O traço notado por todos neste decreto é: restrições à circulação de pessoas, além de medidas de isolamento e quarentena por um período, em vista à prevenção e ao combate à pandemia. Mas a «suspensão parcial dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos» do decreto (Artigo 2º) não é extensiva, em caso nenhum, «aos direitos à vida, à integridade pessoal» (Artigo 3º, Alínea 1).
Deste modo, o decreto sobre a emergência nacional mantém “os cidadãos livres e responsáveis, perante si e os demais; não isenta ninguém nem rebaixa ninguém”. Ou seja, sugeriu aumentar a responsabilidade de todos no sentido de se protegerem, de tomarem medidas susceptíveis de defenderem a comunidade contra tudo quanto possa constituir atentado à vida humana. Para o efeito, encoraja a salvaguarda da vida humana e o funcionamento normal dos serviços de abastecimento de bens essenciais.
Na verdade, e por muito que se deseje encarar a pandemia como concretização de ideias gerais de ordem pública e económica prévias, a declaração do Estado de Emergência é, pelo contrário, a base para adopção de medidas concretas que visam salvar as populações da Covid-19, ao mesmo tempo que são salvos da situação económica asfixiante do país. Nesta senda, cabe aos cidadãos, em especial aos governantes criar condições de protecção dos cidadãos, em especial dos mais vulneráveis e marginalizados.
Sendo assim, a crise sanitária vivida em Angola, neste momento, lembra-nos, mais uma vez, que nenhum grupo de pessoas pode ser deixado para trás. Importa, pois, prestar atenção especial àquelas que se encontram em situação de maior vulnerabilidade e que necessitam de respostas céleres para evitar os riscos, directos e indirectos, desta pandemia, que tomou conta dos nossos estados, deixando todos, mesmo os países desenvolvidos, em um verdadeiro desgaste psicológico e material.
Por conseguinte, o trabalho dos agentes de ordem pública deveria ser apoiado pela formação e por uma divulgação regular de informações, que ajudariam a garantir a todas as pessoas que o apoio humanitário aos humildes e os direitos humanos estão, de facto, no centro da resposta do governo à crise do coronavírus. Além disso, assim como a todo o cidadão, está no dever da Polícia Nacional tratar com muita devoção e fervor as grandes necessidades em que o povo se encontra.
Porém, as declarações musculadas do Ministro do Interior, Eugénio Laborinho, na sexta-feira, dia 3 de Abril, desencadearam uma onda de detenções em massa dos angolanos, deixando as populações em situação de desespero. «A polícia não está no terreno para servir rebuçados, nem para dar chocolates, ela vai actuar conforme o comportamento de cada cidadão», dizia o nosso famoso Ministro do Interior.
Na verdade, ao recorrer a esta linguagem própria das criaturas mais temíveis e poderosas de Angola, porque o declarante é poderoso que nem um Leviatã («buka ngando», como se diz em ibinda), as declarações musculadas de Eugénio Laborinho não ajudam a pensar e a actuar nestes nossos tempos difíceis, mas parece terem o efeito contrário. Comportamentos autoritários dominam as actuações do poderoso Ministro do Interior. No seu raciocínio, não consta a preocupação pela coesão social, nem tão pouco pela ideia de que, em Angola, as autoridades devem proteger os humildes do povo, ajudar os necessitados.
Na sequência das declarações de Eugénio Laborinho, todos confirmamos o incremento da repressão em todo o país, para além da de extorsão de bens e da corrupção, com maior intensidade nas províncias de Luanda, Benguela, Cabinda, Cuanza Sul, Lunda Norte, Malange e Moxico, onde mesmo ir ao Hospital para questões de saúde ou de infelicidade constitui transgressão das novas regras da emergência nacional.
Desde que entrou em vigor o Estado de Emergência, já foram detidas mais de 1.500 pessoas (fonte: DW). O Porta-Voz do Minint, Valdemar José, tem realçado a fidelidade da PN às recomendações do Estado de Emergência, ao afirmar que os cidadãos são detidos por desobediência e conduzidos às respectivas residências.
Porém, quanto aos factos que afligem as populações, chegam-nos todos os dias também ecos do uso desproporcional da força e o recurso à violência gratuita por parte da PN e militares, para fazer cumprir o Decreto Legislativo Presidencial sobre o “Estado de Emergência, cujos contornos constituem atentado contra a ética e a deontologia dos agentes da ordem pública e das Forças Armadas Angolanas (FAA).
Em Luanda, os excessos das forças de segurança verificam-se sobretudo nos municípios de Cacuaco, Belas Viana e Cazenga. Neste último a violência policial resultou na morte de um adolescente. As denúncias têm sido facilitadas pelo clima de maior abertura na capital do país, onde as associações dos direitos humanos e a presença dos meios privados de comunicação social jogam um papel fundamental.
Entretanto, nas outras províncias, em especial em Cabinda e na Lunda-Norte, a violência, a corrupção e extorsão de bens têm assumido proporções de um verdadeiro flagelo. Porém, a fraca presença da imprensa privada, bem como as restrições impostas ao activismo cívico tem dificultada as denúncias de casos que deveriam merecer larga difusão e investigação forense.
O processo das vítimas da brutalidade policial, no dia 4 de Abril, no Município de Buco-Zau, em Cabinda, que tive oportunidade de acompanhar, mas nunca foi divulgado na imprensa, é eloquente. De entre os 15 populares detidos e espancados brutalmente, sob pretexto de desobediência às medidas decretadas para a implementação do Estado de Emergência, gostaria de sublinhar dois casos delicados de quatro cidadãos.
