Estado de… “imergência”

A Assembleia Nacional de Angola vai amanhã fingir que aprecia um pedido do Presidente da República, João Lourenço, sobre a possibilidade de renovação do estado de emergência. Como se sabe, o MPLA é dono e senhor (também) do Parlamento e o Presidente do partido é quem “pede” autorização, ou seja, João Lourenço. Entretanto, o Ministério do Interior está a investigar um caso de agressão a três agentes da Polícia de Intervenção Rápida (PIR) na Lunda Norte.

Segundo uma nota do gabinete de comunicação e imagem do Parlamento do MPLA este é o ponto único da 3.ª reunião plenária extraordinária da Assembleia. Cumprir-se-á assim uma mera formalidade que, contudo, até dá um ar de Angola ser uma democracia e um Estado de Direito. Não é verdade, mas que bem, isso fica!

No âmbito das medidas de prevenção e combate à Covid-19, a Assembleia Nacional adiou por tempo indeterminado as reuniões plenárias ordinárias, presumindo-se que os deputados estejam em quarentena voluntária, tal como deveriam estar milhões de angolanos que, contudo, têm todos os dias sair à rua para encontrar qualquer coisa (às vezes até é comida) para enganar a barriga da família.

Angola entrou hoje no 13º dia do estado de emergência, de 15 dias prorrogáveis, medida decretada pelo Presidente João Lourenço em 27 de Março, como forma de conter a propagação do novo coronavírus, e que se prolonga até às 23:59 de dia 11 de Abril.

O estado de emergência obriga a observar uma série de medidas que incluem restrições à circulação de pessoas, encerramento de escolas, igrejas, museus e outras instituições, bem como restaurantes e estabelecimentos de venda de produtos não-alimentares, limitação dos horários dos mercados, redução do limite de passageiros nos transportes públicos, proibição de competições desportivas, cultos religiosos e aglomerados de pessoas, etc..

Entretanto, até porque Angola não é Luanda e o resto paisagem, a delegação provincial da Lunda Norte do Ministério do Interior está a investigar um caso de agressão a três agentes da Polícia de Intervenção Rápida (PIR) numa área de garimpo, por seguranças de uma empresa que, ao que parece, também não tinham vocação para distribuir rebuçados e chocolates.

Segundo um comunicado oficial, os três efectivos da PIR são afectos ao comando provincial da Lunda Norte e foram encontrados fardados na área de garimpo, embora estivessem de folga. Fardados porque, como diria com certeza o ministro Eugénio Laborinho, um bom Polícia está sempre de serviço e – é claro – a farda (e a pistola) fazem parte da indumentária.

O documento realça que as vítimas “foram neutralizadas” e encaminhadas para o comando municipal do Lucapa, por seguranças da empresa K&P, ex-Projecto Mineiro Yetwene, localizado na comuna de Camissombo.

A ocorrência teve lugar entre 18 e 20 de Março, segundo informações apuradas junto do comando local da PIR, sendo a situação do conhecimento do comandante das forças que, no entanto, não informou o comando provincial da Polícia Nacional.

A delegação do Ministério do Interior sublinhou no comunicado que tomou conhecimento do incidente “de forma surpreendente através das redes sociais”.

Os implicados foram detidos para averiguação e foram accionados os mecanismos disciplinares contra o respectivo comandante das forças, sendo também instaurado um inquérito para o apuramento da veracidade dos factos e encontrar os autores que protagonizaram as agressões contra os três agentes da PIR.

Fotografias e um vídeo, que mostram o facto, nomeadamente um dos agentes algemado, e os agressores, circulam desde terça-feira nas redes sociais.

Armas e utilizadores para todos os gostos

Recorde-se que, em 2018, o Ministério do Interior anunciou a compra, por 2,5 milhões de euros, de armas letais e não letais para distribuir pelas empresas privadas de segurança, no âmbito do Projecto de Desarmamento da População Civil, segundo autorização presidencial.

De acordo com um despacho assinado pelo Presidente da República, com data de 20 de Novembro de 2018, a autorização para o negócio resulta da “sensibilidade intrínseca” (seja lá o que isso quer dizer) a este projecto, em curso, de desarmamento, “no que concerne às especificidades e rigor dos equipamentos” necessários.

