Alguém disse que quem está sempre a falar do passado deve perder um olho. Será esse o destino de quem, como nós, não se cansa de falar de um passado que, nesta circunstância, tem 42 anos? É possível que sim. Conforta-nos, contudo, o facto de que esse mesmo alguém terá acrescentado que quem se esquecer do passado deve perder os dois olhos.
Por Jornal Folha 8
As vítimas dos massacres do 27 de Maio de 1977 merecem que, se necessário, percamos os dois olhos e até mesmo a vida como, aliás, esteve perto de acontecer por diversas vezes. Acreditamos, contudo, que haverá quem como nós esteja disposto a ficar cego ou a chocar definitivamente com uma bala para que os culpados sejam julgados.
Já não se trata de descobrir a verdade. Trata-se de a assumir e, dessa forma, se fazer as pazes com a nossa identidade, com a nossa história, com o nosso Povo e ter a hombridade de olhar os familiares das vítimas, de olhar a verdade e rogar humildemente o seu perdão.
Enquanto isso não acontecer nem os mortos terão paz e nem os vivos merecerão caminhar num país em que, na verdade, o infinito tem tonalidades de sangue e o horizonte cheira a dor.
Para compreender o que se passou no dia 27 de Maio de 1977 e, sobretudo o que se passou depois desse dia, não basta ter o conhecimento da situação criada por um litígio que opôs então duas alas rivais do MPLA, de um lado os Netitas, do outro, os Nitistas.
Os antecedentes da trama engendrada contra Nito Alves, ícone como comandante da guerrilha e José Van-Dúnem, ex- prisioneiro político de São Nicolau, e milhares de outros jovens intelectuais, militantes do MPLA, continuam escondidos no lamaçal fedorento e cúmplice onde ainda se movimentam antigos camaradas de armas, transfigurados em algozes para a defesa dum poder manchado de sangue, que prossegue a sua rota insensível aos clamores das almas de milhares de vítimas assassinadas e dos seus familiares que aguardam por um simples boletim de óbito.
Caricatamente, ante a crueldade dos assassinatos selectivos, instaurados por Agostinho Neto desde 1964, na luta de libertação nacional e os em massa e sem julgamento levados a cabo pela tenebrosa DISA, polícia política do seu regime, entre 1977 e 1979, é confrangedor, em pleno século XXI, o mutismo e o cinismo do regime, que proclamou “em nome do comité central do MPLA”, em 1975, a Independência de Angola sem a realização de eleições para a formação de uma verdadeira Assembleia Constituinte e gerais e democráticas, como vaticinavam os Acordos do Alvor rubricados com as autoridades portuguesas e os três movimentos de libertação nacional: FNLA, MPLA e UNITA.
Não tenhamos medo das palavras que, como sempre, são a alma da verdade. Por esta razão, não se pode tentar tapar com uma peneira o maior genocídio levado a cabo no século passado por uma força política no poder, contra militantes do seu próprio partido, o MPLA, cujo crime foi o de reivindicar, em sede própria, um maior pragmatismo ideológico na condução dos destinos da então República Popular de Angola. Ademais, estamos em face de um fenómeno que sai das fronteiras angolanas.
Na realidade, depois dos horrores praticados por Adolph Hitler e dos seus serviços de segurança, a Gestapo, na II Guerra Mundial, a DISA (Direcção de Informação e Segurança de Angola) de Angola, protagonizou a maior chacina ocorrida no século XX em África, com a mui benévola colaboração intervencionista do partido no poder, o MPLA e das tropas mercenárias cubanas.
Esta é a verdade! Dói? Dói, com certeza. Mas não tenhamos dúvidas. Só ela cura, só ela pode curar, as muitas feridas que hoje – mesmo de forma anónima – vagueiam como aterradores fantasmas nas mentes de todos nós. Ou de quase todos nós.
