Três dos meus amigos perderam os pais em 1977, em Angola, fuzilados na sequência de uma nunca provada tentativa de golpe de Estado contra o então Presidente da República, António Agostinho Neto. Num discurso famoso, Neto disse que não iria perder tempo com julgamentos, incitando ao assassinato de todos aqueles que contestassem a sua liderança. Perto de cinquenta mil pessoas foram presas, torturadas e mortas durante esse período de desvairado ódio institucional.
Por José Eduardo Agualusa (*)
Há poucos dias, o jornalista angolano Wiliam Tonet provocou acesa polémica no país ao sugerir que as estátuas de Agostinho Neto deveriam ter o mesmo destino das dos escravocratas e racistas norte-americanos.
Não me parece difícil compreender a revolta das pessoas cujos parentes e amigos foram executados às ordens de Agostinho Neto. As estátuas representando o primeiro presidente angolano constituem para essas pessoas uma afronta permanente.
Não adiantaria muito colocar uma placa junto às referidas estátuas explicando que Agostinho Neto foi um grande patriota angolano, sim, mas também um déspota terrível. Seria como apresentar alguém dizendo: “senhoras e senhores, peço o vosso aplauso para este assassino adorável e maravilhoso.”
Da mesma forma que compreendo os argumentos de Wiliam Tonet, não posso deixar de concordar com os jovens iconoclastas norte-americanos. Uma estátua de um homem que enriqueceu comprando e vendendo pessoas, ou que se notabilizou defendendo a natureza inferior deste ou daquele grupo populacional, ofende não apenas os descendentes dessas pessoas, mas toda a humanidade. Tais estátuas nunca deveriam ter sido erguidas. Isso só aconteceu porque naquela época o pensamento dominante aprovava ou tolerava ideias que hoje, felizmente, nos parecem moralmente repugnantes.
A partir do momento em que a humanidade ascendeu, revoltando-se contra tais ideias, o elogio público às mesmas deveria ter sido retirado.
Sem surpresa, a ânsia de cortar cabeças de pedra ou de bronze tem provocado vítimas inocentes. Em Lisboa, uma estátua que pretende homenagear o padre António Vieira foi pichada com tinta vermelha. Em Coimbra, um busto de Baden-Powell, não o músico, mas o fundador do escotismo, perdeu a cabeça. Em Paris, atacaram uma imagem de Voltaire.
Conhecendo a obra de António Vieira — um padre português, de origem angolana, que dedicou a vida à defesa das populações indígenas do Brasil —, suponho que caso lhe dessem oportunidade, ele mesmo decapitaria aquela sua estátua, e outras que eventualmente existam pelo mundo.
A melhor homenagem que se poderia prestar a António Vieira seria criar uma fundação com o seu nome, dedicada a defender os primeiros habitantes do Brasil.
A Voltaire, como a qualquer outro escritor, não existe melhor homenagem que ler e divulgar a sua obra.
Suspeito que só os tiranos e os maus políticos gostam que lhes ergam estátuas. E, exceptuando os pombos, não vejo quem possa, com argumentos sólidos e convincentes, defender as estátuas de tiranos e maus políticos.
(*) Escritor. Publicado originalmente no “O Globo”, Brasil
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