“Considerando a necessidade de se garantir a continuidade de implementação do Projecto de Desarmamento da População Civil, de acordo com a política pública de retirada gradual de armas de guerra, em posse das empresas de segurança privada, substituindo-as por armas de autodefesa de menor calibre”, lê-se no documento.

Além de autorizar o lançamento do concurso, o mesmo despacho aprovava a minuta de contrato de aquisição, a ser feita pelo Ministério do Interior, no valor de 898.326.000 kwanzas (2,5 milhões de euros). A comercialização destas armas, letais e não letais, ficou a cargo do Ministério do Interior, junto das empresas privadas de segurança.

Os vigilantes das empresas privadas de segurança vão continuar a usar armas de fogo, como pistolas e espingardas semiautomáticas, mas passam a estar obrigados a frequentar um curso específico e ostentar uma carteira profissional. Pois!

Em causa está o regulamento, de finais de Setembro de 2017, que coloca em prática a Lei das Empresas Privadas de Segurança, aprovada em 2014, mas que estava por regulamentar.

Define que apenas podem ser admitidos como trabalhadores de segurança privados quem tiver entre 18 e 55 anos, formação escolar mínima equivalente ao primeiro ciclo do ensino primário e com “preparação técnico-táctica adequada”.

O regulamento define ainda que para o exercício das suas funções, o pessoal de segurança privada “deve ser titular de carteira profissional”, emitida pela Polícia Nacional após frequência do correspondente curso de formação profissional, de 60 dias e com uma actualização obrigatória a cada três anos.

Está (isto é… ) igualmente previsto que estes vigilantes possam usar, além de rádios de comunicação, cacetes de protecção, algemas, coletes antibala e cassetetes, também gás pimenta, pistolas eléctricas não letais, e armas de fogo de defesa, “mediante autorização do Comando Geral da Polícia Nacional”.

As empresas privadas de segurança, contrariamente ao que chegou a ser previsto, podem fazer uso e porte de pistolas semiautomáticas de calibre não superior a 7,65 milímetros (mm), revólveres de calibre inferior a nove mm e espingardas semiautomáticas de calibre não superior a 7,65 mm.

As empresas que exercem ainda a actividade de transporte de bens e valores podem fazer uso de carabinas de repetição de calibre 38 mm, espingardas de calibre 12 mm, 16 mm ou 20 mm e pistolas semiautomáticas de calibre 38 mm. Contudo, todo o armamento e munições a adquirir devem ser solicitados, por requerimento, à Polícia.

FAA queriam controlar armamento

Em 2016 foi anunciado que as Forças Armadas Angolanas (FAA) queriam criar uma base de dados e controlar as armas de guerra nas mãos de particulares, empresas privadas de segurança e as utilizadas pela polícia, face à falta de informação actual.

Armas de guerra nas mãos de populares? Finalmente, dirão alguns. Outros pensaram que a ideia era outra e que, com esta medida, as FAA estavam a ajudar o regime a encontrar razões para voltar ao fantasma da guerra, forma típica de perpetuar no poder os mesmos de sempre, os mesmos que lá estão desde 1975.

A posição foi transmitida aos jornalistas pelo chefe da Direcção Principal de Armamento e Técnica das FAA, tenente-general Afonso Neto, à margem de uma reunião metodológica, em Luanda, sobre armamento.

“Nós, Forças Armadas, utilizamos armas e também há outros operadores, outras organizações, que utilizam armamento. Pensámos que este trabalho que estamos a fazer (registo de armas) necessariamente terá de evoluir para os outros sectores (…) obrigatoriamente teremos de encontrar uma modalidade que permita que tudo o que é armamento de guerra que não esteja nas FAA seja controlado por nós”, explicou. O objectivo passava mesmo por “absorver”, colocando em depósitos de armamento, essas armas, disse ainda.

Em Angola, e apesar de legislação já aprovada proibindo a utilização de armas de fogo, continua a ser usual observar seguranças privados a circularem e patrulharem a via pública munidos de metralhadoras e outras armas de guerra. Ou seja, estamos num país em que vale tudo, até mesmo a existência de exércitos privados.

