As associações angolanas de defesa dos direitos humanos Handeka e Mosaiko – Instituto para a Cidadania repudiam a “excessiva carga policial” numa manifestação em Luanda, no sábado, apontando um “recuo no exercício das liberdades fundamentais”. Em síntese, dirá com certeza a governadora de Luanda, Joana Lina, para que é que os escravos do MPLA precisam de liberdades?
Por Orlando Castro (*)
“Q ueremos mostrar o nosso veemente repúdio pela forma como se mostrou um recuo ao exercício das liberdades fundamentais, um recuo na prática de repressão de tempos não muito longínquos e de muito má memória a forma como se lida com o cidadão que quer reivindicar um ou mais direitos”, afirmou hoje Luaty Beirão (um dos condecorados por João Lourenço), em Luanda.
O também presidente da Associação Cívica Handeka, que apresentava em conferência de imprensa o repúdio de ambas as organizações, disse que o que passou no sábado passado, “independentemente de se assacarem responsabilidade de quem terá lançado a primeira pedra, é inaceitável”.
De facto, seria inaceitável se estivéssemos a falar de algo que Angola (ainda) não e: uma democracia e um Estado de Direito. Quanto, há três anos, o Folha 8 escreveu que a mudança do rei dos jacarés não significava, como foi afirmado, que os jacarés passariam a ser todos vegetarianos, fomos acusados de alarmistas. Recordam-se?
Luaty Beirão sustentou que a “violência que se gerou” é “inaceitável”, afirmando que não se pode “ficar indiferente nem compactuar” com “a forma como o Estado geriu este assunto”.
“Não queremos mais voltar a um tempo em que tememos emitir opiniões, em que tememos exercer os nossos direitos, em que tememos discutir abertamente e criticar quem exerce as políticas públicas, isto não pode voltar a acontecer”, sublinhou Luaty Beirão, também activista cívico.
Não pode voltar acontecer? É só esperar para ver. E já que esperamos, relemos uma nota de imprensa da Casa Civil do Presidente da República, João Lourenço, que salientava a presença na cerimónia de condecoração de Rafael Marques, pela Fundação Open Society Angola, e de Luaty Beirão e Alexandra Simeão, ambos pela associação Handeca, estariam igualmente presentes representantes de cerca de uma dezena de instituições ligados à defesa dos direitos humanos, desenvolvimento rural, direito e promoção da juventude.
Escrevia na altura a revista portuguesa Sábado, pela pena de Diogo Barreto, que “esta decisão é uma continuação do trabalho de reformulação do regime angolano que tem sido levada a cabo pelo general João Lourenço desde que subiu ao poder, há pouco mais de um ano. Desde então, Lourenço procedeu a uma reformulação dos órgãos estatais, incluindo na Sonangol, a petrolífera que representa um dos principais activos do governo angolano. Mal chegou ao poder, João Lourenço promoveu uma alteração numa das jóias da coroa do governo de José Eduardo dos Santos, retirando a filha do ex-presidente, Isabel dos Santos, da liderança da empresa”
Diogo Barreto acrescentava: “A notícia de que Luaty Beirão seria recebido pelo presidente angolano foi bem recebida pela comunidade internacional e por alguns sectores angolanos, sendo dito que representa uma nova abertura do regime a outras visões. A verdade é que Luaty se mostrou algo satisfeito com o convite e utilizou as redes sociais para mandar uma mensagem aos que o criticaram pela sua greve de fome. “Disseram que queria dar golpe de estado/ Retirar do trono o Zé/ instalar-me no Palácio”, escreve o rapper em forma de poema, referindo-se Às críticas que diziam que o luso-angolano só protestava pois queria ficar no poder. “Respondi:/ A única forma de algum dia entrar nesse mambo/ Será pelo portão da frente/ Como ilustre convidado”, recusando qualquer tentativa de golpe para chegar ao poder.”
Em 8 de Abril de 2020, o Folha 8 perguntava: A Amnistia Internacional assume que “os direitos à liberdade de expressão e reunião pacífica continuavam ameaçados” em Angola em 2019. Pois é. E onde estão, hoje, os condecorados Luaty Beirão, Rafael Marques, Bonga e tantos outros que criticaram o nosso cepticismo e louvaram o jacaré vegetariano?
Luaty Beirão foi detido, em 2015, por se ter reunido, em Luanda, para discutir política e alternativas para o país e foi julgado e condenado, a 28 de Março de 2016, com outros 16 activistas acusados de tentativa de golpe de Estado contra o ex-presidente angolano José Eduardo dos Santos.
A tentativa de uma manifestação organizada por jovens da sociedade civil, com apoio de dirigentes do maior partido da oposição que o MPLA (ainda) permite, a UNITA – e de outras forças da oposição, foi frustrada pelas autoridades, tendo resultado em 103 detenções (incluindo jornalistas), ferimentos de polícias, e de manifestantes em números não revelados, além da destruição de meios das forças da ordem.
Os protestos ficaram marcados também pelo arremessar de pedras, colocação de barricadas na estrada com contentores de lixo e pneus a arder pelos manifestantes. A marcha visava reivindicar (ao fim de 45 anos de independência sempre sob o comando do MPLA) melhores condições de vida, mais emprego e a realização das primeiras eleições autárquicas em Angola.
Entre os mais de 100 detidos estão jovens de movimentos cívicos, activistas e outros manifestantes. Houve também seis jornalistas detidos, três dos quais libertados apenas na segunda-feira e sem explicações… nem condecorações.
Com a chegada (por escolha pessoal de José Eduardo dos Santos) de João Lourenço ao Poder, foi razoável pensar que são cada vez mais os instintos e cada vez menos as razões. De um lado e do outro residem argumentos válidos, tão válidos quanto se sabe (é da História) que para os senhores do poder (hoje terroristas, amanhã heróis – ou ao contrário) o importante é a sociedade que tem de ser destruída e não aquela que tem de ser criada.
Com João Lourenço hoje, tal como com José Eduardo dos Santos ontem, estão uma série de personalidades (ou personagens), nem todos de forma sincera. Muitos, com medo do cão raivoso, aceitaram (mesmo que contrariados) a ajuda do leão. Quando se aperceberem (alguns já se aperceberam), o leão derrotou o cão e prepara-se para os comer a eles. Aliás, os homens de João Lourenço são especialistas em criar leões onde mais lhes convém.
O mesmo se aplica em relação aos chamados de marimbondos. Mas, como os instintos ultrapassam a razão, ambos estão convencidos que são donos e senhores da verdade absoluta. O confronto foi, é e será, por isso, inevitável.
Graças a João Lourenço, os agora marimbondos poderão não ter, hoje, a mesma capacidade “bélica” de outrora. Estão a ser humilhados. São as leis da razão? Não. São as leis dos instintos. Instintos que vão muito além das leis da sobrevivência. Entram claramente na lei da selva em que o mais forte é, durante algum tempo mas nunca durante todo o tempo, o grande vencedor.
É claro que, transitoriamente, alguns admitiram aliar-se a João Lourenço. Inclusive aceitam a corda fornecida pelo actual detentor do Poder mas, na melhor oportunidade, vão enforcar os seus “amigos” de agora, vão cuspir no prato que os alimenta. Foi, aliás, isso mesmo que fez João Lourenço.
Então? Então é preciso ir em frente. Sem medo. Olho por olho, dente por dente. No fim, o último a sair – cego e desdentado – que feche a porta e apague a luz…
(*) Com Folha 8