O economista Alves da Rocha disse hoje, em Luanda, que, em Angola, os problemas de transparência na contratação pública não estão apenas na atribuição das obras, mas sim na “incidência política muito grande” que existe. Mas será mesmo assim quando a mesma pessoa é, entre outros cargos, presidente do único partido que governou o país, Titular do Poder Executivo e Presidente da República?
Alves da Rocha falava hoje em declarações à agência Lusa, à margem da apresentação do relatório sobre o Custo de Desenvolvimento de Infra-estruturas em Angola, elaborado em colaboração entre o Centro de Estudos e Investigação Científica (CEIC) da Universidade Católica de Angola e o Chr. Michelsen Institute (CMI).
Segundo o economista, o documento, referente ao período entre 2011 e 2014, identifica os problemas que existiam na altura para que houvesse maior transparência na contratação pública.
O docente universitário e director do CEIC referiu que foram identificados os obstáculos e os canais por onde se “esvaía alguma percentagem do dinheiro público na atribuição das obras e na realização dos concursos”.
“Sabe-se que os problemas não existiam apenas na fase de contratação, na atribuição da obra a uma determinada empresa de construção civil, os problemas vinham de trás. Está identificado no relatório que havia excessiva concentração do poder de decisão”, sublinhou Alves da Rocha.
De acordo com o investigador, foram identificadas quatro ou cinco instituições com participação no processo da tomada de decisão do investimento antes da contratação, onde já se indiciava “uma incidência política muito grande”.
“No sentido de se dizer que os investimentos públicos não têm que necessariamente responder à satisfação de necessidades colectivas – que é para isso que os investimentos públicos são feitos -, mas ocorriam propostas, ideias, fora do processo normal de elaboração do programa de investimentos públicos”, disse.
“Logo aí, há um desvio. Logo, a partir daí, o processo não é transparente, bem como os processos da tomada de decisão e de elaboração do Programa de Investimentos Públicos [PIP], porque havia, na verdade, interferências com propósitos mais ou menos pessoais, disfarçados de necessidades públicas ou necessidades colectivas”, notou.
Relativamente ao processo concreto da contratação, disse que foram identificadas situações em que, “nos casos em que havia concurso público”, o mesmo era aberto com a identificação de um valor, chegando-se depois à conclusão que não correspondia ao da obra que tinha sido adjudicada.
“E mais grave do que isso, eventualmente, é que quando a obra era entregue, era com o valor superior àquilo que se tinha contratado, ou seja, ao longo do processo de construção da obra pública ocorriam desvios, distorções, que faziam com que no fim essa obra pública custasse 50% ou 60% a mais”, frisou.
Alves da Rocha disse que, na altura em que trabalhou no Ministério do Planeamento, há 22 anos, referia que não havia uma avaliação técnica do investimento público.
“Ele é incluído no pacote por influências políticas e por determinações políticas e não através de critérios que diga, sim senhor, o projecto ‘A’ é melhor que o projecto ‘B’, porque tem retornos económicos e que tem resultados sociais”, salientou.
O economista, que espera que este quadro “se altere”, defendeu que a solução para a situação “é a transparência e o cumprimento dos regulamentos”.
“O Governo criou agora o Gabinete da Contratação Pública para que as regras da atribuição de obras públicas sejam respeitadas, isso é o que deve ser feito. Não é difícil, só não é feito se não se quiser, se não houver vontade política”, referiu.
O problema de Angola, prosseguiu, não é falta de legislação, até “há a mais”, disse Alves da Rocha. “O nosso problema é que não sabemos quanto é que custa a aplicação dessa legislação, ninguém sabe. Cria-se legislação e ninguém sabe quanto é que isso custa e como é que isso é aplicado”, criticou.
Probidade virou bacanal. E agora?
Os extintos ministérios das Obras Públicas e Construção não justificaram, entre 2007 e 2014, despesas de até 30.000 milhões de kwanzas (100 milhões de euros), denunciou em 4 de Agosto de 2018 a Inspecção-Geral da Administração do Estado (IGAE).
Os dados foram apresentados pelos funcionários do actual Ministério da Construção e Obras e pelo director do gabinete de Inspecção da IGAE, Tomás Gabriel, no âmbito de uma formação sobre as Principais Irregularidades na Administração Pública e a Lei.