A Polícia angolana tem também vindo a admitir o crescente número de assaltos e outros crimes violentos utilizados com recurso a armas de guerra, sobretudo metralhadoras AK.

Além de uma base de dados com registo e informação sobre as armas de guerra, as FAA queriam igualmente controlar o armamento do género na posse da Polícia. Então a Polícia não tem autonomia? E a Guarda Presidencial tem?

“Os órgãos de polícia têm armamento de guerra que têm de ser controlados por nós. Temos de ter uma base de dados para saber que essas armas estão na Polícia Nacional”, sublinhou o tenente-general Afonso Neto, admitindo que no cenário da altura (2016) não havia informação sobre estas armas.

“Em toda a parte do mundo a única entidade que faz o controlo e registo das armas de guerra são as Forças Armadas”, concluiu o oficial das FAA.

E a lei de Maio de 2014?

A Lei sobre as Empresas Privadas de Segurança, aprovada em Maio de 2014, impunha (isto é como quem diz) um plano gradual de substituição de cerca de 30 mil armas de guerra, na posse destes elementos, por outras de autodefesa.

Na altura, o coordenador da Comissão Nacional para o Desarmamento da População Civil, comissário-chefe Paulo de Almeida, admitiu, contudo, que “há ainda muitas coisas que precisam ser devidamente esclarecidas” no âmbito desta legislação, aprovada pela Assembleia Nacional em Maio de 2014.

A Lei envolvendo as Empresas Privadas de Segurança colocava exigências relativas à formação do pessoal, um valor mínimo obrigatório de remuneração ou um capital mínimo para a sua constituição.

O uso de armas do tipo de autodefesa, em substituição das armas de guerra utilizadas diariamente sem qualquer tipo restrição pelas ruas das cidades angolanas – estima-se que cerca de 30 mil -, seria a principal mudança e uma das maiores preocupações das autoridades.

“Há uma outra lei que se vai associar a esta, é a Lei do Uso e Porte de Armas. Isto vai definir o que é que são armas de defesa pessoal – armas de caça, de recreio, os calibres – e vai exigir os requisitos que devem ter os possuidores desse tipo de armas”, explicou Paulo de Almeida.

O também, na altura, segundo comandante-geral da Polícia Nacional de Angola sublinhou que a substituição de armas seria feita de forma gradual, tendo em conta que Angola não possui casas de venda de armas de autodefesa.

“Eles vão ter que necessariamente importá-las, procurar outros mercados para adquirirem essas armas e depois há todo um procedimento de verificação, fiscalização, controlo e então vai levar um certo tempo”, frisou aquele alto oficial da Polícia angolana.

Instado a comentar a contradição sobre as empresas de segurança privada usarem armas de autodefesa – com menor poder de fogo – enquanto os meliantes têm na sua posse armas de guerra, como se constatava (e constata) nos assaltos, Paulo de Almeida assumiu uma “incongruência” neste aspecto.

Ainda assim, salientava, essa substituição é um imperativo: “Nós não podemos ter vários exércitos e a posse de armas de guerra, em mãos de serviços, que não são forças militares, nem paramilitares, são serviços, pode acarretar outros problemas, um deles é esse da irresponsabilidade e da negligência e às vezes da não assunção sobre essa perda de armas”.

Segundo o coordenador do processo de desarmamento da população civil angolana, em curso desde 2008 e que já tinha permitido recolher até 2014 mais de 80 mil armas, uma das maiores preocupações tem a ver com as armas em posse das empresas de segurança privada que vão parar às mãos dos delinquentes por negligência do pessoal.

“De facto precisamos melhorar um pouco mais a qualidade operacional e mesmo de resposta das forças privadas de segurança e também criar outros sistemas de controlo, sobretudo que reforçam a capacidade de segurança e de observação das próprias empresas”, adiantou.

“De modo que a própria preparação vai fazer com que eles [seguranças], mesmo com estas armas de autodefesa, consigam contrapor essas acções dos bandidos, porque embora sejam armas de autodefesa, matam, aleijam, ferem”, rematou.

Folha 8 com Lusa

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