Os números oficiosos, baseados nas prisões arbitrárias, na quantidade de presos em campos de concentração, nas múltiplas cadeias, nos fuzilamentos diários, nos enterrados vivos, nos jogados de avião ou lançados ao mar, são aterradores: 60 mil ou mesmo 80 mil vítimas, na sua maioria intelectuais jovens brutalmente assassinados sem direito a qualquer tipo de defesa.
Assassinados porque queriam o melhor para o seu país, porque acreditavam que dizer o que pensavam ser o melhor para o Povo era o melhor predicado que se exigia a cada angolano, a cada um de nós. Enganaram-se. Passou-se uma autêntica “limpeza da intelectualidade autóctone”. Mas, apesar da sanha criminosa dos seus algozes, há sempre quem consiga sobreviver, há sempre quem consiga resistir. Hoje, aqui, somos a prova disso.
E nessa mal-aventurada empreitada, “o guia imortal”, “o político profundamente humano”, como o “marketing tacanho” do regime propaga ainda hoje e de forma acéfala ter sido Agostinho Neto, ao mostrar tamanha insensibilidade no seu desempenho, “promulgando as listas de morte” levantadas pela “corte de sangue”, ter-se-á, para muitos, transformado no “médico-político profundamente assassino”, com o seu apogeu a estatelar-se na lama, no genocídio de 27 de Maio de 1977.
Enterrando, à força, a balança da justiça atirou às urtigas os preceitos da mesma: imparcialidade, sensatez e frieza, apanágio dos grandes líderes nos momentos de divergências internas. Mostrou, aliás, que não basta ser um homem grande (e não era o caso) para se ser um grande Homem. Mostrou, como outros na actualidade, que se o valor dos angolanos se medisse pela sua estatura moral, ética e patriótica, Agostinho Neto amesquinhava-nos a todos.
Mostrou-se sempre, mais ou menos, parcial, sobretudo depois de ter tomado partido irreversível pela ala liderada pelo seu padrinho e confidente, Lúcio Barreto de Lara, contra quem conseguiu unir as lianas da guerrilha, no 1º Congresso do MPLA, realizado em 1974, em Lusaka, o mítico Alves Bernardo Baptista. Terá sido esta opção digna do perfil de um líder, num momento de crise? Recordamos que um líder não se constrói por decreto. Ou se é ou não vale a pena continuar.
Nito Alves, o jovem e histórico comandante da 1ª Região que o havia salvado de morte (política) súbita no conclave de Lusaka, na capital da Zâmbia, quando a maioria dos militantes do interior e exterior estavam contra a direcção do partido, três anos depois viu-se cobardemente abandonado pelo homem que ele tinha salvado, Agostinho Neto, e sem possibilidade de esgrimir os seus argumentos em fórum próprio. Era latente a abissal diferença entre a gigantesca estatura moral e humana de um e o nanismo de outro.
Nito Alves travou uma luta titânica contra o tempo, por se ter dilatado voluntária ou involuntariamente o prazo de dois meses dado pelo Comité Central à Comissão de Inquérito liderada por José Eduardo dos Santos para ouvir os acusados.
A estratégia foi masoquista, pois passava-se a ideia, para o público de um hipotético inquérito, mas a máquina, os bastidores tinha instruções para frear a sua marcha, pois o destino dos acusados já estava traçado. Hoje dir-se-ia que as “ordens superiores” eram claras: Até prova em contrário (que nunca poderia existir) Nito Alves era culpado. Não havia espaço para inocentes, muito menos para exercitar o contraditório.
Assim, não houve qualquer inquérito. Catalogado como culpado, antes de qualquer juízo imparcial e isento, escancarou-se-lhe o coração, num impulso de irreverência, para, num último grito do Ipiranga, explicar aos membros do Comité Central e organizações sociais do MPLA, a injustiça que campeava contra a sua pessoa e companheiros de infortúnio.
Com todos os campos minados, com a maquinação no seu esplendor, a única companheira era a frustração, que lhe permitiu encarar de frente, erecto como sempre, a cobarde e assassina muralha de betão, ardilosamente ministrada na comunicação social por Costa Andrade “N’dunduma” e Artur Pestana “Pepetela”, que, numa premonição impressionante, para além da diabolização, previram todo o cenário posterior.