A informação consta de um relatório sobre “irregularidades do funcionalismo público” feito pela IGAE, onde o órgão reconhece “eficiência” na descentralização do sistema informático de gestão de recursos humanos, mas considera que o país “carece de um sistema de controlo interno adequado”.
Segundo Tomás Gabriel, alguns gestores dos recursos humanos, “porque lhes convém, introduzem funcionários no sistema de recursos humanos dos Ministérios”. “E muitas vezes sem o conhecimento do titular do órgão”, acrescentou. Segundo o documento, nos processos individuais, a IGAE detectou nesse período que falta documentação essencial na maior parte dos processos, bem como existem imprecisões nos arquivos e no classificador ocupacional.
No domínio da gestão orçamental e patrimonial, a Inspecção Geral da Administração do Estado diz ter identificado a “não submissão” dos contratos ao Tribunal de Contas para obtenção do visto de conformidade. “Aí, os ministérios ou governos provinciais faziam o fraccionamento dos contratos, ou seja, para evitar levar o contrato ao Tribunal de Contas, repartiam o contrato em cinco. Assim, o valor diminuía e deixava de ser necessário remeter ao Tribunal”, refere-se no documento.
Segundo a IGAE, o quadro de pessoal em vigor nos departamentos ministeriais e órgãos da administração local do Estado não observam dados quantitativos de pessoal do grupo técnico, havendo ainda situações de categorias profissionais “não previstas no quadro do pessoal”.
“Ou seja, num determinado órgão da administração local do Estado encontramos um quadro de pessoal médico. Mas, confrontando-se com o quadro de pessoal, não há nenhuma categoria de médico. Encontramos ainda um caso em que o número de técnicos médios era de 16, mas na folha de salário estão 50”, acrescentou.
Nos gabinetes de titulares da função executiva, adiantou Tomás Gabriel, há pessoal em número excedentário. “Há casos em que os titulares apenas têm direito a dois [colaboradores], mas acabam por entrar 20. O mesmo se passa nas residências dos titulares de funções executivas”, denunciou.
Tomás Gabriel revelou ainda que os extintos ministérios das Obras Públicas e Construção não justificaram, entre 2007 e 2014, despesas de até 30.000 milhões de kwanzas (100 milhões de euros).
Segundo o director do gabinete de Inspecção da IGAE, além de outras irregularidades detectadas, em 2007, o extinto Ministério das Obras Públicas promoveu 14 funcionários que não reuniam requisitos legais para o efeito, não celebrou contratos com o pessoal eventual e “nem sequer justificou despesas de cerca de 30 bilhões de kwanzas”. “E quando pedimos o contraditório, o ministro na altura (general Higino Carneiro) disse que não tinha tempo para dar justificações”, adiantou Tomás Gabriel.
Ainda em 2007, de acordo com a IGAE, o departamento ministerial suportou despesas de viaturas a pessoal estranho ao Ministério, adquiriu meios não inventariados e executou cerca 64 contratos cujos vistos foram recusados pelo Tribunal de Contas.
Segundo Tomás Gabriel, entre as “várias irregularidades” detectadas ainda em 2007, a IGAE constatou a “remuneração” ilegal da Comissão de Coordenação do chamado Projecto da Linha de Crédito da China.
Já em 2014, a IGAE verificou que o extinto Ministério da Construção procedeu à execução de contratos de prestação de serviços caducados e não justificou uma despesa no valor de mais de 6.000 milhões de kwanzas (20 milhões de euros).
O actual Ministério da Construção e Obras Públicas, fruto da legislatura que teve início em agosto de 2017, fundiu os anteriores Ministérios das Obras Públicas e o do Construção.
Ainda segundo o director do gabinete de Inspecção da IGAE, o Governo angolano pagou há quatro anos 69 milhões de kwanzas (230 mil euros) para financiar um projecto de distribuição de água numa província em Angola em que tudo está ainda por fazer. O director de gabinete da IGAE, que não indicou qual a província em causa, salientou que o projecto estava orçado em 80 milhões de kwanzas (270 mil euros).
Tomás Gabriel acrescentou que, há quatro anos, o Governo adiantou às empresas contratadas a verba inicial de 230 mil euros para se avançar com a obra, tendo descoberto que nada foi feito.
Acrescentou que, das 50 acções ligadas ao projecto, apenas cinco foram cumpridas, e todas em 2014, sublinhou, sem identificar quais as empresas em causa. “As populações dessas comunidades consomem as águas das cacimbas, sem qualquer tratamento e, para nós, isso é falta de humanidade das pessoas”, lamentou Tomás Gabriel.
