O discurso do Presidente da República na 73ª Assembleia-Geral das Nações Unidas, realizada em Nova Iorque (EUA), merece ser lido e comentado. É isso que agora fazemos. João Lourenço sabe que a verdade dói mas que só ela cura. Por isso lê o Folha 8. Mas é também por isso que diz que não lê. Compreendemos.
“Realizamos esta 73ª Assembleia Geral das Nações Unidas num momento especial em que homenageamos duas grandes figuras da política mundial, por sinal dois africanos, Nelson Mandela e Kofi Annan”.
João Lourenço fez bem. É uma referência importante. Por nós recordamos que Kofi Annan sustentou diversas vezes que as soluções para os problemas do continente têm de vir do seu interior. “Não podemos estar sempre de mão estendida e insistir que queremos ser soberanos e independentes. Devemos liderar e conseguir o apoio dos outros — esse apoio aparecerá muito mais quando virem quão sérios e empenhados nós estamos”, salientou Annan.
“No dia em que completo exactamente um ano da minha investidura no cargo de Presidente da República de Angola, em nome do povo angolano tenho a honra de me dirigir pela primeira vez desta tribuna a toda a comunidade internacional aqui representada pelas mais alta individualidades. (…) Quero aproveitar essa soberana oportunidade para agradecer a toda a comunidade internacional pelo apoio prestado à causa da paz e da reconciliação no meu país, Angola”.
Sim. Nada como recordar esse primeiro aniversário e agradecer o apoio à causa que, diga-se, nem sempre o MPLA nem mesmo João Lourenço defenderam. Basta ver os discursos de campanha eleitoral no Bié (acusações bélicas contra a UNITA) ou em Moçambique (onde chamou à RENAMO e à UNITA uns “malandros”).
“Um especial agradecimento vai para a própria Organização das Nações Unidas, cujo papel foi decisivo para o alcance da paz definitiva em Angola, através do envio das missões de paz UNAVEM e MONUA e do importante trabalho desenvolvido pelas suas agências especializadas, designadamente a UNICEF e o PAM (Programa Alimentar Mundial)”.
Certo, excelente na óptica do MPLA. Nos últimos anos da guerra as ordens eram para tudo fazer para acabar com a UNITA. Tiveram sucesso. Para a ONU uma UNITA boa era uma UNITA decapitada. O MPLA defendia o mesmo. Assim sendo, tratou-se de um agradecimento justo parte do Presidente do… MPLA.
“Acreditamos também que a experiência de Angola no estabelecimento da paz e da reconciliação entre as forças em conflitos, foi positiva para as Nações Unidas, no sentido em que lhe permitiu tirar conclusões úteis para abordar processos de paz noutras regiões do mundo”.
É verdade e foi bem lembrado por João Lourenço. Desde logo porque foi a primeira vez que se utilizaram balas e bombas inteligentes. Basta ver a história da guerra contada pelos escribas do MPLA. As balas e bombas das FAPLA/FAA não matavam civis, só soldados das FALA. Com a UNITA era diferente – matavam tudo e todos…
“Angola vive uma experiência exemplar em termos de preservação e manutenção de uma paz definitiva e de aprofundamento constante da reconciliação nacional, da inclusão social, do perdão mútuo e sarar das feridas do conflito armado que terminou há cerca de 16 anos”.
Reconciliação Nacional quando o único herói nacional é do MPLA (Agostinho Neto)? Quando os restos mortais de Jonas Savimbi continuam sequestrados pelo MPLA/Estado? Inclusão social quando temos 20 milhões de pobres?
“É neste alargado fórum em que nos encontrámos que se discutem, se decidem e se encontram as melhores soluções para os mais graves problemas e conflitos da actualidade, que podem pôr em risco a própria sobrevivência da humanidade”.
João Lourenço poderia, aliás, puxar dos galões para explicar ao Mundo que não será por causa do MPLA que a “própria sobrevivência da humanidade” estará em risco. Em Angola só estão em risco os angolanos…
“Refiro-me à fome e à miséria que afectam a milhões de cidadãos no mundo. O aquecimento global e suas consequências, as migrações em massas com destaque para a imigração ilegal, o tráfico de drogas, de órgãos humanos, de crianças e de mulheres para a prostituição forçada, a intolerância e o extremismo religiosos, o terrorismo, os conflitos armados interétnicos, as guerras entre as nações ou ainda a proliferação e descontrole das armas nucleares”.
E referiu-se muito bem. Desde logo porque a fome e a miséria são males que só afectam uns largos milhões de angolanos. Mas, até nestes casos, o MPLA está a trabalhar arduamente há anos para encontrar a solução que resolverá, acreditam os dirigentes do partido que governa Angola desde 1975, os problemas nacionais e mundiais. E essa solução passa por ensinar os angolanos a viver sem comer.
