Vítimas vivas do 27 de Maio contentam-se com pouco

Sobreviventes dos massacres de 27 de Maio de 1977, levados a cabo pelo MPLA sob ordens de Agostinho Neto, consideram “positiva” a disponibilidade manifestada recentemente pelo Governo em passar certidões de óbitos aos familiares das vítimas mortais daquele genocídio, mas defendem que os autores dos massacres apresentem desculpas publicamente e se arrependam do que fizeram. Bem podem esperar sentados.

Em conversa com a VOA, o responsável da Fundação 27 de Maio, general Silva Mateus, afirma que o anúncio do Governo constitui um primeiro passo para se tratarem todos os passivos que o anterior Governo se negou a resolver. Na verdade a culpa é do MPLA porque, desde 1975, todos os governos foram do MPLA.

Silva Mateus diz que a sua organização prepara-se para entregar ao Governo “um conjunto de propostas sobre como o assunto deverá ser tratado”.

Por seu turno, o advogado Miguel Francisco “Michel” considera que a entrega das certidões de óbito às famílias deve ser acompanhada de um debate sobre as causas que estiveram na origem dos massacres e rejeita a tese de que tenha havido “excessos” por parte dos “golpistas”.

Autor do livro “Reflexão: Racismo como cerne da Tragédia do 27 de Maio”, Miguel Francisco é de opinião que depois disso a exigência da exumação dos corpos das vítimas poderá ser ultrapassada.

O Presidente da República, João Lourenço, reconheceu durante a visita a Portugal, que o 27 de Maio é um “dossier delicado” porque naquela ocasião Angola perdeu alguns dos seus melhores filhos.

João Lourenço acrescentou que os governantes estão “abertos ao diálogo” para ver como se pode “reparar as feridas profundas que ficaram nos corações de muitas famílias” por causa destes “tristes acontecimentos”.

Antes desta declaração, o ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Francisco Queiroz, tinha admitido pela primeira vez, diante dos deputados, “ter havido excessos por parte do Governo naquela altura”.

Hipocrisia no seu melhor

A candura recente do Governo só convence os incautos. Recordemos, por exemplo, que duas dezenas de jovens activistas manifestaram-se no dia 27 de Maio deste ano na Praça da Independência, centro de Luanda, exigindo respostas para o massacre de milhares de angolanos, em 27 de Maio de 1977, protesto travado poucos minutos depois pela polícia.

A democracia, a liberdade e as leis “made in MPLA” impostas por João Lourenço (lembram-se quem é?) a isso obrigaram. Agora, quase como um messias, o Presidente do MPLA, ex-ministro da Defesa, Titular do Poder Executivo e Presidente da República aparece nas vestes de bom samaritano e todos se ajoelham.

O protesto de Maio passado aconteceu quando os activistas angolanos surgiram, a correr, para ocupar a Praça da Independência, com cartazes e palavras de ordem sobre o 41.º aniversário dos acontecimentos do 27 de Maio.

“Vamos entrar, vamos entrar no largo”, gritaram os activistas, enquanto ocorriam na direcção do interior da praça, já sob vigilância policial.

Em poucos minutos, dezenas de agentes da Polícia Nacional, incluindo equipas cinotécnicas, acorreram ao local, retirando os activistas.

A manifestação foi justificada por Manuel “Nito Alves”, um dos organizadores, do auto designado Movimento Revolucionário de Angola, como uma “homenagem a todos aqueles que perderam as suas vidas em sacrifício da verdade, da liberdade e em nome do país”.

Estes jovens activistas, conhecidos como “révus”, reclamam o dia 27 de Maio como de “Reflexão e Tolerância Nacional” e, além do esclarecimento de tudo o que se passou em 1977, reivindicam igualmente a construção de um memorial às vítimas.

Apesar destes ténues, tímidos e embrionários pronunciamentos do Governo, é de crer que no calendário do MPLA o mês de Maio não tem nenhum dia 27…

Esta foi a primeira manifestação evocativa dos acontecimentos do 27 de Maio, desde que João Lourenço assumiu o cargo de Presidente da República de Angola.

Vários milhares de angolanos morreram naquele dia e seguintes, em 1977, na resposta do regime do MPLA, nomeadamente os dirigentes Nito Alves, então ministro da Administração Interna, José Van-Dúnem, e a sua mulher, Sita Valles.

A Amnistia Internacional estimou em cerca de 30 mil as vítimas mortais na repressão que se seguiu contra os “fraccionistas” ou “Nitistas”, como eram conhecidos então. No entanto, diversos historiados admitem que esse montante mossa chegar às 80 mil.

Está no ADN do MPLA

Os acontecimentos de 27 de Maio de 1977 em Angola, que provocaram milhares de mortos, foi um “contra-golpe” resultado de uma provocação, longa e pacientemente planeada, tendo como responsável máximo Agostinho Neto, que temia perder o poder. Esta é uma das principais conclusões do livro “Purga em Angola (O 27 de Maio de 1977)”, da autoria dos historiadores portugueses (já falecidos) Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus.