Segundo o responsável, que falava perante os funcionários do Ministério das Obras Públicas e Construção, tal situação pode provocar ainda um clima de “insegurança e desconfiança” entre os funcionários e dirigentes, facto comprovado com as constantes queixas, denúncias e reclamações “que vão cair na esfera da IGAE” e “resultam justamente desse clima de insegurança e desconfiança junto das instituições governamentais, geram questionamentos sobre a capacidade de gestão e liderança dos titulares dos órgãos”.
O director do gabinete da IGAE sublinhou que já reina “a confusão entre o poder discricionário e arbitrariedade” entre os titulares de cargos públicos, pelo que cabe à Inspecção-geral “delimitar essas fronteiras”.
João Lourenço conhecia a Lei da Probidade?
A Lei da Probidade Pública constitui, segundo seu articulado e os devaneios propagandísticos do regime, mais um passo para a boa governação, tendo em conta o reforço dos mecanismos de combate à cultura da corrupção.
Recorde-se que a Assembleia Nacional aprovou no dia 5 de Março de 2010, com o devido e apologético destaque propagandístico da imprensa do regime e não só, por unanimidade, a Lei da Probidade Administrativa, que visa (de acordo com a versão oficial) moralizar a actuação dos agentes públicos angolanos.
Disseram na altura, e continuam a dizer agora, que o objectivo da lei é conferir à gestão pública uma maior transparência, respeito dos valores da democracia, da moralidade e dos valores éticos, universalmente aceites.
O então presidente da República, do MPLA (partido no poder desde 1975) e chefe do Executivo (para além de outros cargos), José Eduardo dos Santos, quando deu posse ao então novo Governo, entretanto várias vezes remodelado, reafirmou a sua aposta na “tolerância zero” aos actos ilícitos na administração pública.
Apesar da unanimidade do Parlamento, e passado todo este tempo, o melhor é fazer, continuar a fazer, o que é aconselhável e prudente quando chegam notícias sobre a honorabilidade do regime, esperar (sentado) para ver se nos próximos dez ou 20 anos (o optimismos faz parte do nosso ADN) a “tolerância zero” sai do papel em relação aos donos dos aviários e não, como é habitual, no caso dos pilha-galinhas.
Essa lei “define os deveres e a responsabilidade e obrigações dos servidores públicos na sua actividade quotidiana de forma a assegurar-se a moralidade, a imparcialidade e a honestidade administrativa”. É bonito. Digam lá que não parece – em teoria – um Estado de Direito?
Mas alguém acredita? Mas alguém está interessado? Acreditarão nisso os 68% (68 em cada 100) dos angolanos que são gerados com fome, nascem com fome e morrem pouco depois com fome? Ou as 45% das crianças que sofrem de má nutrição crónica, sendo que uma em cada quatro (25%) morre antes de atingir os cinco anos?
Se calhar não acreditam. Têm, contudo, de estar caladinhos e nem pecar em pensamentos. Mas acreditava o MPLA, já na altura com a presença dirigente de João Lourenço. E isso bastava e basta. A Lei da Probidade Administrativa foi tão eficaz que Angola subiu meio lugar nos últimos lugares do “ranking” que analisa a corrupção.
O importante é que o MPLA recebe os encómios dos países acocorados perante o petróleo angolano, que preferem negociar com um regime corrupto do que, eventualmente, com um que tenha uma base democrática.
Se calhar, pensam baixinho os angolanos que usam a cabeça e não a barriga para analisar o seu país, para haver probidade seria preciso que o poder judicial fosse independente e que o Presidente da República não fosse – como acontece à luz da Constituição – o “cabeça-de-lista” (ou seja o deputado colocado no primeiro lugar da lista), eleito pelo do circulo nacional nas eleições para a Assembleia Nacional.
Se calhar para haver probidade seria preciso que não fosse o Presidente a nomear o Vice-Presidente, todos os juízes do Tribunal Constitucional, todos os juízes do Supremo Tribunal, todos os juízes do Tribunal de Contas, o Procurador-Geral da Republica, o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas e os Chefes do Estado-Maior dos diversos ramos destas.
Se calhar para haver probidade seria preciso que Angola fosse um Estado de Direito, coisa que manifestamente (ainda) não é.
Folha 8 com agências e DW