“Criada há 73 anos com o propósito declarado de restabelecer a paz e a concórdia universal, de conferir os mesmos direitos às nações grandes e pequenas e em criar um mundo de cooperação, progresso e bem-estar, a Organização das Nações Unidas ainda está longe de cumprir o que está expresso na sua carta”.
Em cheio Presidente João Lourenço. Mas ficava-lhe bem reconhecer que estão a trabalhar no sentido de reforçar a tese de que é preciso pedir aos pobres dos países ricos para dar aos ricos dos países pobres. A chatice está em que países como Angola têm milhões de pobres mas são ricos, não geram riquezas mas amamentam ricos.
“A bipolarização do planeta em dois sistemas políticos, económicos antagónicos, não contribuiu para a fácil aplicação dos princípios a favor da paz e da segurança internacionais. Seria injusto negar que a ONU teve um papel meritório na liquidação do colonialismo, na promoção dos direitos do homem, no fomento do desenvolvimento e da cooperação internacional e na gestão e controlo de focos de tensão em todo o mundo”.
É verdade… se não consultarmos a tal história escrita pelos escribas do MPLA. É que, segundo esses arautos (muitos dos quais eméritas figuras da imprensa do MPLA), quem “teve um papel meritório na liquidação do colonialismo e na promoção dos direitos do homem”, foi Agostinho Neto e o seu partido.
“Apesar dos progressos verificados até ao momento, é importante reconhecer a existência de velhos conflitos ainda por resolver, como o israelo-palestiniano, no Médio Oriente, cujo desfecho feliz só será encontrado com a solução de dois Estados a conviverem lado a lado de forma pacífica, como defendem as Nações Unidas e a esmagadora maioria dos seus Estados membros”.
João Lourenço, sempre atento, fez bem em especificar pedagogicamente que o conflito israelo-palestiniano é no Médio Oriente (não fossem os presentes pensar tratar-se de mais um conflito em África), tal como esteve bem ao advogar a solução de “dois Estados”. Grosso modo é algo assim que a FLEC defende para Cabinda. Cabinda que, diga-se na linha pedagógica do Presidente do MPLA, não fica no Médio Oriente mas no Norte de Angola.
“Congratulamo-nos com os passos que vêm sendo dados ultimamente pelos Estados Unidos da América, a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, com a contribuição da República Popular da China para a desnuclearização completa da península coreana, o que tem vindo a baixar consideravelmente a tensão existente que ameaçava o eclodir de um conflito nuclear, perigoso não só para aquela região, mas para a segurança internacional, de uma forma geral”.
Presidente atento. Aliás a Coreia do Norte sempre foi (pelo menos atá há um ano) um farol para a caminhada política do MPLA e, logicamente, para Angola. Tal como, não sejamos “racistas”, a Guiné Equatorial. Mais uma vez, João Lourenço sabe do que fala.
“Com o fim da chamada Guerra Fria, de que foi símbolo a queda do Murro de Berlim em 1989 e o momentâneo surgimento de um novo paradigma político, voltado para o multilateralismo, as Nações Unidas propuseram-se reassumir a sua acção voltada para a construção de uma ordem pacífica no mundo. Acreditamos que com o trabalho de todos conseguiremos que este desiderato se cumpra”.
Certo. Bem lembrado, até porque há outros muros físicos a serem edificados, já para não falar dos muros invisíveis que – por exemplo – separam os angolanos de primeira dos de segunda, separam os que podem ver os filhos e netos nascer nos EUA e na Europa e os que, a esmagadora maioria, são gerados com fome, nascem com fome e morrem pouco depois com… fome.
“Hoje, num tempo de crescente globalização, não se justifica que continuem a proliferar sem aparente solução, conflitos de dimensão variável em muitas partes do mundo e que populações inteiras continuem a sofrer as suas trágicas consequências, praticamente abandonadas à sua sorte”.
Tem razão, Presidente. Mas, se calhar, as populações estão abandonadas à sua sorte porque há países onde o mesmo partido está no governo desde a independência, onde o mesmo presidente (nunca nominalmente eleito) esteve no poder 38 anos, onde crimes contra a humanidade (27 de Maio de 1977) continuam por assumir, onde… onde…
“Muitas têm sido por isso as vozes a exigir reformas profundas na Organização das Nações Unidas, que se adeqúem aos novos tempos, nos quais o surgimento de novos pólos de poder económico e financeiro, e de avanço técnico-científico justificam plenamente a redefinição das suas estruturas e mecanismos de intervenção e o alargamento e a reforma do seu Conselho de Segurança, representando melhor as diferentes regiões geopolíticas no nosso planeta”.
Sim, são precisas reformas profundas na ONU. África deve estar mais representada. Mas qual África? Mostremos que somos capazes de ter políticos que vivem para servir o seu Povo e não para dele se serviram. Então depois não faltará legitimidade, e força, para exigir.
