Antes da independência de Angola, na actual cidade do Huambo, o Ferreira e o Galinho viviam em casas muito próximas, no Bairro Académico. As suas ocupações, depois do horário normal do trabalho, de segunda a sábado, não deixavam tempo livre para convívios e conversas entre ambos.
Por José Filipe Rodrigues (*)
O Ferreira era explicador de Português e de Matemática. O Galinho era radioamador. Após as cinco da tarde, durante a semana, e aos sábados, da parte da tarde, as suas agendas estavam sempre muito preenchidas. O Ferreira ensinava um grupo numeroso de alunos do Liceu, enquanto o Galinho conversava com os seus amigos espalhados pelo mundo. Ambos tinham uma vida familiar bastante afastada dos padrões normais. As explicações e o radioamadorismo não permitiam uma convivência atenta, cooperante e próxima com as respectivas companheiras e com os filhos.
O Ferreira, penso eu, sabia o número exacto de todas as orações e de sujeitos, predicados e complementos directos e indirectos dos Lusíadas. Mas, também penso eu, acho que nunca percebeu os Lusíadas na sua essência. Por isso é que o Camões viajou e descobriu sempre muito mais do que o Gama, o Cabral, o Diogo Cão e as divindades mitológicas que residem na sua obra.
A essência é sempre muito mais importante do que os pormenores com sujeitos e predicados, com ou sem complementos directos ou indirectos.
No que dizia respeito às equações do primeiro ou segundo graus, à trigonometria ou à lógica matemática, entre outras matérias, o Ferreira tinha um método muito matemático e objectivo para explicar as coisas, conseguindo que os explicandos fossem bem sucedidos nos testes do Liceu. Os resultados obtidos pelos seus alunos no ano lectivo anterior eram as principais razões que justificavam o número de explicandos sempre crescente. Os estudantes do Ferreira, como muito outros, devem ter percebido a essência desses conhecimentos, testados na escola, muito tempo depois de conseguirem os resultados positivos nos testes a que foram submetidos.
O grande orgulho do explicador, para além do sucesso dos seus alunos, era o menino dos seus olhos, o seu cão, o Nero, um Lobo da Alsácia.
— Feroz como não há outro! Não há ladrão que consiga entrar no meu quintal. Se algum tentasse esfarrapá-lo-ia todo — enfatizava o Ferreira junto dos colegas de trabalho e dos seus estudantes.
Enquanto o Galinho ia ampliando o número de amigos espalhados pelo mundo, a fama da ferocidade do Nero foi aumentando num passo muito mais acelerado do que o crescimento das amizades no radioamadorismo. O Nero passou a ser conhecido em todos os bairros da cidade, pelas descrições que o Ferreira fazia a seu respeito e pela vulgarização, ainda mais exagerada, por parte dos explicandos.
O Galinho era um homem muito macho, à maneira antiga. A casa, para além de ter servido para fazer os filhos, para comer, dormir e conversar com outros radioamadores, era um lugar onde ele chegava para ser servido pela mulher.
— Vem jantar, ó homem — gritava a companheira.
— Daqui alfa, beta, gama… Já vou, mulher. Raios-te-partam. Será que não podes esperar um pouco?
A primeira vez que a companheira do Galinho adoeceu, incapacitada de preparar o jantar e de suplicar para que ele suspendesse temporariamente as suas comunicações internacionais, foi um drama lá em casa.
— Agora o que é que eu vou jantar, mulher? Não sei cozinhar e tu não podes sair da cama…
— Ó homem, estrelas uns ovos, tens pão, vinho e fruta… Prepara qualquer coisa só para ti. Eu não quero comer.
Estrelar ovos? Como haveria um homem, muito macho, que tinha sido servido toda sua a vida, de ser capaz de fritar ovos? Ele ficou na dúvida entre exigir à companheira que se levantasse da cama ou tentar a sua primeira expedição no universo da culinária.
— Ó homem, é fácil, pões óleo na frigideira, deixas aquecer, partes os ovos, colocas sal e depressa estão prontos para comer.
Depois de desarrumar toda a cozinha na busca do óleo, da frigideira, do sal e dos ovos, o marido recém-despromovido a cozinheiro, iniciou a sequência da actividade culinária, de acordo com a descrição, muito objectiva, da sua companheira. Ligou o fogão, colocou a frigideira sobre a chama da combustão do gás, verteu o óleo na frigideira e esperou. Esperou o tempo que pensou ser suficiente para aquecer o óleo. Esperou, esperou, esperou. Depois de muito esperar decidiu introduzir o dedo no óleo para ter a certeza de que estava suficientemente quente para fritar os ovos.
Ele ainda hoje deve andar aos gritos, a rogar pragas ao óleo e à sua companheira, difamando a fidelidade da sogra na relação como sogro, quando gerou a sua mulher.
Uma noite, enquanto o Ferreira dormia, depois de ter conferido o caderno do registo das contas, pagas e por pagar, dos seus explicandos, e de ter rezado as orações, as ensinadas pela mãe e as aprendidas num seminário do Norte de Portugal, e o Galinho ainda resistia ao sono, motivado pelos seus contactos com radioamadores de todo mundo, os ladrões atacaram. Invadiram os quintais de ambos os vizinhos e roubaram os coelhos, as galinhas e as roupas penduradas nos estendais do Ferreira e do Galinho.
O Nero, deixou-se levar pelos ladrões, pacificamente, como um cordeirinho mudo, sem tugir, mugir ou ladrar.
(*) Engenheiro; Mestre em Gestão de Empresas; Terapeuta em Pediatria, Geriatria e Psiquiatria; Poeta e Contista; natural do Huambo e a residir nos EUA.