Há 41 anos, Nito Alves, então ministro da Administração Interna sob a presidência de Agostinho Neto, liderou uma manifestação para protestar contra o rumo que o MPLA estava a tomar. Segundo o livro “havia que evitar que os ‘nitistas’ chegassem ao Congresso, anunciado para finais de 1977” porque “existia o sério risco de conquistarem os principais lugares de direcção”.

“A preocupação de Neto e dos seus era, pois, o poder. E pelo poder fariam tudo”, acrescenta. Exactamente o que fez José Eduardo dos Santos durante 38 anos. Exactamente o que está a fazer hoje João Lourenço.

Dalila Mateus afirma que as informações constantes no livro não serão “a verdade completa” sobre o 27 de Maio, mas serão, “certamente, a verdade possível, que não estará muito longe da realidade”.

Por seu lado, Álvaro Mateus afirma que o objectivo é recordar “um passado sombrio, na esperança de que não se volte a repetir”.

Na versão oficial, através de uma declaração do Bureau Político do MPLA, divulgada a 12 de Julho de 1977, o 27 de Maio foi uma “tentativa de golpe de Estado” por parte de “fraccionistas” do movimento, cujos principais “cérebros” foram Nito Alves e José Van-Dúnem, versão que seria alterada mais tarde para “acontecimentos do 27 de Maio”.

Nito Alves e José Van-Dúnem tinham sido formalmente acusados de fraccionismo em Outubro de 1976. Os visados propuseram a criação de uma comissão de inquérito, que foi liderada pelo ex-Presidente José Eduardo dos Santos, para averiguar se havia ou não fraccionismo no seio do partido.

As conclusões desta comissão nunca chegaram a ser divulgadas publicamente mas, segundo alguns sobreviventes, revelariam que não existia fraccionismo no seio do MPLA.

De acordo com o livro, o próprio José Eduardo dos Santos e o primeiro-ministro de então, Lopo do Nascimento, seriam também alvos a abater pela cúpula do MPLA. O ex-Presidente terá sido salvo pelo comissário provincial do Lubango, Belarmino Van-Dúnem.

Os apoiantes de Nito Alves consideravam que o golpe já estava a ser feito por uma ala maoísta do partido, liderada pelo secretário administrativo do movimento, Lúcio Lara, e que terá instrumentalizado os principais centros de decisão do partido e os media, em especial o Pravda (Jornal de Angola), pelo que consideraram que a manifestação convocada por Nito Alves foi “um contra-golpe”.

Os autores do livro chegam à mesma conclusão depois de cruzarem a informação recolhida, desde entrevistas a sobreviventes, ex-elementos da polícia política (DISA) e antigos responsáveis do MPLA, a notícias ou arquivos da PIDE e do Ministério dos Negócios Estrangeiros português.

De acordo com o estudo, “a purga no MPLA atingiu enormes proporções” e é citado um livro laudatório de Agostinho Neto em que se assinala que “o número de militantes do MPLA, depois das depurações, baixara de 110.000 para 32.000”.

Em relação ao número de mortos, os autores optam pela versão dos 30.000, justificando que “no meio-termo estará a virtude”, depois de analisarem dados tão díspares que vão dos 15.000 aos 80.000.

O livro tenta reconstruir os acontecimentos antes, durante e pós 27 de Maio de 1977 e dá conta de testemunhos que referem os horrores a que os chamados fraccionistas foram submetidos, desde prisões arbitrárias, a tortura, condenações sem julgamento ou execuções sumárias.

O apontado líder do alegado golpe de Estado terá sido fuzilado, mas o seu corpo nunca foi encontrado, tal como o dos seus mais directos apoiantes como José Van-Dúnem e mulher, Sita Valles, que foi dirigente da UEC, ligada ao Partido Comunista Português, do qual se desvinculou mais tarde, e foi expulsa do MPLA.

Em Abril de 1992, o governo do MPLA reconhece que foram “julgados, condenados e executados” os principais “mentores e autores da intentona fraccionista”, que classificou como “uma acção militar de grande envergadura” que tinha por objectivo “a tomada do poder pela força e a destituição do presidente (Agostinho) Neto”.

Segundo os autores do livro, “as principais responsabilidades” do 27 de Maio “recaem por inteiro sobre Agostinho Neto” que “não se preocupou com o apuramento da verdade, dispensou os tribunais, admitiu que fizessem justiça por suas próprias mãos”.

O então Presidente da República “acabaria por se revelar o chefe duma facção e não o árbitro, o unificador. Dominado pela arrogância, pela inflexibilidade e pela cegueira, foi incapaz de temperar a justiça com a piedade”, referem.

Quanto à herança do 27 de Maio, o livro conclui que “Angola perdeu muitos dos seus melhores quadros: combatentes experimentados em mil batalhas, mulheres combativas, jovens militantes, intelectuais e estudantes universitários”.

“Os vencedores do 27 de Maio parece terem conseguido o milagre de fazer desaparecer os que sonhavam com um futuro melhor, mais igualitário e mais fraterno para os angolanos”, dizem, acrescentando que se “impôs no país um clima de medo e de violência” porque falar do 27 de Maio se tornou “um tabu”.

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