Desta forma, Nito Alves apontou baterias para um “túnel escapatório”: “As 13 Teses em Minha Defesa”, uma visão comunista baseada em fórmulas marxistas-leninistas, que ingenuamente acreditou ser a linha defendida por Agostinho Neto. Ledo engano! Os bons também se enganam.
O Presidente da RPA e do MPLA acreditava sobretudo no não-alinhamento e no liberalismo económico e muito menos no socialismo científico, que publicamente advogava. Por essa razão, foi severamente insensível, e responsável, talvez não a 100%, mas a 90%, pelas mais graves atrocidades cometidas na história da Angola independente.
Ninguém, de forma imparcial, poderá afirmar se Agostinho Neto era um idealista como líder político, ou se carregava uma costela assassina incubada, mas seguramente é obrigado a rememorar, por exemplo, a crise de 1963 do MPLA e as que se seguiram, para entender melhor a mentalidade oblíqua deste médico, casado com uma portuguesa, líder político por convite e talvez poeta da África lusófona com algum talento por veia epidérmica, que presidiu por dois anos ao destino da República Popular de Angola, depois de ter esmagado com o apoio de forças mercenárias cubanas, russas, guineenses, moçambicanas e argelinas, a oposição política da FNLA, que contava com o apoio das tropas zairenses, e a UNITA, que se tinha aliado em desespero de causa aos racistas sul-africanos.
Mas o pendente mais penoso de uma data tão polémica quanto dramática, deve ser analisado com o rememorar de um percurso sinuoso dos trilhos por que passou a história do MPLA, enquanto movimento de libertação, estrela do ex-cometa soviético.
Particularmente, ao relembrarmos uma data onde os rios cobertos de sangue de corpos inocentes, cruzaram o oceano da monstruosidade assassina, esperávamos, mais uma vez ingenuamente, que o actual Presidente do MPLA e da República, João Lourenço tivesse a coragem e a hombridade de fazer o que não fez o ex-coordenador da Comissão de Inquérito e ex-presidente do MPLA e da República, José Eduardo dos Santos, escancarar as portas para um “amplo debate da verdade e conciliação sobre o 27 de Maio de 1977”.
Não era preciso imitar Nelson Mandela, mas aprender com a grandiosidade dos seus gestos, como se escreve reconciliação e paz, na geografia de um país. E Angola carece…
As nuvens carregadas de cobardia não conseguem libertar a chuva para regar a relva da dor e do recalcamento que campeia, na pureza dos nossos corações, mas, ainda que se adie, temos a cumplicidade da actual Constituição de Fevereiro de 2010 considerar que estes crimes, art.º 61.º (Crimes hediondos e violentos), “são imprescritíveis e insusceptíveis de amnistia e liberdade provisória, mediante a aplicação de medidas de coacção processual:
a) O genocídio e os crimes contra a humanidade previstos na lei;
b) Os crimes como tal previstos na lei.
Por tudo isso temos o amanhã do futuro e o hoje do presente, para orar por uma justiça, não só divina, mas também terrena, pese nos catalogarem como “vencidos”, “derrotados”, a realidade mostra que a nossa magnanimidade ultrapassa esse rótulo, porque ao contrário dos nossos detractores, não temos medo de falar, de ouvir, de reconhecer erros, de apontar virtudes e sugerir soluções para uma verdadeira conciliação e pacificação.
Somos sofredores, humilhados, mas dignos, pois temos dimensão de um longo e verdadeiro sentido de perdão.
Por tudo isso, juntamos a nossa voz às vozes anónimas que gritam, neste século XXI, por uma conciliação que clama por certidões de óbito, para que milhares de meninos possam ver coberto os seus documentos com os apelidos dos progenitores.
Finalmente, lançamos mais uma vez desta tribuna um desafio ao MPLA e ao Presidente da República, João Lourenço, para que se libertem do fantasma, abram o dossier sobre o 27 de Maio de 1977, a bem da cidadania e do futuro de Angola e dos angolanos.
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