No primeiro caso, dois irmãos, um deles chamado Carlos Jesus, tinham ido a Buco-Zau para devolver uma viatura do Hospital Municipal Alzira da Fonseca solicitada para transportar os restos mortais de um óbito ocorrido no Hospital de Santa Catarina, na cidade de Cabinda. De regresso para a casa, às 19 horas, foram interceptados por elementos da PN. Segundo Carlos Jesus: «imediatamente, os agentes da PN desceram da viatura, confiscaram-nos os telemóveis e, sem qualquer explicação, começaram a espancar-nos. Depois, fomos conduzidos sob escolta até ao Comando Municipal da Polícia de Buco-Zau, e fecharam-nos na prisão».
No segundo caso, José Sibi ia de motorizada com a sogra, Emília, para o Hospital Municipal Alzira da Fonseca, em Buco-Zau, onde a sua esposa estava a dar à luz. E, interceptados pela PN e elementos das Forças Armadas Angolanas (FAA), José Sibi tentará explicar a situação da esposa em dores de parto no hospital. Mas, os agentes da ordem pública não lhe deram ouvidos e começaram a espancá-lo com paus e porretes, causando-lhe lesões graves na cabeça, e deitando muito sangue. A sogra tentou reverenciar pela situação aflitiva em que se encontravam pela filha a dar parto, ao que os elementos da PN também responderam com espancamentos a tal ponto que a pobre senhora caiu da moto, ficou queimada na perna pelo aquecimento do tubo de escape, e desmaiou. José Sibi foi levado para as celas e a sogra ao hospital onde foi socorrida.
Quatorze cidadãos detidos e espancados foram entregues aos tormentos de uma pequena cela imunda do Comando Municipal da PN, em Buco-Zau (porque a senhora Emília tinha sido levada para Hospital). E só foram postos fora da cadeia paulatinamente, pelo menos três de cada vez, a começar pelas quatro senhoras do grupo (no mesmo dia 4 de Abril), até que, na terça-feira, 7 de Abril, os últimos elementos do grupo deixaram as celas.
A desgraça que atingiu estes populares e de tantos outros nas diversas regiões de Angola está bem evidente nas fotos publicadas nas redes sociais, que mostram cidadãos com lesões no corpo e algum traumatismo psicológico, vítimas de extorsão, corrupção e violência policial e militar. Ou melhor, é notório nelas o calvário dos cidadãos, vítimas da brutalidade e corrupção daqueles que se apregoam defender a ordem pública.
Aos muitos casos constituindo atentado contra os deveres humanistas dos elementos da ordem pública para com cidadãos em situações aflitivas, se ajunta a indiferença dos oficiais das esquadras de polícia face à violência gratuita da polícia e militares.
Por exemplo, este domingo, 12 de Abril, na Lunda-Norte, surgiram denúncias que dão conta de que Maria Agostinho, uma senhora de 43 anos, foi espancada por efectivos da PN, quando se encontrava no Hospital Provincial do Cafunfo, onde está internado o seu filho de 7 anos, devido ao paludismo e a malária, que nos últimos dias tem causado muita mortandade na região.
Maria Agostinho conta que, enquanto estava a dar de comer ao filho, apareceram elementos da PN que a obrigaram a abandonar a sala, sob pretexto de violar as regras da emergência nacional. Posta fora da sala do Hospital, foi espancada pelos agentes em questão, causando-lhe ferimentos na boca. O caso foi levado à 2ª Esquadra da PN do Sector de Cafunfo. Mas o oficial da Ordem Pública só disse à senhora Maria Agostinho: «é uma coisa leve, vai para casa».
Na sequência das denúncias dos activistas sociais, tem havido alguns casos levados a tribunal, como aconteceu em Cabinda, com os militares condenados a 1 ano e meio de prisão por agressão a uma vendedora de rua, no dia 29 de Março, e a recente detenção do comandante de uma das esquadras de Luanda. Porém, a justiça selectiva continua a dominar as instâncias judiciárias de Angola, se não fosse assim as prisões do país estariam superlotadas de responsáveis políticos e de chefias militares e da polícia.
Há muitos outros cidadãos que têm sido espancados por elementos da PN, em especial nas regiões de Cafunfo e do Cuango, do Maiombe, do Malange, do Planalto Central, etc.. Mas o clima de intimidações é tanto que muitos preferem sofrer no silêncio.
Ante esta feroz repressão de populares, quer queiramos ou não, está já à vista um espectro de violência policial, que, mesmo se pode conduzir para o único caminho capaz de impedir o alastramento do coronavírus, faz com que o Estado de Emergência se esbarre com enormes dificuldades para surtir os efeitos desejados e deixe cicatrizes desoladoras nos cidadãos. Sendo assim, apesar dos discursos das autoridades locais, alguns genuínos, de grande solidariedade, poderá assistir-se a uma tragédia humana, pelo facto de os milhões de desempregados em Angola se sentirem mais fragilizados por constrangimentos que, no fim do túnel espera-os o apocalipse.
Caucionar crimes em nome de um Estado de Emergência é grave. Dos factos acima relatados, ficamos a saber que os agentes da PN, caso tivessem agido ignorando a lei, seriam criminosos; e, se fossem políticos, encobriam a iniquidade. Violar o Estado de Emergência é humano com uma única excepção: uma mãe pobre tem um filho a gritar de fome e não é socorrido, entra no mercado informal e compra pão. Violar o Estado de Emergência não é humano. É desumano.
Finalmente, neste país escandalosamente rico e de governação feudal, mas em que as populações são convertidas em servos da gleba e atormentadas profundamente pela miséria e crime, vai se passando a noção de que vale tudo. Não, não vale! O código de honra e de valores é que deve ser ensinado, difundido e materializado! Ser um Estado de Direito Democrático, em que as paixões individualistas e políticas não resistam à força das instituições do país. Desde o berçário…
(*) Activista dos Direitos Humanos
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