“A configuração política do mundo contemporâneo, no qual os conflitos locais, regionais e intra-estatais representam os principais focos de tensão internacional e de ameaça à paz, exige que as Nações Unidas assumam um papel cada vez mais activo na promoção e acompanhamento dos processos de democratização política, económica e social”.
Estará João Lourenço a pensa que Angola é uma democracia política, económica e social? É que se isso for a bitola para a ONU, nós ainda estamos na parte inferir da escala. À mulher de JLo (César) não basta ser séria.
“Esta é a via privilegiada para a solução dos conflitos de natureza interna, ética, religiosa ou entre países, decorrentes na maioria dos casos de políticas autoritárias e de exclusão, do radicalismo intolerante ou da ingerência nos assuntos internos de Estados soberanos”.
Então em que é que ficamos. Vamos dar mais poder à ONU para tentar pôr ordem na casa do vizinho, mas barramos-lhe a entra na nossa? Ou já somos o paradigma dos paradigmas e, por isso, não permitimos ingerências no nosso (do MPLA) Estado soberano?
“As proporções atingidas hoje pelo terrorismo internacional, pelo crime organizado transnacional, pela imigração ilegal, pela xenofobia, pelo tráfico de pessoas humanas e de drogas, e muitos outros males, afectam a qualidade de vida dos habitantes do planeta e exigem, para serem superados, a concertação ao mais alto nível de todos Estados membros da nossa organização”.
Bem que Angola poderia fornecer à ONU a sua definição de terrorismo, crime, xenofobia, tráfico etc.. Até não daria muito trabalho. Basta consultar os manuais do MPLA. Está lá tudo elencado. É que, convenhamos, como em tudo há… terroristas bons e maus.
“Esta septuagésima terceira Assembleia Geral das Nações Unidas realiza-se sob o lema “Tornar as Nações Unidas relevante para as pessoas, liderança global e responsabilidades compartilhadas para sociedades pacíficas, equitativas e sustentáveis”. As Nações Unidas devem, por consequência, priorizar a promoção e salvaguarda dos direitos da pessoa humana e pugnar pela resolução de problemas globais da humanidade, tais como os relativos a segurança, ao ambiente, a redução das desigualdades entre ricos e pobres, ao desenvolvimento com vista a garantir a preservação da paz mundial.”
Mais uma vez João Lourenço esteve bem. Disse o que os presentes queriam ouvir, mentiu em relação a Angola mas passou imune e impune. Ninguém iria questionar se o Estado angolano “salvaguarda os direitos da pessoa humana” ou se procura reduzir “as desigualdades entre ricos e pobres”. Por isso o aplaudo estava, como esteve, garantido.
“Defendemos que se deve adoptar uma descentralização do sistema financeiro mundial, que deverá basear-se tanto na promoção dos sistemas de integração comercial e económica regionais, como no fortalecimento das instituições financeiras regionais em termos que permita um desenvolvimento económico mais sustentado”.
Uma tal afirmação poderia ter sido escrita por Jacques de La Palice. Mas não. Terá siso mesmo João Lourenço a escrever, ou pelo menos a aprovar, mais uma afirmação em que o óbvio foi obviamente… óbvio.
“Em toda a nossa história como país independente, a colaboração com as Nações Unidas foi permanente, o que permitiu que estejamos hoje empenhados não só no nosso próprio relançamento económico, mas também na busca de soluções para a total pacificação, democratização e desenvolvimento da África Austral e da África Central”.
Claro, claro. Aliás, como diz o partido de João Lourenço, o mundo seria muito pior se não fosse o contributo decisivo do MPLA “na busca de soluções para a total pacificação, democratização e desenvolvimento da África Austral e da África Central”. Isto já para não falar de outros feitos como, por exemplo, aprofundar a democracia através de um Presidente nunca nominalmente eleito que, ainda por cima, é Presidente do partido maioritário e Titular do Poder Executivo.
“A República de Angola manifesta toda a sua disponibilidade para continuar a apoiar todos os esforços na promoção da cooperação entre as nações de todo o mundo, na consolidação da paz e na defesa de relações de cooperação, do comércio e do investimento no plano bilateral e multilateral”.
Assim seja. O ONU ficou (con)vencida e isso era o mais importante. Quanto à corrupção endémica e genética no MPLA, quanto aos milhões de pobres e aos milhões que, como se não bastasse serem pobres. ainda passam fome, quanto à saúde que não têm, às escolas que não têm, aos empregos que não têm… é só dar tempo ao tempo. Talvez mais 57 anos.
Angola comete um erro grande se não se empenhar na CPLP.
É preferível ser explorado por quem tem alguma ligação do que por quem se está borrifando para os angolanos.